29/04/10

A crise começa a cheirar muito mal: mas então não bastava ir vender Magalhães ao Chávez e o Allgarve ao mundo?

Primeiro: alguém acredita que aqueles dois rapazolas que apareceram juntos nas televisões – a dizer nada – sejam realmente capazes de safar o barco? Eu, pela parte que me toca, não lhes comprava nem um par de anzóis.
Segundo: as reacções à aparição conjunta e simultânea dos dois rapazolas também primaram muito pela profundidade e pelo realismo. Um senhor chamado Athayde Marques, que as a living dirige a Bolsa de Lisboa, por exemplo, derramou este arrazoado de coisas comoventes: é preciso haver «coesão ao nível político, no sentido de que os principais partidos têm realmente que convergir nas soluções e ter uma visão estratégica daquilo que é importante para o país e daquilo que são as condições absolutamente necessárias para sair desta crise», acrescentando que «as greves e a agitação social são muito negativas para o país» porque «atrasam a recuperação do país, têm um efeito negativo na economia, mas também porque dão uma imagem negativa no exterior e hoje em dia a imagem de Portugal está na primeira linha de escrutínio.» Uf!
Terceiro: suponho que já em resultado da boa vontade saída daquele encontro memorável começam as mexidas e o governo do Engº Sócrates propõe-se, para começar!!!, poupar nos subsidíos de desemprego.
Uma senhora chamada Helena André, de quem nunca tinha ouvido falar mas que parece que é ministra, diz que as medidas visam «incentivar o regresso dos desempregados ao mercado de trabalho».
Não é para me fazer engraçada, mas se um dos maiores problemas resume-se, precisamente, a não haver trabalho, a que mercado é que ela quer que os desempregados regressem?

E enquanto este mesmo mete nojo de gente que afundou o país quer agora convencer-nos com o slogan patrioteiro Juntos Vamos Salvar Portugal! há quem pense.
Martin Wolf, por exemplo, que escreveu isto: “os superavits estruturais do sector privado e em conta corrente alemães tornam praticamente impossível aos seus vizinhos eliminar os seus défices fiscais, excepto se esses vizinhos estiverem dispostos a conviver com longos períodos de queda na actividade económica”;
Ou isto: “O projecto de união monetária enfrenta um enorme desafio. Ele não tem uma maneira fácil de resolver a crise grega. Mas a questão maior é que a zona do euro não vai funcionar como a Alemanha deseja. Como afirmei anteriormente, a zona do euro só pode se tornar germânica exportando um enorme excedente de oferta ou empurrando grande áreas da economia da zona euro para uma recessão prolongada, ou, mais provavelmente, as duas coisas. A Alemanha pôde ser a Alemanha porque outros não o foram. Se a própria zona do euro se tornasse Alemã, não vejo como isso funcionaria.”
Pois. Mas há malta que julga que a Europa começou com a CEE e que o capitalismo chega e sobra para todos.

27/04/10

Como os temas fracturantes me aborrecem um bocadinho e de momento não estou virada para o Lenine nem para a Comissão de Ética tomem lá o Brendan Behan

"Não faz sentido falar de homossexualidade como se fosse uma doença. Já vi pessoas com homossexualidade, tal como já vi pessoas com tuberculose, e não há qualquer tipo de semelhança.
A minha atitude em relação à homossexualidade é muito semelhante àquela mulher que, aquando do julgamento de Oscar Wilder, disse que não se importava com o que faziam, desde que não o fizessem na rua e não assustassem os cavalos."
in Nova Iorque, ed. Tinta da China

26/04/10

Como os temas fracturantes me aborrecem um bocadinho e de momento nada tenho a dizer roubei este post à Morgada de V. em troca de um éclair

Portugueses e portuguesas, cidadãos e cidadãs comunitárias (os)estrangeiros e estrangeiras de países terceiros, apátridas & apátridos, e todos & todas quantas/os lêem este/a magnífico/a post(a)

