31/05/10

A book a day keeps the doctor away

John Updike (1932-2009) nunca alcançou em Portugal a notoriedade de um Philip Roth, por exemplo. O que é uma tremenda injustiça. Porque se faltou a Updike o arrebatamento impiedoso de Roth ou de Saul Bellow (para acrescentar outro enorme), tal facto viu-se largamente compensado tanto pela sua paixão pela língua como pela sua inteligência compassiva (esta última, a fazer também a grandeza de Tolstói).
Retratista do universo do meio — da classe média americana que povoa subúrbios enfadonhos e quase sempre medíocres (leia-se o literalmente portentoso Casais Trocados) —, provou-se, desde o início, um estilista de primeira água. Os seus textos são música para os ouvidos e as suas personagens exemplos perfeitos da atenção prestada aos outros (a série balzaquiana dedicada à personagem de Harry "Coelho" Angstrom prova-o à exaustão e é de leitura obrigatória para quem queira perceber a América da segunda metade do século XX).
Crítico, poeta, contista, romancista, o autor da série Coelho… deixou cerca de 60 títulos disponíveis e, como curiosamente resumiu o próprio escritor de Indignação, alheio às comparações, foi e continuará a ser “um tesouro nacional”.
Os 18 contos agora publicados são obra de final de vida e, infelizmente, não mantêm o fulgor estilístico a que nos habituaram os seus textos maiores. Parafraseando Martin Amis que escreveu no “Guardian” sobre As Lágrimas do Meu Pai aquando da sua publicação original em 2009, é como se, com a idade, Updike tivesse perdido o ouvido.
Os temas são identificáveis: memórias de infância, casamentos vergados pelo tempo ou que acabam em divórcio, amigos desaparecidos, isolamento crescente, a morte que se adivinha num horizonte cada vez mais próximo e o sexo que fica cada mais longe.
Naturalmente, uma certa nostalgia envolve esta antologia póstuma e, como sempre, a vida enche-a com as suas banalidades e fragilidades inevitáveis: “O nosso romance [entre ele e a amante] prejudicara-me profissionalmente. Um vendedor de seguros é como um pregador — lembra-nos da morte e deve ser extraordinariamente honesto e virtuoso, como um retorno para o investimento que pede. Como agente de seguros eu havia sido versado e virtuoso a preencher os formulários, mas menos competente a dar a volta aos clientes só para receber comissões. A minha mulher e eu mudámos de estado, para Massachusetts, onde ninguém nos conhecia e eu podia trabalhar com as mãos. Vivíamos lá há uns quinze anos quando me chegou a notícia de Connecticut de que a minha antiga amiga — os longos cabelos espiralados, o sorriso rasgado e luminoso, as mãos esguias e ovaladas — estava a morrer com um cancro nos ovários. Quando morreu, exultei até certo ponto. A sua morte removia do mundo uma presença perturbadora, um sinal do seu potencial por satisfazer. Aí têm. Percebem agora porque não sou dado a introspecções, a escavar muito fundo. Arranha-se a superfície e a fealdade aparece.” (in “O Copo Cheio”).
Tudo continua lá. A beleza das frases, contudo, esmoreceu. Em alguns casos, o seu arrevesamento incomoda demasiado. Aos grandes, porém, tudo se perdoa. A lucidez e a compaixão permaneceram até ao fim e «se consigo ler bem [essa] velha mente, o tipo brinda ao mundo sensível, mandando o seu iminente desaparecimento à fava.”
Afinal, trata-se de Updike, caramba!

John Updike, As Lágrimas do Meu Pai, Civilização Editora, 2010

30/05/10

Ademar Santos (1952-2010)

Não o conheci pessoalmente. Frequentava o seu blogue com assiduidade e troquei com ele meia dúzia de (simpáticos) e-mails. Soube que estava doente através de um post que o próprio publicou no Abnóxio.
Ademar Santos, ateu convicto que não queria nada com deus, "esse chato que ressona" como dizia o O'Neill, escreveu com ironia que esperava ressuscitar. Soube aqui que não ressuscitou. Enviei-lhe na altura um comentário que nunca chegou a aparecer. Acho que lhe mandei um e-mail quando ele já não os podia ler. Recuso-me a ir confirmar.
Agora fica um morto à distância de um click. A morte é uma puta, como dizia o outro.

