09/08/09

Chico Buarque: a tal de entrevista





Para mim, os olhos dele são verdes. Há quem conteste. E, a crer no jornalista brasileiro Sidney Garambone (Isto É, 11-11-1998), nem os seus familiares se conseguem pôr de acordo: uns dizem que são azuis, outros que são verdes, alguns afirmam que é conforme. O facto é que quando o ‘pivete’ Chico Buarque foi preso por ‘puxar’ um carro, aos 17 anos, o ‘policial’ que lavrou o auto, meio confundido, terá escrito ‘cor de ardósia’.
Em Julho passado, durante a conversa que manteve com Milton Hatoum (um dos melhores escritores actuais do Brasil, autor, entre nós, da Cotovia), no âmbito da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), ele estava demasiado longe para eu poder tirar teimas. Mas agora, ‘olhos nos olhos’ (como na canção cuja letra leva a sua assinatura), no seu apartamento do Alto Leblon com vista aérea sobre o Rio de Janeiro, ia jurar que são verdes.
A incansável Miriam Cutz, da TurisRio, avisara-me que ‘para chegar a casa do Chico’ levaria mais ou menos uma hora. Pus hora e meia. Entrei no táxi, dei a morada, o motorista accionou o GPS e pouco depois, mais ou menos a meio de Botafogo, disparou um fumo branco. Rendido à evidência de um motor prestes a gripar, o sujeito encostou a viatura e eu fiquei apeada. Apanhei um segundo táxi. O motor não chegou a aquecer: mal pronunciei ‘Alto Leblon’ o taxista informou-me que não fazia a menor ideia de como lá chegar. Ainda insisti. Em vão.
O terceiro taxista conhecia o bairro, porém, desconhecia a rua. E, quase uma hora passada, o problema era precisamente encontrá-la. Interrogados, sem êxito, vários transeuntes, o chofer desesperava comigo: ‘Isto já parece São Paulo! Ninguém sabe de nada… Ninguém sabe de nada’. Por fim, o porteiro de um dos vertiginosos prédios da zona veio em nosso socorro. A meio da explicação, o motorista do táxi interrompeu os vira-à-esquerda-e-à-direita e rematou: ‘Ah! Mas isso é a rua do Chico! ‘.
A entrevista fora marcada em Portugal. Motivo: o lançamento quase simultâneo, cá e lá, do romance ‘Leite Derramado’ (Dom Quixote).
Aos media brasileiros Chico Buarque disse nada. Falou apenas na FLIP, com a casa a vir por fora. Falou de literatura, mas também a favor de várias comunidades locais, cujos moradores se manifestaram nas ruas de Paraty contra o condomínio multimilionário de Laranjeiras, que, garantem, os impede de chegar à praia.
No momento em que chego à porta de sua casa no Rio (que o próprio abre), ainda não li o que sobre ele escreveria Milton Hatoum: ‘Não foi fácil participar de uma mesa com Chico Buarque (…) O assédio a um dos artistas mais talentosos e queridos do Brasil inibe qualquer um’. Sem dúvida. Mas a verdade é que acabou por ser fácil. Pelo menos para mim (e arrisco que também para Hatoum).
A sala é luminosa e despojada, e um piano que já pertencera ao pai, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda, ocupa grande parte do espaço. Uma varanda enorme oferece um plano de conjunto dos prédios, das ruas, dos morros e da água. É aí que a conversa começa. Depois, a oficial, de gravador ligado, tem lugar lá dentro entre cafés e cigarros. Só eu é que fumei. Durante quase duas horas. Mal apanhava um intervalo, Chico assobiava baixinho.





Todas os brasileiros a quem disse que vinha falar consigo, comentavam como que emocionados: ‘Oh! Meu Deus, vai entrevistar o Chico!
Bom, nesse caso você conheceu as pessoas certas (risos). Porque isso não é assim. Se, por um lado, existe uma certa boa vontade, gente que gosta porque é simpático, por isto e aquilo, existe também o contrário…

Talvez, mas o que pude confirmar, até pela forma de tratamento, ‘o Chico’, é que o seu estatuto é de ídolo. Isso incomoda-o?
Não penso muito nisso, não. Me incomoda um pouquinho, por exemplo, que a gente esteja falando de um livro e que o autor se ponha à frente. Acho que o livro é mais importante do que o autor. Foi por isso que aqui no Brasil não dei entrevistas, para não tirar proveito dessa eventual simpatia. Porque existe. Agora, existe na mesma medida e com a mesma intensidade com que existe uma objecção e antipatia muito grandes.

Esses dois pólos estarão ligados, também, à sua imagem política…
Será, mas eu há muito que renunciei a qualquer relevância política. Isso tinha a ver com a ditadura, a pressão, a falta de liberdade, quando a música popular e os artistas representavam um papel fora do normal… Era uma situação estranha.