Por razões que se prendem com o meu passado de resistente anti-guterrista, embirro com a mania de feminizar os plurais, tanto com a escola que defende o desdobramento em feminino e masculino, como com a que troca os o’s pelos @’s. Isto é uma embirração mansa que não justifica uma tomada de posição do Paulo Jorge Vieira, e só falo no assunto porque ontem recebi um email da minha própria irmã a convidar-me, a mim e a outros & outras, para uma cena vagamente alternativa na qual “todos e todas são bem-vindos(as)”, não fossem as todas achar que era uma cena só para todos ou os todos que isto é tudo deles. Passado o choque inicial (a minha própria irmã, educada nas mesmas escolas que eu!), estivemos a trocar ideias sobre o assunto no chat do Gmail. Ela diz que a linguagem é tributária da sociedade patriarcal em que vivemos, e que “enquanto não se encontrar outra solução”, acha “ofensivo” não precisar o género feminino sempre que o plural seja opressivamente masculino. Em suma, há que chamar os bois pelos nomes (e as vacas, acrescento eu). Aqui a comunicação foi cortada, o que me impediu de desenvolver esta linha argumentativa, mas soube pela minha irmã mais nova (que não andou nas mesmas escolas que eu mas herdou o meu extraordinário bom-senso, e também se riu do disparate) que o incidente abalou a sororidade que me une à minha outra irmã. Não sei como vou dizer isto aos meus pais, mas acho que a irmã que frequentou as mesmas escolas que eu, e que até há pouco tempo se regia pelas mesmas regras gramaticais, foi raptada por extraterrestres (ou extraterrestras). No entretanto, enviei à pessoa (homem, mulher ou transgénero) que usurpou o email dela (e provavelmente o Facebook também) esta crónica já antiga do Arturo Pérez-Reverte – que tem, mutatis mutandis, ideias com interesse, mas não parece ter ajudado muito os/as coisos/as.

24/04/10

A book a day keeps the doctor away: Livros & Cigarros de George Orwell

Aos leitores que começam a ler os livros logo pelo princípio, um aviso. Não se deixem enganar pela contabilidade do primeiro texto: Livros & Cigarros não é sobre o preço dos livros (ou dos cigarros) em libras, xelins ou dinheiros. Os ensaios aqui reunidos versam sobre variadíssimos assuntos, da edição e crítica literária à liberdade de expressão, do totalitarismo às memórias de infância.
Este último tema, desenvolvido em ‘Ah, Ledos, Ledos Dias’, o texto mais extenso, invoca a experiência de George Orwell, nascido Eric Arthur Blair (1903/1950), no colégio interno de St. Cyprian. Por indicação do próprio só seria publicado após a sua morte, e é um libelo contra a educação assente nos castigos corporais e na estratificação classista. Lê-lo é compreender melhor a génese das posições políticas de Orwell, a sua defesa intransigente da liberdade e desprezo assumido pelo autoritarismo.
Comum a todos os textos, a inteligência do autor de “Mil Novecentos e Oitenta e Quatro” assente, sobretudo, num olhar corajoso que não recusa a complexidade do real, desprovido de preconceitos ideológicos e ilações simplistas.
Inimigo feroz do artificialismo, político ou intelectual, Orwell seria um profícuo e influente ficcionista, memorialista e ensaísta (cf. por exemplo, Por Que Escrevo e Outros Ensaios, também publicado pela Antígona em 2008).
Em Livros e Cigarros o que mais nos atrai é o facto de, seja qual for o assunto abordado, Orwell nos remeter sempre de forma tocante para a própria vida, seja esta a do pobre crítico literário que, apesar do seu amor genuíno à literatura, não deixará de ceder à “intrujice”; seja a do alfarrabista que, sob o romantismo aparente da sua profissão, não pode deixar de reconhecer a “escassez dos verdadeiros amantes de livros”. “Um, Dois, Esquerda ou Direita – o Meu País” ainda hoje escandalizará muito internacionalista cheio de boas (ou más) intenções; “A Prevenção da Literatura” é uma reflexão definitiva sobre os vícios do totalitarismo e em defesa da imaginação, muito superior à chusma de banalidades que se escreveu desde então sobre o tema; “Assim Morrem os Pobres” relata a sua experiência num hospital francês, em que à miséria dos doentes se alia a desumanidade do pessoal médico. Em resumo: sete ensaios actuais e obrigatórios publicados há cerca de 50 anos, de uma actualidade e brilhantismo inultrapassáveis.
"(...) a história das sociedades totalitárias, ou dos grupos de pessoas que adoptaram a perspectiva totalitária, sugere que a perda de liberdade é inimiga de todas as formas de literatura. A literatura alemã quase desapareceu durante o regime hitleriano, e o mesmo sucedeu, ou quase, em Itália. A literatura russa, pelo que nos é dado avaliar com base nas traduções, degradou-se acentuadamente desde os primeiros tempos da revolução, embora alguma poesia pareça ser melhor do que a prosa. Poucos ou mesmo nenhuns romances russos que possamos levar a sério foram traduzidos, digamos, nos últimos quinze anos. Na Europa Ocidental e na América, largas franjas da intelligentsia literária passaram pelas fileiras do Partido Comunista ou são fervorosos simpatizantes do comunismo, mas este movimento generalizado em direcção à esquerda produziu um número extraordinariamente reduzido de livros dignos de ser lidos. Também o catolicismo ortodoxo parece ter um efeito deletério sobre certas formas literárias, mormente sobre o romance. Ao longo de um período de trezentos anos, quantos indivíduos foram a um tempo bons romancistas e bons católicos? A verdade é que certos temas não podem ser glorificados pela palavra, e a tirania é um deles. Nunca ninguém escreveu um bom livro a louvar a Inquisição. (...) Num qualquer momento futuro, caso o espírito humano se transforme em algo de totalmente diverso do que é neste momento, talvez aprendamos a separar a criação literária da honestidade intelectual. Hoje em dia, sabemos apenas que a imaginação, à semelhança de certos animais selvagens, não vinga em cativeiro" (in "A Prevenção da Literatura").
Livros & Cigarros, George Orwell, Antígona, 2010, tradução de Paulo Faria