Só para dizer ao senhor primeiro-ministro que ó pá eu também já fui a casa do Chico mas ó pá sem fazer figuras tristes


A coisa (mesmo a oficial) deixara-me de pé atrás. Porque raio quereria o Chico Buarque conhecer o tal de Sócrates?!
Pois não só a minha perplexidade tinha razão de ser como a notícia era falsa. O último é que pediu para ir lá espreitar as vistas.
Claro que nunca se saberá de quem partiu a notícia. Do próprio? Do Lula? De um assessor expedito? De um amigo daqueles do peito? De um primo empreendedor? De alguém que confundiu o Chico com o incondicional Luís Figo? Vá lá saber-se.
Uma coisa me serve de consolo: eu, ao menos, não precisei de fazer figuras tristes. Fui lá de táxi e, na verdade, ter-me-ia bastado dizer: para casa do Chico, sff!

"Para mim, os olhos dele são verdes. Há quem conteste. E, a crer no jornalista brasileiro Sidney Garambone (Isto É, 11-11-1998), nem os seus familiares se conseguem pôr de acordo: uns dizem que são azuis, outros que são verdes, alguns afirmam que é conforme. O facto é que quando o ‘pivete’ Chico Buarque foi preso por ‘puxar’ um carro, aos 17 anos, o ‘policial’ que lavrou o auto, meio confundido, terá escrito ‘cor de ardósia’.
Em Julho passado, durante a conversa que manteve com Milton Hatoum (um dos melhores escritores actuais do Brasil, autor, entre nós, da Cotovia), no âmbito da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), ele estava demasiado longe para eu poder tirar teimas. Mas agora, ‘olhos nos olhos’ (como na canção cuja letra leva a sua assinatura), no seu apartamento do Alto Leblon com vista aérea sobre o Rio de Janeiro, ia jurar que são verdes.
A incansável Miriam Cutz, da TurisRio, avisara-me que ‘para chegar a casa do Chico’ levaria mais ou menos uma hora. Pus hora e meia. Entrei no táxi, dei a morada, o motorista accionou o GPS e pouco depois, mais ou menos a meio do Botafogo, disparou um fumo branco. Rendido à evidência de um motor prestes a gripar, o sujeito encostou a viatura e eu fiquei apeada. Apanhei um segundo táxi. O motor não chegou a aquecer: mal pronunciei ‘Alto Leblon’ o taxista informou-me que não fazia a menor ideia de como lá chegar. Ainda insisti. Em vão.
O terceiro taxista conhecia o bairro, porém, desconhecia a rua. E, quase uma hora passada, o problema era precisamente encontrá-la. Interrogados, sem êxito, vários transeuntes, o chofer desesperava comigo: ‘Isto já parece São Paulo! Ninguém sabe de nada… Ninguém sabe de nada’. Por fim, o porteiro de um dos vertiginosos prédios da zona veio em nosso socorro. A meio da explicação, o motorista do táxi interrompeu os vira-à-esquerda-e-à-direita e rematou: ‘Ah! Mas isso é a rua do Chico! ‘.
A entrevista fora marcada em Portugal. Motivo: o lançamento quase simultâneo, cá e lá, do romance ‘Leite Derramado’ (Dom Quixote).
Aos media brasileiros Chico Buarque disse nada. Falou apenas na FLIP, com a casa a vir por fora. Falou de literatura, mas também a favor de várias comunidades locais, cujos moradores se manifestaram nas ruas de Paraty contra o condomínio multimilionário de Laranjeiras, que, garantem, os impede de chegar à praia.
No momento em que chego à porta de sua casa no Rio (que o próprio abre), ainda não li o que sobre ele escreveria Milton Hatoum: ‘Não foi fácil participar de uma mesa com Chico Buarque (…) O assédio a um dos artistas mais talentosos e queridos do Brasil inibe qualquer um’. Sem dúvida. Mas a verdade é que acabou por ser fácil. Pelo menos para mim (e arrisco que também para Hatoum).
A sala é luminosa e despojada, e um piano que já pertencera ao pai, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda, ocupa grande parte do espaço. Uma varanda enorme oferece um plano de conjunto dos prédios, das ruas, dos morros e da água. É aí que a conversa começa. Depois, a oficial, de gravador ligado, tem lugar lá dentro entre cafés e cigarros. Só eu é que fumei. Durante quase duas horas. Mal apanhava um intervalo, Chico assobiava baixinho."
O resto aqui para não dizerem que eu aldrabo como o(s) outro(s).

29/05/10

Uma senhora que eu não conheço de lado nenhum chamada Helena André diz que quer concertar-se comigo: era o que mais faltava!


