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19/10/08

A empregada de João Pereira Coutinho, a luta de classes, Mailer e Steinbeck

Naquele tempo lia-se muito Karl Marx. Não vou agora pôr-me à armar e dizer que li o Das Kapital inteiro, muito menos no original. Li-o na versão que havia lá em casa, suponho que pela mesma altura em que li Praias da Barbaria e A um Deus Desconhecido. Teria sido uma heresia confessá-lo, mas já então Mailer e Steinbeck faziam mais o meu género.
Do alemão apátrida retive umas noções vagas sobre a «lei da baixa tendencial da taxa de lucro» ― conceito que, traduzindo-se em fórmula matemática, arrumava com qualquer reaça de Letras ― e sobre as «contradições internas do capitalismo» ― ainda hoje a fazerem sentido para mim, já que um sistema que vive de vender coisas não pode, ao mesmo tempo, empobrecer demasiado a malta porque no fim alguém terá de ir às compras.
A cabeça ocupada com outro homem, há muito que não pensava em Karl. Voltei a pensar nele derivado à crise. Correm rumores que há quem o ande a reler. Não sou eu, mas antes isso que o berreiro de redundâncias que por aí se ouvem, pensei.
Um parênteses. Sinal do vazio de ideias (e, mais grave do que isso, do combate ao pensamento como coisa absolutely old fashion) bem podia ser Sarkozy, o «Queres-Porrada-Queres-Porrada», bramindo que os «culpados serão castigados!» e o capitalismo «reconfigurado». E logo agora que os chineses se estavam a habituar...
Ganância! Ganância! Ricos a quererem ser cada vez mais ricos! O tema já foi tratado em telenovela homónima pela SIC.
Abatida pelo clima emocional (além de abatida, e de que maneira, pela crise), eis que ontem, ao ler João Pereira Coutinho, me apercebo que nem todos estão desatentos. Há, como Marx, quem teime em compreender.
Cito Coutinho: «A minha empregada comprou casa e carro porque pediu empréstimo ao banco. Como ela própria me informou, todo o salário do marido e parte do salário dela serve para amortizar a dívida. O que sobra vai para a alimentação, roupas e outras despesas correntes. Infelizmente, e nos últimos tempos, o pouco que sobrava foi-se evaporando com a subida dos juros. As prestações sobem e ela não sabe o que fazer à vida. Eu entendo este aperto, no fundo, o aperto de qualquer português «trabalhador» [as aspas são do próprio]. Mas, em exercício de impensável moralismo, ainda perguntei: "E porque motivo comprou casa e carro quando provavelmente não os podia pagar?"».
A conclusão, se não a resposta, chega no último parágrafo: «(...) talvez tenha chegado a hora das famílias começarem a usar a cabeça porque a responsabilidade também lhes pertence. A ideia anti-igualitária que nem toda a gente pode ter casas, carros, férias ou jactos talvez não seja simpática. Mas a realidade nem sempre é simpática».
O velho Marx não teria dito melhor. A ilusão dos pobres de que poderiam ser ricos como os ricos não passa disso mesmo ― de uma ilusão.
Quem a mandou comprar carro? Casa? Tirar férias? Quem é que a corrompeu com a ideia utópica e pré-revolucionária que poderia ascender, natural e socialmente, à classe média? E é aí que Coutinho encontra Marx. Ambos concordando que pero todavía hay classes.
Subjugada pela clareza do raciocínio (quase tão transparente como fora para mim, em tempos, a fórmula mágica da «lei da baixa tendencial da taxa de lucro» que entretanto esqueci), eis que a realidade me entra porta dentro sem pedir licença [e deve ser por isso que Platão, na sua busca desesperada por ordem, ainda hoje me comove tanto: é que a minha realidade sempre tendeu a ser turva e dada ao caos (a ficção é que me lixa, eu sei)].
Então. O caso da empregada de João Pereira Coutinho. No meu caso, D. Alice tem carro e duas casas (uma delas é de campo), eu ando a pé e pago renda. Não me queixo, mas como encaixar na Teoria este verdadeiro escândalo empírico? Nem Marx nem Coutinho o consideram. E rendo-me à evidência: vá-se lá perceber o mundo fora da literatura!