23/04/10

Inescrutáveis são os caminhos da Justiça ou o caso do Domingos Névoa só para ver se eu percebi bem

Domingos Névoa foi absolvido. Pelo que consegui perceber do que li — mas eu não sou versada em Direito — a coisa será mais ou menos assim.
O Névoa ofereceu 200 mil ao Sá Fernandes para este parar de chatear a Bragaparques. So far so true.
Acontece também que a fundamentação "do crime de corrupção activa de titular de cargo público" estabelece "que é preciso que as funções do funcionário visado pelo suborno possibilitem que sejam praticados os actos pretendidos pelo corruptor" — assim sendo, os juizes ilibiram o empresário de Braga.
Ou seja, se bem interpreto a sentença: como o Sá Fernandes andava a chatear a Bragaparques na qualidade de cidadão e não de vereador e, além disso, de facto não teria poder para acabar com o processo em curso que chateava a Bragaparques, o tribunal concluiu que Domingos Névoa foi estúpido e tentou corromper a pessoa errada e vai daí absolveu-o.
Será isto?

Juro que fiquei francamente comovida com o pedido público de perdão de Rui Pedro Soares a José Sócrates

Entendamo-nos. Na minha modesta opinião, a desobediência civil é um direito universal. Assim sendo, Rui Pedro Soares tem toda a legitimidade do mundo para ficar calado. Dito isto, o que me surpreendeu no seu depoimento foi que, para calado, o rapaz fartou-se de falar.
Aqui há uns meses largos, fora o primo do kung fu quem, interrompendo o seu retiro espiritual na China, pedira desculpas a Sócrates via Expresso.
Este padrão, digo já que não me agrada. É que se a moda dos arrependimentos públicos pega, qualquer dia ainda temos uma Revolução Cultural à chinesa mesmo se ligeiramente anacrónica. Ainda quererá alguém dar para esse peditório?

