Este texto foi escrito a propósito da contestação histérica às caricaturas de Maomé publicadas em Setembro de 2005 por um jornal dinamarquês. Tudo o que nele está dito se aplica, por maioria de razão, ao actual caso da professora primária britânica, presa no Sudão por ter permitido que a um ursinho de peluche fosse dado o nome do Profeta. Está sujeita a 40 chibatadas, 6 meses de prisão e uma multa em dinheiro. Parece mentira mas não é.Estes são os meus princípios. Se não gostarem, arranjo outros. A frase é de Groucho Marx e há quem ande a levá-la a sério. Os pedidos de desculpa — os «apelos ao respeito e ao bom senso», eufemisticamente falando — multiplicaram-se nas últimas semanas, encabeçados pelo secretário-geral da ONU, Kofi Annan, que veio apelar ao perdão dos ofendidos e lembrar que a liberdade de imprensa se deve exercer respeitando «plenamente os princípios e crenças de todas as religiões». No já remoto dia 12 de Maio de 1952, no New York Herald Tribune, o cardeal espanhol Pedro Segura arriscava ser mais claro: «A liberdade de imprensa é um dos maiores males que ameaçam a sociedade moderna». Apesar das suas desavenças com Franco, Pedro Segura era um homem de direita. Também por isso, não deixa de ser curioso que, com algumas excepções, sejam os media posicionados desse lado quem mais vem reproduzindo os cartoons da discórdia. Razão invocada? Haja liberdade de opinião! O mundo anda confuso.
Em 1859, no ensaio On Liberty (Ensaio sobre a Liberdade, Arcádia, 1973), John Stuart Mill escrevia que «o único fim pelo qual a humanidade está autorizada, individual ou colectivamente, a interferir na liberdade de acção de qualquer um dos seus é para sua própria protecção». Cerca de 100 anos antes, Voltaire terá dito: «Não concordo com uma única palavra do que dizeis, mas defenderei até à morte o vosso direito a dizê-lo».
Esta tolerância inegociável, assente numa liberdade axiomática que tanto tempo levou a conquistar — recorde-se que o Index do Vaticano apenas foi suprimido pelo Papa Paulo VI em 1965 e que a reabilitação oficial de Galileu data de 1992, 359 anos após o célebre «Eppur si muove» —, parecia, pelo menos para alguns e até há poucas semanas, prerrogativa da nossa cultura. Engano nosso?
A gaguez com que muitos vêm reagindo à vaga de fundo dos fundamentalistas islâmicos permite-nos suspeitar que, também deste lado (talvez porque o mundo é redondo e não tem lados), o princípio da liberdade, nomeadamente o da liberdade de expressão, pode estar a preços de saldo.
Acrescentando à lista de citações outro notável, note-se apenas como Bertrand Russell, a propósito da censura, definia «obscenidade» ainda em tempos bem recentes: «Obscenidade não é termo passível de definição legal exacta: na prática dos tribunais, significa 'tudo o que choca o magistrado'». À luz da actual e piedosa compreensão pela revolta dos fiéis, o termo (agora chamam-lhe blasfémia) parece ter-se tornado em «tudo o que choca as multidões em fúria».
Não sejamos ingénuos. Por detrás do caso dos cartoons espreitam, também na Europa, coisas com muito menos graça. A xenofobia é, com certeza, uma delas. Ainda assim, alguém consegue imaginar os Estados membros da União Europeia reunidos de urgência em 1978, a braços com uma revolta cristã contra A Vida de Brian, o último Monty Python acabado de estrear?
Pois é o que vem acontecendo em Bruxelas, vários séculos passados sobre a chamada Idade das Trevas, aquela durante a qual, na opinião de Jim Hankinson, «a pouca filosofia que existia na Europa sofreu uma viragem depressivamente teológica, centrando-se em disputas tais como se Deus era Uma Pessoa em Três ou Três Pessoas Numa, a natureza exacta da Substância do Espírito Santo e quantos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete (no caso improvável de desejarem realmente fazê-lo)» (in O Especialista Instantâneo em Filosofia, Gradiva/Público, 1996).
Hankinson é um brincalhão, mas Aristóteles estava a falar a sério quando concluiu que «as cobras não têm pénis porque não têm pernas; e não têm testículos por serem tão compridas». Hoje rimo-nos desta precipitação empírica, mas tenderá o (nosso) riso a desaparecer, como previu o francês Marcel Schwob?
«Esta prova física grosseira do sentido que temos de uma certa desarmonia no mundo deverá apagar-se face ao cepticismo total, à ciência absoluta, à piedade geral e ao respeito por todas as coisas. Rir é deixar-se surpreender por uma negligência das leis (...)», escreveu o autor de Vidas Imaginárias (Teorema, 1990). Nesta altura, os simpatizantes do respeito e do bom senso dirão que há limites para tudo. 35 anos depois de Jesus Cristo (Superstar) ter dançado na Broadway, teremos de começar de novo?
Sobram os adeptos do «bom gosto». Sobre esses, o filósofo espanhol Fernando Savater disse o que havia a dizer na edição de 11-02-2006 do El País: «Jean Daniel (reputado jornalista francês, fundador e director de Le Nouvel Observateur) informou-nos, nestas mesmas páginas, que aceita a blasfémia sempre que acompanhada de bom gosto e dignidade artística: ele é daqueles que apenas apreciam stripteases quando são feitos ao som de Mozart».