Apesar do que diz, em Paraty, foi para si que os manifestantes apelaram.
Em podendo me manifestar, não me recuso. Só que a minha voz não tem importância nenhuma. Ou tem a importância que tem. Não se trata de um desligamento da política ou das questões sociais, continuo atento ao que se passa no meu país. Se trata de um recolhimento, por considerar que há pessoas mais próximas desses problemas. Há políticos. Por exemplo, na questão ambiental, a Marina Silva [ex-ministra do Meio Ambiente de Luiz Inácio Lula entre 2003 e 2008, quando apresenta a demissão por divergências com o governo]. Ela pode falar sobre os caiçaras de Paraty muito melhor do que eu. Escreve uma coluna num jornal, é senadora… Porque é que eu vou dar entrevistas sobre isso? Não vejo muito sentido. Agora, se for solicitado, naquele momento farei.

E eles sabiam disso…
Talvez vejam em mim um vínculo maior com essas causas sociais. Mas depois… o que li nos jornais. Disseram candidamente que foram falar comigo porque a imprensa estava voltada para mim e assim chamariam mais a atenção. Não por ser eu, mas porque era para onde a imprensa estava olhando.

Está a querer dizer que a nova geração vai ter consigo, não por si mas por ser famoso.
Exactamente. No caso foram pragmáticos (risos). Para onde é que as câmaras estão apontando? Então é para aí que vamos…

Trocando a política pela literatura. No longo caminho para cá (risos) tive tempo para reformular uma pergunta. Ia perguntar-lhe porque é que um letrista – e muita gente não hesitaria em chamar-lhe poeta de canções – prefere a prosa. Mas depois pus-me a pensar que muitas das suas letras contam histórias…
Embora as minhas letras não pretendam ser poesia, na verdade as minhas músicas que contam histórias são poucas. É que às vezes as canções que ficam são ligadas ao teatro… Há muito isso. Depois tornam-se independentes, mas na origem foram escritas para cenas de teatro, personagens teatrais e tal, e então elas são mais narrativas. Quando ganham vida própria, as pessoas não ligam uma coisa à outra. Mas eu nunca escrevi poesia. Assim como nunca escrevi uma letra de música sem música. A minha letra é feita em função da música. Sou músico antes de ser letrista. Então, para mim escrever prosa é uma coisa à parte, não tem nada a ver com a literatura da canção. É outra arte, outra maneira de lidar com as palavras.

O letrista nunca escreveu poemas?
As pouquíssimas coisas que fiz eram coisas de garoto, muito jovem. Poemas com formas fixas, sonetos… Até brinco com isso, fazer sonetos de circunstância. Agora, eu não sei escrever. Não me sai. Se eu me quiser sentar para escrever poesia, não sei por onde começar. Sou condicionado pela música. A métrica será a métrica da música. As rimas serão em função da música.

A música antecede…
Sempre! Sempre antecede a letra. Tenho muitos trabalhos feitos de pareceria. O compositor me entrega a música pronta e eu devolvo com a letra. A letra em cima daquela nota, tudo certinho e tal… Quando faço sozinho, por vezes durante a feitura da música a letra vai surgindo, mas sempre em função da música. Nunca começo pela letra, não sei fazer isso.

Na prosa sente-se mais livre?
Sinto-me mais livre. Se bem que na prosa, tenho a impressão que se poderia reconhecer uma vocação musical. Eu sinto necessidade que ela corresponda a um rigor musical. No sentido de ter uma certa cadência, ritmo… Muitas vezes mudo uma frase, uma palavra, e não paro enquanto não me satisfizerem musicalmente. Não que eu fale a frase em voz alta, ou vá cantar aquilo. Mas há uma exigência quase musical. Agora, na criação de prosa, evidentemente, há que haver uma lei narrativa. Se bem que muitas vezes a gente supõe que não, ou a gente não quer. Mas aí, acho que é um pouco a inveja que a prosa tem da poesia. Eu, na verdade, o que menos me atrai na escrita de um romance é a história. Me interessa mais trabalhar com a forma, a forma de contar aquela história… A história em si não é nada, muitas vezes não é nada.