É verdade que quem passasse no Rossio por volta das 7 da tarde podia ser levado ao engano.
Um ajuntamento na Praça D. Pedro IV seguia distraidamente um rancho foclórico que, sobre um palco improvisado, dançava uma variante qualquer do Vira do Minho. Mas isso foi às 7 da tarde e no Rossio. Ali por perto, na Avenida da Liberdade, a música fora de facto outra.
Comentando em nome do governo a manifestação, apareceu uma senhora formada em Línguas e Literatura Modernas (foda-se e pardon my french!) que dizem que é ministra do Trabalho: «o governo pretende concertação e não contestação».
Pela frase vê-se que é de Letras, mas ainda assim o trocadilho não chega aos calcanhares do O'Neill que antes andou para marinheiro e nunca foi sindicalista: Brosh É Bom.

26/05/10

A crise vista a partir do Hotel da Penha Branca, que é de charme

O senhor comendador veio na mesma comitiva do analista, do deputado eleito agora membro da Comissão Parlamentar de Saúde, do director da CIP, convidado especial do Presidente, do presidente da Comissão de Coordenação que trazia dois assessores, da comissão directiva da ARS, do presidente da Fundação e do Bastonário da Ordem da Crise e do Joãozinho Villares que agora está na Comissão de Turismo ou nas Águas Unidas ou na Metro de Superfície.
O programa da visita era complexo. Só fixei que tinham 2:30h para almoçar.
Ficaram quase todos no Hotel da Penha Branca, que é de charme.
No final da visita, disseram aos jornalistas que andamos todos a viver acima das nossas possibilidades e era por isso que vinha aí uma crise que nos ia lixar a todos, excepto a eles que estavam de partida para Lisboa.
Daqui.

24/05/10

Escuela di Espanhuel Sócrates: vem aprenderi Espanhuel connuesco



QUEM CONSEGUIR OUVIR SEM SE RIR GANHA ESTA T-SHIRT DI GRÁCIA

A book a day keeps the doctor away

Um enorme prazer. Assim se pode resumir, para começo de conversa, a leitura de Todos os Homens São Mentirosos, no caso quinteto que não é de Alexandria mas que retoma a perspectiva cubista e polissémica, delineando um retrato incompleto, complexo e, quase sempre, contraditório do seu protagonista.
Todas as biografias são projectos inúteis. A essa conclusão inevitável chegará no final da novela o francês Jean-Luc Terradillos, jornalista que intenta, sem sucesso, saber quem foi Alejandro Bevilacqua, argentino que Vila-Matas poderia ter incluído na lista dos «Escritores do Não», refugiado político na Madrid da década de 70, autor (sê-lo-á?) de um só livro que a morte leva prematuramente em voo picado e inexplicável por sobre uma varanda madrilena.
Alberto Manguel, leitor de Borges na juventude — e não eram só os livros do cego que ele lia, lia presencialmente para o cego —, senhor de uma cultura literária extraordinária (veja-se, por exemplo, No Bosque do Espelho, publicado pela Dom Quixote em 2009, uma viagem pelos livros conduzida por Alice, a do Lewis Carrol), mistura com mestria e humor o registo policial, a metaliteratura e a História, fazendo de Todos os Homens São Mentirosos uma novela que toca temas tão diferentes como as ditaduras militares, as vaidades do mundo literário e, claro, os caminhos eternamente dicótomos da memória humana.
Num tom próximo da oralidade, organiza-se em cinco capítulos, cada um deles entregue a um próximo de Bevilacqua que, do defunto, dirá coisas diferentes.
Um escritor argentino seu confidente durante o exílio em Madrid (o próprio Manguel); uma amante espanhola que detesta Manguel: “Alberto Manguel é um imbecil. Não sei o que terá dito a ti, Terradillos, acerca de Alejandro, mas ponho as mãos no fogo em como está tudo errado”, diz ela logo a abrir o segundo capítulo; um ex-companheiro de cárcere de Bevliacqua na Argentina que acabaria por trocar o amor pela escrita pelo amor de uma mulher; um delator morto e despeitado que ainda assim tem coisas para dizer; e, finalmente, Jean-Luc Terradillos, o jornalista que acaba a confessar o seu fracasso: “A história termina aqui. O verdadeiro leitor não precisa de continuar a ler. Isto é tudo. O que importa foi dito. Saber quem matou quem, como, porquê, são assuntos que apenas interessam ao burocrata ou ao inspector de polícia, e eles não lerão estas páginas.”
Assim termina, mais coisa menos coisa. Mas se o cepticismo é conclusão inevitável, já que todos os homens são mentirosos, a pergunta impõe-se: será a verdade literária?