22/04/10

Quando for grande também quero ser famosa, ter utilidade política, comprar uma valise à carton e fundar uma associação em defesa dos flamingos*

Nunca gramei do género queques de esquerda. Queques por queques, prefiro os autênticos, os da Linha, e não me estou a referir à concorrência.
Sendo eu ainda do tempo do a menina pecebe?, em Cascais a malta sempre ia à praia e o mar, como se sabe mesmo sem ter lido a Murdoch, é uma coisa que areja a cabeça e o resto.
Quando olho para a Inês de Medeiros, sinto-lhe a falta do mar. Ela, por seu turno, sente falta de Paris.
Ao fim de vários meses sem saber quem lhe pagava as viagens para a Cidade da Luz, Lello teve voto de qualidade e pôs a Assembleia da República a entrar com o carcanhol.
Ou seja: je paie, tu paies, il paie, nous payons, vous payez, ils payent.
Esclareça-se. Não é que eu seja forreta. Não é sequer que eu ache que quem lhe deu emprego não devesse arcar com os tickets. A minha dúvida é outra: porque raio a convidaram? porque raio é a Inês de Medeiros deputada do PS e para mais por Lisboa?
E reparem. A minha dúvida é bastante anterior àquela sua singela declaração se Sócrates mentiu nem acho que seja muito grave (à propos, se ela não acha muito grave um primeiro-ministro mentir ao parlamento, porque carga d’água faz parte da comissão de ética do mesmo, mesmo sendo aquela a comissão de ética do mesmo?).
Bom, hoje fez-se luz. Parece que a deputada integrava uma lista de personalidades encabeçada por Figo, cuja simpatia e popularidade foi testada por um estudo de opinião realizado para a PT... Ou seria para o PS? Confesso que esta parte me escapou.
Enfim, seja como for, resolvido o caso, resta-me recordar apenas algumas das opiniões expressas por Inês de Medeiros quando esta ainda era só candidata e os contribuintes não tinham que lhe pagar as viagens.
Perguntaram-lhe.
E ela respondeu.
Touchant, n'est-ce pas?
Fiquei com uma dúvida: é mais caro ir aos Açores ou a Paris? É que se for mais caro ir aos Açores, o que suponho que seja, os termos em que é apresentada esta decisão é a xicaespertice mais xicaespertice de que tive conhecimento nos últimos tempos... ]

19/04/10

Do Forte de Peniche à cama do arqtº Paulino Montez passando pelas rendas de bilros — ou da vergonha de ter nascido em Portugal