Neste seu livro sente-se muito isso. Os cortes, as repetições. Mesmo o facto dos capítulos serem curtos. Mas, provavelmente, por ser músico, não precisa de ler alto.
É uma música que está dentro da cabeça. A cabeça pensa a música, não precisa de cantar para perceber que música é aquela. Os capítulos são todos feitos de um parágrafo só. Os capítulos são parágrafos. E há um desejo que eles sejam um pensamento fluente, que não haja nenhuma interrupção. Uma coisa vai puxando a outra, como se fosse um desafogo daquele velho falando, falando, até… até ele cansar. Pá! (risos) Aí retoma o segundo parágrafo e vai, vai, vai, mesmo que não tenha interlocutor, mesmo que os interlocutores sejam imaginários ou que estando ali não falem. Ele não quer saber, ou pode ser surdo. Ou então fala sozinho…

E relê os seus livros depois de publicados?
Não. No caso, fiquei com o velho durante um ano e meio. Durante aquele tempo você vive com aquilo, depois termina e você diz: tá bom! É o melhor que eu posso fazer. Um pouco como: agora eu posso morrer… Não posso morrer, não (risos). Mas há essa necessidade de se libertar.

Disse há pouco que uma história pode ser nada. A propósito disso, porque já vi o seu livro anunciado como um romance sobre a história do Brasil, e eu, confesso, com honrosas excepções torço um bocadinho o nariz à ideia do romance histórico…
Também eu, também eu… Acho mesmo uma coisa meio chata.

… mas depois comecei a ler, e as memórias do velho Eulálio, imaginando que seriam outras, se a solidão, a raiva e a força dele se mantivessem, o que ele, no concreto, recorda, quase seria irrelevante.
A história do Brasil vai pontuando um pouco. O passado do pai, do avô, como a própria história do Rio de Janeiro que se vai transformando junto. Ele vai envelhecendo e o Rio, de certa forma, também vai perdendo a importância que tinha. Mas eu não pretendo contar a história do Brasil. Agora, há elementos ali, personagens da política, por exemplo, que dão um pouco a entender o que eram, enfim, as mazelas brasileiras, e que se perpetuam até hoje. A confusão entre o público e o privado, um tema que o meu pai aborda em ‘Raízes do Brasil’, a natureza conciliadora do brasileiro, as formas de nepotismo, essa maneira quase familiar de se tratar a coisa pública… Coisas que já foram ditas e reditas. Isso está lá. Mas talvez porque o meu pai é historiador, e as pessoas imaginam que eu seria muito influenciado por ele, deu-se uma importância maior do que a que eu acho que a história do Brasil tenha no livro.

Porquê ‘Leite Derramado’? Lembrou-me o ‘não chorar sobre leite derramado’, mas depois fui achando cada vez mais que a expressão teria antes que ver com as mulheres retratadas, com a Matilde… Há uma ideia de maternidade…
Mas tem, claro. Tem essa ideia de maternidade o tempo todo, e o título me ocorreu exactamente durante uma cena que está lá, que é o leite derramado, literalmente derramado… Eu ainda fiquei um pouco hesitante por causa justamente desse dito vulgarizado, que parece um pouco título de auto-ajuda (risos). Mas depois pensei que não podia ser outro.

A propósito deste seu trabalho, vários críticos falaram de Machado de Assis. É leitor de Machado?
Não especialmente. O Machado, eu li quando tinha 15 anos. Mas como em 2008 se comemoraram os 100 anos da morte dele, pode ser que isso tenha reavivado em mim alguma coisa do ‘Dom Casmurro’. Só li esse e o conto ‘O Alienista’. Eram deveres da escola. Mas algum parentesco há-de haver. A gente não sabe.

Por falar de brasileiros consagrados. Quando disse na FLIP que não sabia o que seria mais importante, se Guimarães Rosa se João Gilberto, onde é que queria chegar?
Eu estou reagindo a um certo tipo de preconceito, que é semelhante a um preconceito de classe em relação à música popular. No Brasil, eu acho isso um absurdo. Então, é uma tentativa de me embaraçarem quando dizem, por exemplo, que em Paraty vai estar o cantor Chico Buarque. Acham que eu me sinto diminuído com o ‘cantor’. Como se o cantor quisesse ser escritor. Eu já disse várias vezes que não sou, não quero ser escritor, não faço questão de ter essa toga, essa carteirinha, de pertencer a esse clube. O meu mundo é o mundo dos músicos. E não acredito nessa hierarquização, não acredito que o escritor pertença a uma classe superior a um compositor de música popular ou a um cantor no Brasil. E isso existe muito. Tem 50 anos que Vinicius de Morais foi expulso do Ministério das Relações Exteriores porque era um boémio e cantava… Há 50 anos que, de certa forma, ele desistiu da poesia culta para se dedicar à música popular. E ainda hoje há uma certa má vontade… 50 anos! Pôxa! Para a formação cultural do brasileiro, não sei se Guimarães Rosa, que é o meu escritor preferido, é mais importante do que João Gilberto. Sinceramente, não sei. Os literatos não gostam que se diga isto, vão ficar escandalizados, mas eu não digo para provocar. Estou reagindo a uma provocação, talvez, mas sem intenção de épater… o literato (risos). Digo por liberdade. Afirmo e confirmo.