Todos os Homens São Mentirosos
, Alberto Manguel, Teorema, 2010

21/05/10

Quem disse que as mulheres na política serviam para melhorar a coisa esqueceu-se que a estupidez anda bem repartida pelos dois sexos

A prova de vida parlamentar das deputadas Teresa Venda e Rosário Carneiro vem ao encontro de "l'air du temps" e avança com mais uma medida de austeridade: cortar nos feriados, eliminando quatro (Corpo de Deus, Dia de Todos os Santos, 5 de Outubro e 1.º de Dezembro) e acrescentando um (o "Dia da Família") de modo a obter mais três dias de trabalho por ano, o que, ninguém duvida, contribuiria decisivamente para a resolução dos problemas do país, mesmo faltando à gregoriana proposta o golpe de asa bastante para arranjar trabalho nesses dias aos 730 000 portugueses desempregados.
E, já que o Governo suspendeu a terceira ponte (a ponte suspensa) sobre o Tejo, as deputadas propõem que se acabe também com as pontes do calendário, transferindo o 25 de Abril , o 1.º de Maio, o 15 de Agosto e o 8 de Dezembro para segundas ou sextas-feiras e passando a terça-feira de Carnaval a ser, conforme os anos, a "segunda-feira de Carnaval" ou a "sexta-feira de Carnaval".
Comemorar o 25 de Abril a 24 de Abril (e porque não o 1.º de Maio em 28 de Maio?) é, além do mais, uma ideia capaz decerto de render muitos votos.

A quem possa interessar: Hêrnani anda agora por Santos nas noites de 5ª, 6ª e sábado e a música é para raparigas da minha idade

Chama-se Hêrnani Miguel e fez (por exemplo) dos Três Pastorinhos e do Targus sítios de culto da noite de Lisboa. Agora está ali no Largo de Santos, no "Deseo" ao lado da Barraca.

20/05/10

Vá lá saber-se porquê achei que uma coisa tinha que ver com a outra

ESTA MÚSICA

E ESTE TEXTO
"Uma manhã como tantas outras, a areia apresenta uma textura alveolar desenhada pela chuvada que por ali se infiltrou, o sol pressente-se por detrás da espessura cinzenta no horizonte e, de repente, a surpresa revela-se no nível do oceano; fico ali especada a transitar entre campos de visão e acabo por piscar o olho sobre o indicador para confirmar que a linha de água acerta com o meu dedo; com simpatia.
A soberba invade-me; estávamos nivelados."
Daqui, claro.

19/05/10

O exemplo islandês: eu sempre gostei muito mas mesmo muito de ilhas

Não é preciso acreditar no pai natal para notar que a diferença entre
ISTO
e o "estou muito contente comigo" de há menos de um ano, ou o "não peço desculpas por cumprir o meu dever" de ontem, após as tais uma... duas... três semanas... que mudaram o mundo...
é avassaladora, como diria o Pacheco Pereira.
Já agora, registem-se também algumas das medidas islandesas tomadas na sequência da bancarrota que atingiu o país em 2008*.
E porque há mais mundo para lá da crise, aproveite-se e leia-se "Gente Independente", do prémio nobel islandês Halldór Laxness, publicado em Portugal pela Cavalo de Ferro.

Em bom portuñol: este homem não é bom da cabeça, convenceram-no que é o messias e ainda nos vai endoidecer a todos


SE QUISER ASSISTIR CLIQUE AQUI, SE NÃO QUISER EU TAMBÉM PERCEBO
[De qualquer modo, deverá notar-se que basicamente a culpa disto tudo é que o mundo mudou na última semana, um pouco mais à frente, nas últimas duas semanas, e um pouco mais à frente ainda nas últimas três semanas...]

17/05/10

E insisto, a Europa não nasceu com a Ângela Merkel e até tem um passado [recente] turbulento para usar um eufemismo

(...) Os tratados firmados pelos náufragos deste "rebus sic stantibus", por menos tecnocráticos e por mais competentes que tenham sido os plenipotenciários apenas foram rascunho que outras canetas corrigiram, em nome de um guião iluminado pela cegueira dos controladores dos cordelinhos da hierarquia das potências da Europa...
Os mesmos que permitiram a casa roubada não sabem agora que trancas pôr na porta, apesar de terem posto um socialista francês no FMI e Constâncio a substituir o grego das estatísticas helénicas, como vice-presidente do condecorado Trichet. O problema está nos bastidores de Paris e de Berlim e nos que lhes dizem porreiro, porque não lhes deixam dizer mais nada.
O rolo compressor do politicamente correcto desta europeização criou um falso super-Estado europeu, onde os eurocratas, em defesa dos respectivos privilégios, movem processos inquisitoriais a todos quantos os criticam, impedindo que a Europa seja a necessária democracia de muitas democracias...
Os papa-reformas do Leviathan eurocrático são como os colaboracionistas de Napoleão e de Bismarck: usurparam o sonho e apenas sabem fazer contas de merceeiro. Não compreendem que o belo projecto que pode ir da ilha do Corvo a Vladivostoque não deve continuar com estes gestores do carreirismo e do neofeudalismo patrimonialista.