Peniche é uma terra porreira. Fuma-se na maioria dos sítios, o mar é a perder de vista, o peixe serve-se fresco. Peniche só tem um problema: o Forte.
O Forte é como quase todos os Fortes. Aproado num promontório, expõe-se à força dos elementos em cenário qual Boca do Inferno qual quê e exsuda aquela patine histórica que celebra as potencialidades turísticas na razão directa da antiguidade.
Há muitos anos que não o visitava. Como já aqui escrevi, em criança fazia-o senão quinzenalmente pelo menos uma vez por mês. Partíamos, eu e a minha mãe, de manhã cedo de camioneta, dormíamos numa pensão de que me restam as imagens imprecisas de um quarto sombrio e de uma mulher de luto que falava connosco em surdina, e regressávamos no dia seguinte. No entretanto, visitávamos o meu pai, preso em Peniche. Eu odiava o passeio porque, invariavelmente, vomitava na camioneta.
Voltei lá este fim-de-semana. Já sabia do projecto da Câmara para o converter em Pousada, enaltecida a atractividade da fortaleza por via dos tipos que lá viveram embalados pelas ondas.
Logo à entrada, passado o fosso e a loja de souvenirs de mau agouro, uma placa com três indicações: a última assinala uma ESCOLA DE DANÇA!!! Estava fechada.
À direita, no pátio de um dos edifícios da antiga prisão, que acolhe agora um pífio CENTRO DE ARTES!!! (deserto), exibe-se uma embarcação de pesca com os seguintes dizeres (cito de memória mas juro que é pura verdade): “Aqui neste local ficava o recreio dos presos que eram vigiados pelo guarda desta guarita, servindo hoje este pátio para albergar outro grande resistentee segue-se informação sobre o barco”!!!!
No pátio de um dos outros edifícios-prisão, tropeçaria mais tarde numa cisterna descrita assim (sempre de memória): “Esta cisterna é muito boa, tem imensa água, os presos recolhiam-na de corda e balde e em Mil Novecentos e tal (não fixei) enquanto na vila a água era escassa e barrenta aqui nunca faltou e sempre de óptima qualidade”!!!
Nesse momento imaginei a inveja que se deve ter gerado na vila, os habitantes em procissão até ao Forte pedindo para serem encarcerados...
Na zona das solitárias, no topo da edificação, um placard informa que dali fugiu Dias Lourenço atirando-se sozinho ao mar. Como o placard é discretíssimo e a maioria das pessoas no local parece ter vindo para apreciar a vista (de facto, magnífica), não estranhei que um casal de jovens se desse a arroubos carnais no interior de uma das celas apesar da falta de conforto e do excesso de humidade.
No lado oposto, a um canto, ocupando uma das Alas destinadas aos presos, lá fica aquilo a que chamam Museu. Fui espreitar.
A funcionária que vende bilhetes a dois euros e meio explicava então a um grupo de visitantes que a cisterna era muito fresquinha e agradável no Verão mas que agora era melhor não descerem porque… Deixei de a ouvir e teletransportei-me por instantes para Birkenau onde alguém me aconselhava no meio do abrasador descampado que fosse descansar à sombra dos restos do forno crematório.
De volta a Peniche, encontro-me já dentro do “Museu”. Se a memória não me falha, são três andares. Até chegar ao último, passei por uma exposição de malacologia (como estamos sempre a aprender aprendi que é assim que se chama ao estudo das conchas…), arqueologia marítima (num recanto esconso cheguei a assustar-me com uma figura em tamanho natural vestindo um escafandro retirado directamente das “Vinte Mil Léguas Submarinas”, incluindo o pó), rendas de bilros, cama e restante mobiliário doado pelo arquitecto Paulino Montez (não, não se trata de um preso político mas de um ilustre da terra…), mais umas quantas aguarelas domingueiras assinadas pela respectiva esposa, o tal pátio/recreio com a cisterna e assim que me recorde de repente mais nada.
Poupo-vos ao cheiro a mofo e a merda. Este exala sobretudo no terceiro andar onde, finalmente, se percebe que pisamos uma antiga prisão política.
Um corredor com umas cinco ou seis celas aloja uma exposição a que simpaticamente chamarei pindérica, com destaque para uma porta fechada que nos convidam a espreitar e onde se exibe, diz-nos o papel lá colado, uma montagem cénica de uma cena de tortura. Adversa ao masoquismo, hesitei. Do outro lado, um teatrinho minúsculo com umas figurinhas pequeninas tipo presépio que não retive; por todo o lado, o nome de Álvaro Cunhal (com uma sala dedicada aos seus desenhos na prisão) e transcrições das Edições Avante ou similar. Esta parte também me lembrou a minha primeira ida a Auschwitz com a guia a sublinhar de cinco em cinco minutos os mártires cristãos do Campo…
Saí em estado de choque. Pedi o livro de visitas (que a custo consigo obter porque a funcionária hesita em passar-me para a mão o caderno de capa dura a que chama pomposamente Livro de Honra) e deixei escrito o que pensava.
Mais ou menos: pátria "cabra" e "badalhoca"que trata assim a memória. "Esgoto atlântico" que mereceu o Salazar, merece Sócrates, merece Passos e o mais que venha a seguir.
Que uma vaga a arrase ou, pelo menos, que alguém chegue ali a Peniche e escaqueire a porra das conchas, a cama do arquitecto mais o rendilhado dos bilros.
Basicamente disse-lhes isto: vão-se foder e pardon my french. Acrescentei: dejecto por dejecto, mais valia construírem a Pousada e depois assinei com o meu nome em nome do meu pai e de outros tantos, incluindo, apesar de tudo, o Cunhal e o guarda José Alves.