Guardados para o fim os que se indignam com «o insulto gratuito e permanente a uma cultura» («Choque e Pavor», Daniel Oliveira, Expresso, 4-02-2006) e, fazendo minhas as palavras do cronista, «só para sabermos do que estamos a falar», repare-se na confusão instalada, para desconforto de muitos (mais à esquerda do que à direita), entre três conceitos distintos: tolerância, cepticismo e relativismo (no qual nem Einstein acreditava).
Simon Blackburn, filósofo inglês, autor, entre outros, do útil e divertido Dicionário de Filosofia (Gradiva, 1997), deu, a 13-12-2001, uma palestra sobre o tema no King's College londrino.
«A tolerância é a disposição para combater a opinião apenas com a opinião: por outras palavras, a disposição para proteger a liberdade de expressão e para enfrentar as divergências de opinião apenas com a reflexão crítica e não com a repressão ou a força», resumiu, sublinhando depois uma evidência histórica que nem todo o esforço doutrinário do padre Carreira das Neves (ver Expresso, «Actual», 11-02-2006) consegue obliterar: «A tolerância deu entrada na vida política com o Iluminismo. Trata-se de uma virtude caracteristicamente secular (...). De um modo diferente, o relativismo presume que "não existem assimetrias na razão e no conhecimento, na objectividade e na verdade (...)". Tudo o que há são diferentes pontos de vista, cada um dos quais "verdadeiro" para aqueles que o defendem (...). Não só devemos tentar compreendê-los (aos vários proponentes dos vários pontos de vista), mas também reconhecer a existência de uma simetria de estatutos. As suas opiniões "merecem o mesmo respeito que as nossas" (...) podemos ter valores ocidentais, mas eles têm outros; nós temos uma visão ocidental do universo, eles têm a deles; nós temos a ciência ocidental, eles têm a ciência tradicional», etc., etc.
Resta a especificação de «cepticismo». Blackburn fá-la com clareza: «Segundo o relativista, a crença e a convicção voam pela janela fora porque (...) há por aí demasiadas verdades (...). Para o céptico, a crença e a verdade voam pela janela fora porque a verdade é demasiado rara. Ao contrário da atitude mental relativista, a do céptico é muitas vezes merecedora de admiração».
O resultado patético da promoção generalizada do «ponto de vista» a princípio gnoseológico e ético é bem ilustrado por Blackburn, que narra, nem a propósito, um episódio retirado de um encontro ecuménico: «Primeiro os budistas falaram das vias para a serenidade, da subjugação do desejo, do caminho da luz, e os seus colegas do painel disseram todos: "Eh pá, fixe, se te dás bem com isso é porreiro". Então o hindu falou dos ciclos de sofrimento, nascimento e renascimento, dos ensinamentos de Krishna e da via para a libertação, e todos disseram: "Eh pá, fixe, se te dás bem com isso é porreiro". E assim sucessivamente, até que chegou a vez do sacerdote católico falar da mensagem de Jesus Cristo, da promessa de salvação e do caminho para a vida eterna. Nessa altura, todos disseram: "Eh pá, fixe, se te dás bem com isso é porreiro". Mas ele deu um murro na mesa e gritou: "Não! Não é uma questão de eu me dar bem com isso! É a verdadeira palavra de Deus, e se não acreditam vão todos direitos para o Inferno!" E todos disseram: "Eh pá, fixe, se te dás bem com isso é porreiro"».
Marguerite Yourcenar estava convencida que as religiões monoteístas tinham sido a desgraça dos homens. Nietzsche anunciava que os deuses tinham morrido de riso ao ouvirem um deles dizer que era o único. Alfred Jarry garantia que «Deus é o caminho mais curto entre o zero e o infinito, tanto numa direcção como noutra». São opiniões estimáveis, mesmo se não temos de concordar com elas.
Entretanto, há gente condenada ao silêncio, à morte, desaparecida, facto que os ocidentais preocupados «com insultos gratuitos permanentes» tendem a esquecer com total liberdade. Leia-se novamente Savater: «Sei - disse-mo Cioran - que todas as religiões são cruzadas contra o sentido de humor, nego-me, contudo, a acreditar que mil e quinhentos milhões de muçulmanos se tenham forçosamente de sentir ofendidos: seria tomá-los a todos por imbecis, o que me parece sumamente injusto. Se fosse muçulmano (...) perguntar-me-ia, como fez o semanário jordano Shihane, "o que prejudica mais o Islão, estas caricaturas ou um sequestrador que degola a sua vítima em frente às câmaras?" Infelizmente, já não teremos resposta nem debate, porque o semanário foi imediatamente fechado e o seu director despedido».
Como lembrou Susan Neiman em O Mal no Pensamento Moderno (Gradiva, 2005) - ela sim, com inegável bom senso - «lamentar a perda absoluta de referências para julgar o certo e o errado devia ser supérfluo um século depois de Nietzsche». Nem por isso a filósofa norte-americana deixa de realçar que «a perda de certezas sobre os alicerces gerais dos valores não afectou as certezas sobre os exemplos particulares». Por esta razão, a advertência sobre o risco de pensarmos que «os "bons" somos nós e os "maus" são os outros» (Carreira das Neves) não acrescenta nada ao assunto, escamoteando apenas uma realidade que importa condenar, sem ilusões na «conciliação do inconciliável» (ver Vasco Pulido Valente, Público, 12-02-2006): sistemas teocráticos onde o petróleo flui por entre a maior miséria e as mulheres vivem subtraídas aos mais elementares direitos.
E agora: podemos falar a sério ou já não se pode brincar?