16/05/10

A book a day keeps the doctor away

A Relógio D’Água presenteou-nos o ano passado com o primeiro título de Arto Paasilinna em português, A Lebre de Vatanen, belíssimo romance burlesco de fundo ecológico que fez merecidamente a fama do seu autor que o escreveu no já longínquo ano de 1975.
Como prometido na altura, a editora reincidiu (publicou depois Um Aprazível Suicídio em Grupo), contando-se agora em três títulos os romances disponíveis entre nós assinados por este escritor nascido na Lapónia em 1942 e que, antes de se ter consagrado às letras, foi lenhador, operário agrícola e jornalista.
As Dez Mulheres do Industrial Rauno Rämekorpi confronta-nos com o périplo delirante do protagonista homónimo, um self-made man que acaba de fazer 60 anos e não sabe como desfazer-se da quantidade imensa de flores com que amigos e conhecidos lhe encheram a casa. Obrigado a ver-se livre delas por causa da alergia da mulher, Annikki, Rauno inicia uma viagem algo nostálgica na companhia de Seppo Sorjonen, motorista de táxi expedito e cúmplice, revisitando (sobretudo) antigas amantes a quem oferece os ramalhetes indesejados.
Os vários capítulos vão tomando os nomes dessas mulheres reencontradas, enquanto Annikki desaparece em parte incerta, adensando-se o insólito e o burlesco à medida que se somam as conquistas do velho sedutor, até que depois, passado mais do meio do livro, a coisa muda de figura.
O romance confronta-nos com a fantasia pícara e acelerada de Arto Paasilinna e com o seu humor que parece alicerçado no simples bom senso (apesar de, paradoxalmente, As Dez Mulheres do Industrial Rauno Rämekorpi transbordar de nonsense), com a sua escrita simples e precisa, e com os seus divertidos retratos femininos: da operária que tem na estante As Obras Completas de Lenine à intelectual perseguida pelo ex-marido, entretanto promovida a responsável do Museu Nacional…, que servem de contraponto ao do industrial fogoso mas ingénuo.
A tudo isto se acrescenta, para prazer do leitor português, a viagem à longínqua Finlândia, com as suas diferentes idiossincrasias e manias, algumas absolutamente identificáveis, outras tão distantes como a geografia: da política e da culinária locais ao tratamento por tu entre as personagens, da visão desprendida do sexo ao desprendido à-vontade entre os dois sexos. Se nunca foi à Finlândia, leia. Se já foi, leia também. Só a imagem do conselheiro para a indústria Rauno Rämekorpi, nu, aspirando alegremente a casa de uma ex-amante vale o livro.

As Dez Mulheres do Industrial Rauno Rämekorpi, Arto Paasilinna, Relógio D’Água, 2010

13/05/10

Das medidas anunciadas a que achei mais justa de todas foi o aumento do IVA em 1% na Coca Cola

Eu não vi. Mandei desligar a coisa há mais de um ano. Mas mesmo que pudesse ver não via porque não me posso enervar. Contaram-me.
Estava o primeiro-ministro José Sócrates (não confundir com Passos Coelho) a apresentar as medidas necessárias para sairmos da crise, incluindo o aumento de 1% do IVA em todos os escalões do mesmo, quando aparece alguém que lhe pergunta se acha justo avançar assim com a artilharia pesada e fazer disparar o preço de bens essenciais, tipo água e pão.
Para quem não perceba a pergunta, esclareço que há já por aí muita malta a pão e água e não é de sementes nem do Luso.
Vai daí o primeiro-ministro José Sócrates (não confundir com Passos Coelho, e se insisto nisto é porque eu própria os confundo...), respondeu com aquela rapidez de raciocínio que lhe é própria (e que lhe tem permitido dizer uma coisa hoje e dizer outra logo amanhã, quando não uma de manhã e outra à tarde e tudo no mesmo dia...), que se o pão ia aumentar a Pepsi e a Coca Cola também.
Antes de mais, quero saudar o primeiro-ministro por ter referido as duas marcas rivais sem esquecer nenhuma, o que lhe teria ficado mal, tanto mais que acumula as suas funções no governo com as de secretário-geral de um partido pluralista.
Em seguida, queria dizer ao senhor primeiro-ministro que se, conhecida como é a sua costela europeísta de esquerda, posso perceber o gozo que lhe terá dado taxar, de uma vez só, duas bebidas americanas (passa a Coca Cola de 5%, ou seja, do mais baixo escalão do IVA, para 6%), por outro lado não entendo por que razão uma embalagem do europeíssimo Nestum (quem diz Nestum diz cereais, quem diz cereais diz pão…), taxada já em 20% (ou seja, o mais alto valor do escalão) passa a 21%. Porquê? O que é que o governo presidido por V.Exª pode ter contra a Nestum?
Eis uma pergunta que gostaria de ver respondida, sem com isto pretender pôr em causa a bondade das medidas anunciadas pelo senhor primeiro-ministro Passos Coelho, perdão José Sócrates (eu bem disse que os confundia).
Fusão celular observada aqui