16/04/10

Casos padrão — here we go again

"Figo foi ilibado porque desconhecia que a Taguspark fosse uma empresa com capitais públicos. José não foi ilibado porque não tinha que ser, estava só de passagem pelo Altis, não era Secretário Geral do PS, não era candidato a Primeiro-Ministro pelo PS, não sabia que a Taguspark tinha feito um contrato com Figo através de Rui Pedro Soares, não sabia que Figo o queria apoiar publicamente como socialista que é desde pequenino e principalmente não fazia a menor ideia que ele gostava de tostas mistas."
Daqui a propósito disto, disto e disto [leitura de ordem arbitrária]

15/04/10

Silogismos de pendor aristotélico a propósito das declarações de Tarcisio Bertone ou, literalmente, da relação entre o cu e a batina

Percebo que o Vaticano tenha vindo tentar pôr água na fervura [embora não tenha entendido bem a especificidade da pedofilia entre o clero versus pedofilia em geral].
Feita a ressalva, a verdade é que até a mim escapara o modo como as declarações do cardeal Tarcisio Bertone, que pretenderam estabelecer uma relação causal entre homossexualidade e pedofilia, poderiam ser favoráveis à Igreja.
Senão vejamos. Em traços gerais, o que o cardeal disse foi:
1. Não há relação entre celibato e pedofilia
2. Há relação entre pedofilia e homossexualidade.
Aceitemos a bondade das afirmações proferidas. Temos assim:
1. Todos os padres são celibatários
2. Alguns padres são pedófilos
3. Não há relação entre celibato e pedofilia
4. Há relação entre pedofilia e homossexualidade
5. Todos os padres são celibatários e alguns, além disso, são pedófilos e homossexuais
Conclusão: 3 em 1?
Nota: A questão central que o Cardeal Tarcisio Bertone parece ter esquecido é que a pedofilia é crime e a homossexualidade não.
Quanto à relação causal – pretensamente baseada em estatísticas – vale o que vale. Ou seja, zero.
O que me recorda uma anedota lida algures online: 33% dos acidentes de trânsito envolvem pessoas embriagadas. Logo, 67% envolvem pessoas completamente sóbrias. Conclusão: é sempre preferível conduzir bêbedo.

14/04/10

Declaração de princípios: ó a democracia (e se não gostarem tenho outros)*

A democracia é uma merda mas não temos nada melhor.
E é uma merda, basicamente por isto: o meu vizinho do quinto esquerdo bate na mulher, espanca o cão, grita com a mãe, deita lixo pela janela, cospe na rua, abalroa velhinhas no supermercado, buzina o carro às três da manhã, empanturra as crianças de estalos e MacDonald's, ouve televisão aos berros, faz incursões semanais ao Colombo, não grama pretos nem monhés e é feio que nem uma porta. Felizmente não é meu vizinho. Mas podia ser.
Porque o ponto é este: um troglodita que vive na Idade da Pedra e que ainda terá de reencarnar pelos menos umas 100 vezes, como rato, até regressar de novo como hominídeo tem exactamente os meus direitos do que eu.
Desabafo feito, não tenho alternativa. Ou talvez tenha: abalroá-lo um dia destes pelas escadas e esperar que ninguém me veja.
Não me interpretem mal. Sou pela Lei como forma de regulação da selva que isto seria (ainda mais) se a Lei não existisse. Sou pela Lei e pela Democracia porque todas as outras formas de Poder me parecem mais perigosas. Em privado, contudo, estou também com o cidadão que tenta resolver certas coisinhas pelas suas próprias mãos, se assim puder e não tiver escolha.
Resumindo: sou contra a pena de morte (em absoluto e sob qualquer circunstância), mas se o troglodita do quinto esquerdo envenenasse a minha cadela e saísse impune teria de se haver comigo. Não digo que lhe pusesse vidro picado nos hambúrgueres (tenho alguma dificuldade em lidar com a vingança servida como prato frio…), mas havia de me lembrar de qualquer coisa. Menos cruel, embora certamente proporcional.
Outro exemplo: percebo melhor a operação “Cólera de Deus” da Mossad do que a invasão do Iraque mesmo se ratificada pela ONU.
E isto é na realidade tudo o que me apraz dizer sobre o Estado de Direito, atrás do qual se escudam todos os trogloditas enquanto a democracia lhes dá jeito. Digo-o por experiência, por nunca ter feito o meu género passar-me por virgem pudica e, last but not least, por ter lido O Processo de Kafka.
* No original, “Those are my principles, and if you don't like them... well, I have others", Groucho Marx
[Ocorreu-me este desabafo a propósito disto]

