27/04/13

Pai, já sou secretário de Estado

Ninguém se assuste, vou citar Karl Marx: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de diversas formas, o que importa é transformá-lo”. 
Isto foi escrito em 1845 e, desde então, houve várias tentativas de transformação do mundo. Nem todas correram bem. Algumas correram notoriamente mal. Quanto às interpretações, também não foi um mar de rosas. 
Por exemplo, small is beautiful era uma palavra de ordem dos anos 70, sacada ao livro de E. F. Schumacher onde este defendia uma economia de escala humana. Com a globalização, a ordem de grandeza agigantou-se e depressa passámos ao size matters. Outro exemplo, os que recordam o pós-25 de Abril terão presente a frase: “Os ricos que paguem a crise”. Três décadas depois, a culpa é nossa que andámos a viver acima das nossas possibilidades.
O mundo é complexo. Segundo Marx, há que interpretá-lo e transformá-lo. Mas hoje nem uma coisa nem outra: apenas reagimos. Oscar Wilde disse algo que se encaixa aqui: A sentimentalist is one who desires to have the luxury of an emotion without paying for it. Estava certo, e no tempo dele nem havia televisão.

Ao sentimentalismo acresce o moralismo balofo numa altura em que a política, vazia de substância, se tornou num viveiro de adjectivos tão cheios de boas intenções como o Inferno. Assim sendo, só por imperdoável descuido este rasgo de genialidade não valeu a Miguel Gonçalves um lugar de secretário de Estado: "É um mito (…) dizerem que não há trabalho. Muitos dos que estão desempregados, estão desempregados porque, ponto número um, não querem trabalhar e, ponto número dois, são maus a fazê-lo.»
E se para secretário de Estado faltou a Miguel Gonçalves insultar o governo, é mandá-lo para Silicon Valey e boa viagem como dizia o outro.

Deste Pensamento Filosófico Português não tens tu, João Lisboa. E com nova ortografia e tudo!

EXCERTOS AO CALHAS

"Se nos planos das abordagens científica e filosófico-política estão amplamente identificadas as diversas disfunções dos modelos de organização política, económica e social que estão na origem de (ou que influenciam) atrasos ao desenvolvimento e ao progresso das sociedades, com particular enfoque para as discriminações patenteadas na organização das sociedades, a verdade é que o ritmo da efetivação das correções proclamadas não acompanha de forma satisfatória a evolução filosófico-política, científica e, até, em certa medida cultural sobre a matéria."

"Neste enquadramento, sobrevindo ainda a responsabilidade de diálogo e de rememoração intergeracional que nos incumbe, assumindo que os projetos e discursos políticos e de cidadania, seja sobre questões humanas e sociais, seja sobre questões de macroeconomia, que dominam no contexto atual, devem evidenciar que as políticas corporalizadas por assimilação das perspetivas implícitas à diversidade são um fator determinante para o progresso humano, político, económico e social das sociedades."

DAQUI

A partir daqui e daqui.  

24/04/13

De 24 para 25 foi assim lá em casa, em 1974

Fomos para a cama. Adormecemos. A minha mãe levantou-se, como habitualmente antes das 7. Eu acordei, cheirou-me a torradas e virei-me para o lado a amaldiçoar as torradas e o barulho. A minha mãe terá então ligado o rádio porque as ondas hertzianas começaram a chegar-me em sons indistintos, até que o som se tornou mais alto, inesperadamente mais alto, absurdamente mais alto.
Depois ouvi a minha mãe a passar apressada pelo corredor e a chamar pelo meu pai, vem ouvir, vem ouvir, aconteceu alguma coisa, aconteceu alguma coisa, e senti que o meu pai se levantava e ia com ela para a cozinha.
Na cozinha, as vozes do meu pai e da minha mãe misturavam-se com a música que vinha do rádio e de vez em quando um deles dizia chiu! chiu! Comecei a ficar intrigada e estava quase a levantar-me quando ouvi o meu pai gritar é a revolução, é a revolução e depois correr para a porta e começar a subir as escadas do prédio a chamar pelo Zé Augusto que era o vizinho anti-fascista do 3º andar, Zé Augusto, acorda, acorda, porra, é a revolução, é a revolução e depois, eu já levantada, vi a minha mãe ir atrás do meu pai com o pijama na mão, olha o pijama, olha o pijama, e o meu pai terá descido uns degraus para vestir o pijama e se não foi nu avisar o vizinho do 3º andar que era a revolução nem apanhou o comboio de pijama para ir ter com a revolução, nem por isso deixou de só aparecer três dias depois descalço e afónico porque tinha perdido os chinelos com que fora ter com a revolução e foi assim que se festejou o 25 de Abril lá em casa e quem nunca foi ter com a revolução de chinelos e voltou descalço que fique calado que não sabe do que fala.