O capitalismo que nos há-de foder a todos ou bem podem meter os PECs num sítio que eu cá sei

(...) Para que se faça uma ideia: nos últimos anos, a economia mundial cresceu à volta de 4%; o comércio mundial 4,5%; e o movimento de capitais 60%!
Como é possível conviver com um sector financeiro que em algumas décadas cresceu várias vezes mais do que a economia real?
É neste contexto que se inserem as novas medidas acordadas em Bruxelas para Portugal e outros países. Através dessas medidas não se trata, como a experiência já demonstrou, de fazer conjunturalmente sacrifícios para garantir a médio prazo o crescimento da economia, o desenvolvimento económico, o fomento do emprego, enfim, aqueles objectivos que justificariam um sacrifício presente para alcançar uma vantagem futura. Nada disso.
O resultado destes sacrifícios é estagnação económica, mais desemprego, menores salários, mais encargos. E quem ganha com isso? Antes de mais vão ganhar todos aqueles que tiverem de pagar menores salários, aqueles para os quais forem transferidos os bens públicos rentáveis e, obviamente, o capital financeiro que, continuando a fazer empréstimos a preços especulativos, duplicará, triplicará, facilmente os lucros e terá por aquela via garantida o reembolso da dívida…que não cessará de crescer.
(...)
boneco de Enki Bilal

12/05/10

A Europa ou como parece que disseram os chineses uma imagem vale mais de mil palavras*

Sarkozy, presidente do país que tradicionalmente divide com a Alemanha os destinos da Europa, no beija-mão a Hu Jin Tao, presidente chinês. Fotografia de Michel Euler/Reuters, de 28 de Abril deste ano. A imagem seguinte regista o mesmo momento mas desta vez a curvatura, mais acentuada, é do secretário de Estado francês Chantal Jouanno.

Perdoai-lhe senhor que ele não sabe o que diz

"Tenho uma religiosidade própria" e "gosto de partilhar esse sentimento muito transcendente com outras pessoas".
Eu sei que um curso de engenharia (e para mais ao domingo) não garante eloquência. Mas o que raio poderá querer dizer esta frase do primeiro-ministro? Tanta transcendência só por causa de uma missa?!

11/05/10

Do deus único ou só mais um post inspirado na visita papal e não se fala mais nisso

«Um dia, estava a atravessar uma ponte e vi um homem no rebordo, prestes a saltar. Ao ver aquilo, corri e disse:
— Pare! Não faça isso!
— Por que não? — replicou ele.
— Bem, há imensas coisas pelas quais vale a pena viver!
— Como por exemplo?
— Bem... é religioso?
Ele disse que sim.
— Eu também — continuei eu. — Está a ver? Já temos imensas coisas em comum, por isso vamos conversar. É cristão ou budista?
— Cristão.
— Eu também! É católico ou protestante?
— Protestante.
— Eu também! É episcopaliano ou baptista?
— Baptista.
— Uau! Eu também! É da Igreja Baptista de Deus ou da Igreja Baptista do Senhor?
— Baptista de Deus.
— Eu também! É da Igreja Baptista de Deus original ou da Igreja Baptista de Deus Reformada?
— Igreja Baptista de Deus Reformada!
— Eu também! E é da Igreja Baptista de Deus Reformada na reforma de 1879 ou da Igreja Baptista de Deus Reformada na reforma de 1915?
— Igreja Baptista de Deus Reformada, reforma de 1915! — respondeu o homem.
— Morre, maldito herege! — disse eu, e empurreio-o da ponte.»
in Heidegger e um Hipopótamo Chegam às Portas do Paraíso, Thomas Cathcart & Daniel Klein, Dom Quixote, 2010

10/05/10

Eu sou do tempo do direito à preguiça e por isso estou-me nas tintas para a visita do papa