13/04/10

A book a day keeps the doctor away: "Diário Volúvel" de Enrique Vila-Matas

Vila-Matas inventa Vila-Matas e até aqui nada de novo. Novo é que em Diário Volúvel autor, narrador e protagonista coincidam, o que, voyeurismo oblige, desembestará talvez o apetite de muitos vilamatianos. Faça-se notar, porém, em especial à atenção de um ou outro mais crédulo, que, não com certeza por acaso, Enrique Vila-Matas aparece na capa do livro… de costas. Ou seja, para citar o próprio: Diário Volúvel “no es ningún striptease".
A escrita pretensamente confessional alia-se à brevidade dos textos, o que nos permite abrir o volume ao acaso e lê-lo sem regra nem preceito. Façamo-lo.
Pág. 33 (que nem de propósito): “Sobressalto. Vejo três críticos literários (três!!!) na esquina da Travessa do Mal com a Verdi e, imediatamente, numa atitude instintiva, escondo-me atrás de um camião.”
Pág. 52: “Adivinhar o futuro do livro face à suposta ameaça digital é como especular sobre o resultado que no domingo alcançará a nossa equipa favorita”.
Pág. 165: “Sei que há muitas pessoas que, quando estão sozinhas a tomar duche, sentem um repentino terror por se recordarem da cena do assassinato de Janet Leigh em Psico, de Hitchcock.”
Pág. 233: “Alguns dos meus patrícios odeiam as citações: não olham com bons olhos uma certa erudição e têm como estúpida palavra de ordem que ‘quando se escreve não se deve ficar a dever nada a ninguém”.
Pág. 269: “Procuro o recolhimento, porque a literatura costuma ser mais interessante do que a vida. Não sei se é paradoxal, mas gosto imenso da vida, porque, digam o que disserem, é parecida com um grande romance”…
Os assuntos são como as cerejas e Vila-Matas percorre-os a todos com desenvoltura, não faltando, claro, aqueles episódios coincidentes que só mesmo ele para os detectar. Como este, delicioso, a propósito de o que se passa quando não se passa nada.
"De novo na esplanada do café de Perec, espero, em vão como sempre, que passe Catherine Deneuve, que vive na praça. Mas, uma vez mais, ela não aparece. Surpreende-me, um pouco mais tarde, ler na revista Lire que Vargas Llosa também vive nesta praça, tem um dúplex num edifício do século XVIII: 'Neste bairro, sinto-me como em casa. É um bairro muito literário. Umberto Eco também vive na praça. Há quinze anos que espero ver Catherine Deneuve, mas ela nunca aparece.'
"Nesse momento aparece Deneuve. Fico mudo de surpresa e pergunto-me se, durante um momento, Deneuve não foi 'o que se passa quando não se passa nada.'"
Organizado a partir da compilação, selecção e adaptação de crónicas assinadas na edição catalã de “El Pais” (Dez. 2005/ Abril 2008), mais alguns inéditos, Diário Volúvel confirma as obsessões do escritor e a sua cultura literária; transversal ao conjunto, a ironia como condição de sobrevivência.
Ficção, realidade e biografia reinventam-se neste título que, bem vistas as coisas, não se afasta assim tanto de todos os outros já por si assinados, ou, como bem disse Pedro Almodóvar, Diário Volúvel lê-se como um romance “cujo narrador nos oferece informação exaustiva sobre o protagonista, que por acaso é o mesmo”.
Absolutamente conseguido – divertido, amargurado, inventivo, esperançoso, versátil e implacável –, reflexão acrobática de hábil execução, é Enrique Vila-Matas em grande forma (apesar da doença que nos relata), num híbrido literário que não poupa o autor, a realidade, nem o que se vai publicando por aí.
Gosto em especial deste momento de auto-ironia: "As moscas são todas diferentes, mas tão parecidas entre si que há quem acredite que, na realidade, só existiu uma mosca em toda a história do universo. Nunca conheci melhor especialista em insectos do que Augusto Monterroso, que escreveu em certa ocasião: 'A mosca que hoje poisou no teu nariz é descendente directa da que ficou parada no nariz de Cleópatra.' O mundo das moscas sem lei atraiu-o sempre e planeou uma antologia universal sobre esse emaranhado universo. Finalmente, acabou por abandonar o projecto, porque viu que o volume teria de ser forçosamente infinito. Mas em Movimiento perpetuo ofereceu aos seus leitores uma pequena mostra da história mundial das moscas. Movimiento perpetuo começava assim: 'Há três temas: o amor, a morte e as moscas.' Um categórico início para um livro inclassificável, escrito muito antes de haver tantos livros híbridos e inclassificáveis como agora. (...)"
Diário Volúvel, Enrique Vila-Matas, Teorema, 2010, tradução de Jorge Fallorca
Um versão abreviada deste texto foi publicada no semanário Expresso