Sempre a realpolitik - ontem como hoje.

A 5 de Outubro de 1938, as autoridades suíças pediram à Alemanha que sinalizasse nos passaportes a condição judaica dos seus portadores. E foi assim que foi inventado o carimbo J - para limitar a entrada de judeus na civilizada Suíça.

No século XXI, e depois de impedir a entrada aos indesejáveis do Leste e Centro europeus, chega a vez dos privilegiados da Comunidade Europeia.
Já estou a ver os comentários: ao menos não entra ninguém. Ninguém? Vai uma aposta?


Notícia aqui.

A cadela


Fotografia de Maria Leonardo

23/04/13

23 de Abril de 1974

Há uns aninhos também era terça-feira. A esta hora já teria saído do liceu e vindo para casa. Devia estar de socas e calças de ganga. Provavelmente a ler um livro subversivo e a fazer festas ao gato que se chamava Pompidou. Ou então tinha ido à praia. Ou então tinha vindo a Lisboa, a Económicas, onde os putos do MAEESL preparavam a revolução. Talvez até estivesse a beber uma laranjada com o Zé Manel Fernandes que já então era um rapaz sensato. Na verdade, não me lembro se na altura bebia laranjada. Ora aí está um bom tema de investigação. Que raio de bebidas beberia eu na altura se nunca gostei de refrigerantes e era demasiado nova para apanhar bebedeiras?

O chiqueiro

"Entrar num governo, seja como governante ou assessor, uns dias depois de insultar os seus responsáveis políticos com nomes feios, de pedir a sua demissão, de os mandar ir para outro lado, de proferir aquelas frases taxativas e sem nuances que só se podem escrever quando se está disposto a tirar daí consequências, ou seja, a perder alguma coisa por as dizer, é-me de todo incompreensível. Faz-me vergonha pelos outros, pelo débil carácter que revelam, mesmo que esse estilo seja o pão nosso da cada dia nos blogues, agora percebendo-se que não são muito para levar a sério. Basta o aceno de um lugar, de uma carreira, de uma importância, de um panache e lá vai a vergonha toda, a honra e o carácter pelo caminho", Pacheco Pereira.

AQUI

E, a propósito de chiqueiro, também vale a pena ler isto

«Uma pessoa até tem medo de criticar o Governo. Começa a criticar o Governo e é chamada para o Governo»

Constança Cunha e Sá no seu melhor.
Vale a pena ver. AQUI.

20/04/13

O Estado das Artes


Perdoar-me-ão a conjugação pronominal reflexa nestes tempos dados à simplificação, mas dever-se-ia dizer em geral da cultura aquilo que Natália Correia disse da poesia: que era para comer. 
Em Portugal, a cultura sempre andou associada a uma certa pomposidade e snobismo e, por natural arrasto, ao seu inverso, o popularucho bimba, a cultura popular arrasada nos anos do cavaquismo, instrumentalizada que fora pelo antigo regime, promotor do pobrezinho mas honesto: por detrás das sete saias da Nazaré muita miséria se escondia. 
Acabamos de atingir um novo patamar. Após 11 anos regidos por um engenheiro que começou por assinar projectos de pato-bravo no Portugal profundo para acabar a comprar roupa por medida no 420, Rodeo Drive, e governados hoje por um homem que, nas sábias palavras de António Lobo Antunes, evidencia quão curiosos são os caminhos do Senhor – “Deus serviu-se de Filipe La Féria para termos este primeiro-ministro. Deus teve de escolher entre duas desgraças. E preferiu que ele fosse primeiro-ministro a cantor” –, estranho seria se não andássemos baralhados. 
É assim que dizemos bye bye a Paula Rego enquanto acolhemos com veneranda deferência Joana Vasconcelos no Palácio da Ajuda, ou assistimos mudos e quedos ao assassínio d’ Os Lusíadas por José Luís Peixoto. 
Não me interpretem mal. Eu sei que à luz da ciência moderna, provar que um verso de Camões vale mais do que 500 frases de Peixoto é tarefa inglória. Tão inglória como provar que o truque dos tamanhos XL da Joana Vasconcelos não passa disso mesmo: de um truque. 
Mas isto: “Tágides do Tejo, ninfas de ninfetice total… emprestem-me ainda um resto do vosso ninfetismo…”?! 
Por muito menos escreveu Almada o “Manifesto anti-Dantas e por extenso”.