Sou insuspeita. Não me ficará bem ser eu própria a dizer isto, mas é verdade. Não gosto deste Papa, como não gostava do outro (ainda menos). Por princípio, não gosto de gente que nunca se engana. Começa a irritar-me, contudo, o sururu feito à volta da sua visita a Portugal. Sobretudo quando se alicerça numa coisa tão bacoca como o escândalo da tolerância de ponto. Eu sou do tempo em que se lia Paul Lafargue e se levava a sério a preguiça. Aos funcionários públicos indignados com o facto de não poderem trabalhar, sugiro que em vez de abaixos-assinados se apresentem ao serviço, como na tropa. E se não os deixarem servir a pátria, que se acorretem aos edifícios fechados e exibam cartazes a dizer não sou católico, deixem-me trabalhar. Se bem me lembro, foi uma frase de Cavaco Silva que ficou famosa nos idos de 90. É ver o resultado.
E numa coisa estou com o Papa. Ele não é deste mundo e eu também não.

09/05/10

Dos Gregos que a Europa já existia antes da Ângela Merkel

"Until now we used to say that the Greeks fight like heroes. Now we shall say: the heroes fight like Greeks", Winston Churchill

"On the 28th of October 1940 Greece was given a deadline of three hours to decide on war or peace but even if a three days or three weeks or three years were given, the response would have been the same. The Greeks taught dignity throughout the centuries. When the entire world had lost all hope, the Greek people dared to question the invincibility of the German monster raising against it the proud spirit of freedom", Franklin D. Roosevelt

"Tenho pena de estar a ficar velho e de não poder viver o suficiente para agradecer ao povo grego, cuja resistência decidiu a II Guerra Mundial", José Estaline

"Em nome da verdade histórica devo reconhecer que, de todos os nossos adversários, apenas os gregos lutaram com coragem e total indiferença face à morte", Adolf Hitler

08/05/10

E se fosses dar lições de direito para a Coreia do Norte!

"Proliferam nos media e na blogosfera os especialistas que condenaram Ricardo Rodrigues por um crime de furto — por ter subtraído dois gravadores. A estes especialistas aconselha-se a leitura do artigo 203.º do Código Penal.
Para haver furto, é preciso que quem subtrai uma coisa tenha “a ilegítima intenção de apropriação”. Se Ricardo Rodrigues não tinha, como se tornou evidente, intenção de fazer dos gravadores sua propriedade, mas sim de os entregar a um depositário (como o fez), não há furto nenhum.
Qualquer conversa séria sobre o que aconteceu na Assembleia da República começa aqui e não com as levianas acusações de furto. (...)"
Delírio lido aqui a partir daqui.

05/05/10

A pergunta é retórica e ainda assim não lhe resisto: mas onde é que o PS vai desencantar estes cromos?

Cá para mim, tudo começou com o Augusto Santos Silva a garantir que gostava de malhar na malta. A porta do género musculado-ó-popularucho escancarou-se e, depois disso, assim de repente, já tivemos direito ao par de cornos do Pinho e ao manso era a tua tia do Sócrates que isto é um país de machos ora bem.
Resumo feito, informo que nada tenho contra a linguagem pícara (mesmo a gestual). Já um gajo palmar um par de gravadores não concordo.
Esclareça-se: não concordo, não é por achar que um gajo palmar um par de gravadores seja crime por aí além. Na minha vida, embora nunca tenha palmado gravadores, pelo menos que me lembre, confesso que já palmei várias coisas (e não falo só de livros).
A diferença — que no caso não será despicienda —, é que, ao contrário do Ricardo Rodrigues, eu não sou coordenadora de porra nenhuma (e muito menos da área da Justiça do PS).
Reconheceu o próprio ter agido "irreflectidamente", para se justificar logo em seguida com a "violência psicológica insuportável" a que se vira sujeito. E Assis, esse outro grande iluminado do PS, saiu logo a dar-lhe a mão e suponho que até que o ombro.
Pois olhe, Ricardo Rodrigues, só lhe quero dizer uma coisa: muito pior do que palmar é vir fazer queixinhas. Se eu fosse a mãe de Vossa Excelência, que não tenho idade para isso, note-se, o que eu lhe dava era um par de galhetas. E não seria certamente pelos "dois equipamentos de gravação digital".
Moral da história. Como dizem que disse o Salgueiro Maia: existem os Estados comunistas, existem os Estados capitalistas, e existe o estado a que isto chegou.