12/04/10

A castidade explicada às mulheres por Pedro Arroja: e tudo por causa da metafísica

Ele há coisas que a gente pensa que já não existem mas existem. Por exemplo: Pedros Arrojas.
Eu sei que a história do mundo não tem confirmado assim tanto a escatologia feliz proposta por Hegel e Marx. Tenho até algumas dúvidas sobre os ganhos da emancipação feminina. Mas caraças! Chamarem-me estúpida é que não.
Afinal, de onde é que esse tal Pedro Arroja me conhece para afirmar assim do pé para a mão que eu seria incapaz de compreender o meu marido (que até ver não tenho...) se este resolvesse dedicar um dia da sua vida à especulação metafísica, filosófica ou teológica fechado num quarto sozinho, eventualmente rodeado de livros?
De onde é que ele eventualmente me conhece para afirmar que eu possuo um enorme sentido prático da vida e me falta sentido metafísico?
Ao autor de tais dislates paleolíticos, três coisas:
1. Desafio-o a discutir comigo (mas nunca no seu quarto, era o que mais faltava...) as provas da existência de Deus de Santo Anselmo. E se conhecer algo de mais metafísico, faça favor.
2. Peço-lhe encarecidamente que, no intervalo das suas meditações filoteológicas, me ajude em alguns problemas práticos para cuja resolução já desisti de contribuir. Assim de repente, consigo lembrar-me do lavatório de uma das casa de banho que pinga, da janela da sala do meio que não fecha, do impresso do IRS que não sei preencher, de um espelho pesadísimo que precisava de pendurar na parede, de uns quantos puxadores de porta fanados...
3. Finalmente, garanto-lhe que sou um exemplar confirmado do género feminino, não tenho bigode nem nunca me foi detectada nenhuma produção excessiva de testosterona.
E quanto ao resto [a prosa do Arroja pode ser lida na íntegra aqui] deixe-me que lhe diga: se houvesse um Prémio Nobel da Praticalidade, perdão, Imbecilidade, ia direitinho para si.
Ele há com cada um!

01/04/10

Enquanto a batalha naval prossegue com dois submarinos ao fundo, roube-se o que há de bom para roubar

Vinte mil léguas submarinas
— Não há dúvida, professor. Porém, com o método antigo, os proprietários lucram mais. Sabe quanto ganham esses pobres pescadores que arriscam a vida e que nunca chegam a ficar velhos? Recebem cinco centavos por concha que contenha uma pérola, e são tantas as que se encontram vazias!
— Mas, isso é um absurdo — respondi. — Cinco centavos para essa pobre gente que enriquece seus patrões!... Não entendo...
— Pois é assim mesmo, professor. Isso é a civilização. A propósito, sr. Aronnax — disse o capitão mudando de assunto. — O senhor tem medo de tubarões?