19/04/13

Pensamentos profundos que me ocorrem quando eu menos espero

A Merkel, com a sua obsessão pela austeridade, faz-me lembrar (psicologicamente) aquelas pessoas que só conseguem pensar e fazer uma coisa de cada vez. Por exemplo, enquanto não acabam de arrumar a sala são incapazes de pôr a perna de borrego ao lume (perna de borrego que iria assando enquanto arrumam a sala). 
O resultado é que nunca mais morrem nem a gente almoça.

O José Luís Peixoto inventou uma palavra nova e eu estou sem palavras.

Tágides do Tejo, ninfas da ninfetice total, apesar de mais velhas, mais maduras, emprestem-me ainda um resto do vosso ninfetismo para espalhar um pouco mais, mesmo que não seja por toda a parte, os feitos daqueles portugueses que navegaram por oceanos inéditos e, também, o valor daqueles reis desse mesmo Portugal, que o fizeram sinónimo de fé e o esticaram pelo mundo.

Peixoto sobre Camões, aqui.



17/04/13

Minhas senhoras e meus senhores: o Excel!

Moisés foi guiado por Deus. Os Reis-Magos foram guiados pela estrela. Nós somos guiados pelo Excel. E ainda por cima engatado. Viva o progresso!

Notícia aqui.

Coisas que andei a escrever durante os tempos de ausência, no caso a pedido

Por que é que Platão não gostava de poetas? Eu, pessoalmente, gosto muito de Platão e também gosto de poetas. Um dos poetas de que mais gosto é o Herberto Helder.
Herberto Helder está para a poesia portuguesa como Platão para a filosofia grega. Ou ainda mais. Porque enquanto em Portugal ninguém ousa criticar o poeta, no que toca à filosofia grega a coisa divide-se mundialmente entre Platão e Aristóteles.
Muitos são, de facto, os que elegem o Estagirita. Refiram-se, por exemplo, os biólogos, embora mesmo estes se possam sentir embaraçados com a seguinte afirmação: “As cobras não têm pénis porque não têm pernas; e não têm testículos por serem tão compridas”.
Já no que se refere a Herberto, a veneração pública é unânime, incluindo os que “ao extremo poder dos símbolos” preferem os acontecimentos reais e as “correntes de ar”.
Veja-se o exemplo deste acólito.

 “(…) queria falar-te da isabel e de como
choramos juntos, muito maricas, quando
nos correm mal estes amores ou, pior, a
nossa amizade. Esta noite sonhei contigo e
achei graça dizer-te que cheirava mal na
nossa cama. que me incomodou a luz a entrar
pela persiana por fechar. que ouvi com dor o
orgasmo da vizinha de baixo”.

Desconheço em absoluto quem é a amiga de Valter Hugo Mãe citada aí em cima, assim como também desconheço a pobre criança em ruína que verteu este fluido lacrimal:

“(…) a minha dor é esta primavera que nasce e me mostra
Que o inverno se instalou definitivamente dentro de mim”
Por muito menos escreveu Almada o “Manifesto Anti-Dantas e Por Extenso”!

Voltando ao Filósofo e o Poeta, do que eu mais gosto na poesia de Herberto é do “êxtase material” que ela celebra e, claro, gosto que ele seja um poeta que gosta de mulheres.
“Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
E seu arbusto de sangue.
Com ela Encantarei a noite.”

Não quero maçar-vos com citações. O caso, porém, é que Herberto explica muito bem Platão. Fá-lo numa parábola que também a mim há muito me obceca.
"Levanto-me então da plateia e, por entre as metralhadoras esculpidas, conto de novo a parábola da agulha, que me obceca. Desentranhei-a de um velho manual.Trata-de de uma mulher que perdeu uma agulha na cozinha e a procura na varanda da sua casa. Acorre então o jovem que pretende ajudá-la, e pergunta: Que procura? — Uma agulha. Caiu-me na cozinha. Logo o inexperiente jovem se espanta muito e quer saber porque a procura ela na varanda. — Porque na cozinha está escuro — responde a mulher. A parábola ajudará a desaprender alguma coisa, e depois será possível aprender outra coisa."