A book a day keeps the doctor away: "Nova Iorque", Brendan Behan

Imagine-se um combate de boxe transposto para o papel. Imagine-se o saltitar rápido dos pés, o bailado das mãos, os golpes assestados no adversário. Traduza-se isso em palavras, frases, parágrafos, episódios curtos e velozes. Se conseguirmos imaginar isso, ficaremos com uma pequena ideia do que é Nova Iorque, o livro de Brendan Behan que em abençoada hora Carlos Vaz Marques leu e a Tinta da China editou.
Brendan Behan (1923-1964), irlandês daquela colheita que deu bêbedos famosos e escritores extraordinários, é um ficcionista das margens, dos que além de ficcionistas foram aventureiros, marinheiros e trapaceiros, provando de tudo o que a vida tinha para lhes ensinar... antes de terem sido inventadas as escolas de escrita criativa.
Filho de uma família pobre de republicanos, mais tarde membro do IRA, decidiu-se pela militância nas letras durante um dos seus périplos pelas prisões britânicas. Foi poeta, dramaturgo, memorialista e contista. Apesar do relativo sucesso junto do público e da crítica que conheceu em vida (ou também por isso), o alcoolismo acabaria por vencê-lo precocemente, aos 41 anos.
Nova Iorque, o título agora editado entre nós, é uma viagem literária electrizante por uma cidade eléctrica e insone esgalhada a um ritmo de nos deixar sem fôlego.
Com prefácio curto de Enrique Vila-Matas, as memórias expressas no livro organizam-se de modo algo caótico e errático (o que é uma virtude), traduzindo-se numa torrente de pequenas histórias. Quanto ao humor, esse é a rodos.
Nova Iorque transporta-nos a lugares (bares) onde nunca entraremos mas que, como escreve Vila-Matas, nos deixam (inexplicavelmente) cheios de saudades, e apresenta-nos a personagens com quem (maioritariamente) também gostaríamos de ter tomado um copo.
Talvez o livro de Brendan Behan seja sobre uma cidade (e uma Irlanda...) que já não existe (embora muitos dos lugares de que ele fala ainda existam — incluindo o Hotel Chelsea, onde Nova Iorque foi escrito). Apesar disso, sabe-se, a big apple continua a ser um dos locais mais fascinantes do mundo. E isso também se deve de certeza ao facto de ter acolhido gente como Brendan Behan, capaz de escrever assim: «Não há nada que me irrite mais do que essas pessoas que tentam rotular gerações de escritores, como se toda a escrita fosse produzida numa maternidade. Por amor de Deus, os escritores não vêm em gerações.
Alguém me perguntou certa vez se eu era um escritor da classe operária. Ora, sem dúvida que é essa a minha origem, mas não me considero um escritor da classe operária, nem um escritor irlandês, nem de nenhuma outra seita em concreto. Considero-me apenas um escritor.
— Vá perguntar a Evelyn Waugh se ele é um escritor da classe média — respondi — Se ele disser que sim, então eu serei um escritor da classe operária.
Tenho o maior respeito pela prosa do Sr. Waugh, apesar das suas manias, das suas cartolas, dos seus coletes de cetim e dos seus enormes auscultadores. Tenho a certeza de que poderia comprar uns mais pequenos, mas prefere não o fazer. Ainda assim, é um escritor maravilhoso. Não conheço ninguém, além de Waugh, que pudesse ter escrito uma frase assim: "O seu queixo era tão proeminente que, quando comia, as migalhas que lhe caíam dos lábios não ficavam irremediavelmente perdidas."
(...)
O famoso actor irlandês Michael MacLiammoir escreveu em tempos num jornal que era uma pena os escritores irlandeses não serem mais unidos. Referia-se a mim e a Samuel Beckett, um querido e velho amigo meu e um extraordinário dramaturgo. Não sei de que tratam as suas peças, mas sei que gosto delas. Não sei como será nadar em pleno oceano, mas sei que gosto. Gosto da sensação da água a fluir em mim.
Não percebo por que motivo os escritores têm de ser unidos, tal como não vejo motivos para os canalizadores ou os banqueiros serem unidos.
O Padre Tom Fox, autor de vários documentos excelentes, apesar de um pecador como eu os considerar por vezes um pouco deprimentes, disse-me que a única coisa que detestava num restaurante era quando o sentavam ao lado de outro padre.
Mas os escritores são unidos no sentido em que costumam apreciar a companhia uns dos outros, já que muitas vezes sentem que os outros escritores são as únicas pessoas com quem vale a pena discutirem o seu trabalho. A não ser que tenhamos em conta a questão do dinheiro, claro. Como dizia o Dr. Johnson, um homem que escreva e que não o faça por dinheiro é uma besta quadrada.»
Disto já não há!
Nova Iorque, Brendan Behan, Tinta-da-China, 2010
*uma versão mais curta deste texto foi publicada no semanário Expresso