Voltando ao livro, como é que lhe apareceu o velho Eulálio?
Antes de aparecer o velho, apareceu o tempo do velho. O passado. Eu comecei-me a interessar por aquele princípio do século. E, por algum motivo, comecei a querer criar uma acção por volta dos anos 20. Comecei a ler sobre isso. A ler sobre um navio, o ‘Lutécia’, como eu contei em Paraty e é verdade. Aliás, continuo a falar verdade, não estou mentindo (risos). E depois houve uma cantora brasileira que lançou um disco de músicas minhas, com uma música que eu nunca mais tinha ouvido, ‘O Velho Francisco’. Eu já tinha um velho, pois, um outro, um antigo escravo delirando num asilo, inventando passados gloriosos, fui isto, fui aquilo… E isso aí foi um pouco a chave do meu personagem, que é um velho inteiramente diferente, mas enfim, trata-se de um velho a relembrar factos, políticos ou não, da sua infância, da sua juventude e tal. Achei que havia nisso algo interessante como forma de narrativa. Um velho rememorando, às vezes, tem uma forma moderna de contar, essas idas e vindas, esse tempo fluido… Eu presto atenção à conversa de velhos, eu me interesso por isso. Por essa memória selectiva, as fugas, as tergiversações, mesmo aquelas mentirinhas ou lapsos de memória, coisas que voltam não exactamente como eram…

E velhos como ele ainda existem? Com aquela visão classista e tão reaccionária, uma visão que nem sequer é ideológica, vem das tripas: as coisas são assim!
São assim! Eu conheço isso. Conheço por dentro. Pessoalmente. Eu ouvi esse tipo de coisa a vida inteira. Claro que as coisas se transformaram. Se bem que esse pensamento também ficou um pouco disfarçado. No fundo, não se transformou tanto. Transformou-se em relação, por exemplo, a preconceito contra imigrantes, filhos de imigrantes. Isso existia. Hoje em dia ninguém põe restrições no Brasil a um sujeito com sobrenome italiano ou a uma família árabe estabelecida. Na minha juventude, era comum referir-se filho ou neto de italiano como carcamango, os sírios-libaneses como turcos, de modo depreciativo. Os casamentos, vamos dizer, entre famílias tradicionais e filhos de emigrantes, como aparece no livro, eram mal vistos. Isso hoje não existe mais… Em relação aos emigrantes brancos. Em relação aos pretos e aos mulatos ainda existe. Há uma pesquisa, disse-me no outro dia o pessoal da Universidade de São Paulo, que é muito interessante. A pergunta é: você tem algum tipo de preconceito rácico, de classe, de sexo e tal? Não! 97%, não! Você conhece alguém próximo que tenha preconceito? 99 %, sim! (risos)

Alguém está a mentir!
A conta não dá. Mas é isso mesmo. Esse velho fala como um velho de 100 anos, pensa como um velho de 100 anos e eu procurei entrar na cabeça dele.

E ele já se foi embora? Porque em Paraty disse que o velho continuava por aqui feito fantasma. Que ter partido a sua perna há pouco tempo, talvez tivesse resultado de um empurrão dele.
Eu, na verdade, quebrei a perna jogando futebol. De qualquer forma, estou despedindo ele hoje (risos). Com você. Espero que o leve para Portugal e eu me pretendo dedicar a outras coisas.

Por falar de Portugal, e antes de me ir embora com o Eulálio. Tem algum contacto com o que lá se produz culturalmente?
Há hoje uma penetração maior da cultura portuguesa no Brasil do que há 10 anos. Os cantores portugueses eram uma raridade. Conhecia-se a Amália Rodrigues e o Carlos do Carmo. A partir dos Madre de Deus, talvez por causa do filme do Wim Wenders, passou a haver um interesse que não existia antes. Na literatura há o José Saramago, o Lobo Antunes. No cinema, o Manoel de Oliveira…

O Manoel de Oliveira é o nosso Niemeyer…
É isso aí (risos).



3 comentários:

cláudia disse...

dizer por liberdade.

(que privilégio, Ana, uma entrevista assim)

Anónimo disse...

Li na Única, a entrevista, e que maravilha! E, infelizmente, tenho o mau hábito de não ligar a quem a escreve...de repente, venho aqui e deparo-me com a mesma feita ao Chico. Fui logo confirmar o nome.

Muito bem, grande privilégio, sim.
Gostei muito.
Espero encontrar mais 'obras' na revista...

Ana Cristina Leonardo disse...

foi muito fácil entrevistá-lo: é inteligente, simpático e bonito.
E um privilégio, sim.