O que esta parábola nos ajuda a aprender é que quando se está às escuras num sítio tem de se ir à procura noutro. Foi o que fez Platão: abandonou a caverna em busca de luz e, no fim, construiu um mundo iluminado. Perfeito.

[Sobre mundos perfeitos, ou similares, ninguém viu mais longe do que Albert Camus. “Paris-Argel. O avião como um dos elementos da negação e da abstracção modernas. Já não há natureza; a garganta profunda, o verdadeiro relevo, a torrente intransponível, tudo desaparece. Resta uma imagem – um plano. Em suma, o homem passa a ter o olhar de Deus. E apercebe-se então de que Deus tem uma vista abstracta. Não é nada consolador.”]

Os poetas, com a sua poesia, e as pessoas em geral, com o seu riso, observam coisas intransponíveis. É isso que aborrece o filósofo. Que lhe estejam sempre a chamar a atenção para falhas, fracturas, desacertos,desconcertos. No mundo perfeito das esferas platónicas, não há histórias para contar (nem sequer as edificantes) e à arte restar-lhe-á ser redundante e tautológica. Não é, portanto, que ele não goste de poetas. É que eles não fazem sentido.
Claro que Platão desconhecia o provérbio judaico, “O homem pensa, Deus ri”, que, ainda assim, é talvez a melhor coisa que alguma vez foi dita sobre Deus.

No que respeita à poesia, volto sempre a isto:

"Este coração já se não entende com os corações este coração
não reconhece ninguém na turba dos corações
Corações cheios de gritos, de ruídos,
de bandeiras

este coração não é desenvolto com estes corações
este coração esconde-se destes corações
este coração não se compraz com estes corações

Oh cortinas, cortinas e ninguém vê Iniji 

Stella, Stella constelada
Já te não levantas para mim, Aurora
Tão pesados
tão pesados
tão taciturnos seus monumentos
tão impérios, tão quadriláteros
tão esmagadores bárbaros, tão vociferantes,
e nós tão nenúfar
tão espiga ao vento
tão longe do cortejo
tão mal na cerimónia
tão pouco da nossa idade e tanto a passear
(...)"

E nada tendo a acrescentar a Michaux, vou contar uma história.
Um dia, ia eu a atravessar a planície alentejana e o meu telemóvel tocou. O telemóvel é uma praga que ataca quando menos se espera e que se tivesse sido inventado há mais tempo teria tornado impossíveis muitas das obras-primas da literatura e do cinema (prova que Heidegger tinha razão quando nos alertava para o desencantamento do mundo na era da técnica).
Acho, aliás, difícil fazer um bom poema em que entre a palavra telemóvel e se calhar também é por isso que gosto de Herberto Helder.
Na minha história, que não é um poema, entra um telemóvel. Tocou. Por razões que desconheço, ouvia-se muito mal. No Alentejo haverá “pássaros azuis” e “barcos bêbedos” mas em certos sítios não há rede. Não sei porquê. Talvez seja dos satélites. Talvez Bukowski até tenha feito um poema sobre isso – satélites. Não sei. Na minha história, não percebia o que diziam.
Sabia que era o meu pai porque o nome dele aparecia identificado. O meu pai nunca me telefona por razões que não vêm ao caso. E de espaço. Vou já terminar. 
Chegavam-me palavras intermitentes.
 Estou? Sou? Tou? Estou? Sou?
Não entendia nada. Depois escutei a palavra só.
Só?!
Repeti.
Só?!
E o meu pai disse de forma clara e distinta: “Só, só como o António Nobre”.
Contado isto, que servirá para desaprender alguma coisa e aprender outra, “há-de talvez saber-se um dia que não havia arte, mas tão-só medicina”. Embora também pese sobre nós o outro poeta suicida que disse: “A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer”.

Agradecimentos:Albert Camus, Almada Negreiros, António Nobre, Arthur Rimbaud, Charles Bukowski, Henri Michaux, Herberto Helder, J. M.G. Le Clézio, Jim Hankinson, Margarete, Maria Lolita Sousa, Natália Correia,Stig Dagerman