30/12/08

Obras-primas: Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis

Capítulo Primeiro
Óbito do Autor

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos!
Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia — peneirava — uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa idéia no discurso que proferi. à beira de minha cova: — «Vós, que o conhecestes, meus senhores vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que têm honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.»
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, ; minha irmã Sabina, casada com o Cotrim, a filha — um lírio do vale, — e. . . Tenham paciência! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão, convulsa. Nem o meu óbito era cousa altamente dramática... Um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos, não parece que reúna em si todos os elementos de uma tragédia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anônima era aparentá-lo. De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extinção.
«Morto! morto!» dizia consigo.
E a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o vôo desde o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos, — a imaginação dessa senhora também voou por sobre os destroços presentes até às ribas de uma África juvenil... Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando e me restituir aos primeiros anos. Agora, quero morrer tranqüilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaíase-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra e lodo, e cousa nenhuma.
Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma idéia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.

28/12/08

2008: as vendas de O Segredo, o yes, we can! de Obama e o l'air du temps que nos toca a todos

O leitor vai-me perdoar o início um tanto abrupto, mas o que raio poderá querer dizer Todas as coisas que deseja são feitas de energia e estão também a vibrar? E para que não se diga que, malevolamente, privei a frase da sua circunstância, acrescento a versão integral do parágrafo: Deixe-me explicar-lhe como é que você é a torre de transmissão mais poderosa do Universo. Em termos simples, toda a energia vibra com uma certa frequência. Como energia que é, você também vibra com uma certa frequência, e o que determina a sua frequência a qualquer momento é aquilo em que está a pensar e a sentir (...).
Ainda que incapaz de visualizar o Universo — e eu própria dentro dele — acometido por uma qualquer doença vibratória aparentada com Parkinson, atirei-me à leitura do livro de Rhonda Byrne como gato a bofe. Mea culpa, nunca tinha lido O Segredo. Fi-lo a propósito da conferência que Bob Proctor, um dos seus mentores, realizou a 18 de Junho deste ano em Portugal com a ajuda (na primeira parte) do grande Adelino Cunha.



Pensando ter entre mãos um texto de auto-ajuda, confesso que não estava preparada para tanto. Não é que desconhecesse a linguagem. Lá pelos idos de 70 cruzei-me com alguns discípulos de Prem Rawat, nome de guerra Maharaj Ji, guru exótico um tanto gordo que coleccionava Rolls Royce e acólitos vindos do rock. Era, porém, um pequeno grupo, ao invés dos adeptos de Rhonda Byrne, ou pelo menos do seu livro, campeão de vendas nacional em 2007 e, segundo se noticia aqui, também em 2008.
Os organizadores da conferência de Proctor calcularam sete mil espectadores no Pavilhão Atlântico. Um número que só pode surpreender pela modéstia. Afinal, ele foi homem para garantir, sem pestanejar: Posso mostrar-vos como ganhar o dinheiro que precisam, para as coisas que querem, para viver da maneira que preferirem viver. Os adeptos do guru Maharaj Ji da minha juventude seriam menos materialistas, mas, entretanto, até eles terão percebido que «money makes the world go around». Proctor incluído. Um cachet base de 35 mil dólares, mais despesas de deslocação, é quanto, oficialmente, cobrou pela conferência de duas horas e meia. Resumindo: à semelhança dos almoços, também não há segredos grátis.
No caso, o «segredo» é apenas um e responde pelo nome de Lei da Atracção: Tudo o que entra na sua vida é atraído por si. E é atraído por si em virtude das imagens que guarda na sua mente. É aquilo em que está a pensar. Seja o que for que está a ocupar a sua mente, é isso mesmo que está a atrair para si.
A frase levanta alguns problemas. Embora já não se encontre disponível online, o YouTube chegou a alojar um vídeo do programa de televisão da NBC «Saturday Night Live» no qual a actriz Maya Rudolph parodiava uma entrevista de Oprah Winfrey (uma fã de O Segredo) a um habitante de Darfur. Naturalmente, a grande pergunta era: teria mais pensamento positivo impedido o genocídio? À luz do que vem escrito no livro, a resposta só podia ser «Sim!». Traduzindo para linguagem poética (que Carlos de Oliveira nos perdoe a heresia...): se pensarmos com muita, muita força, não há machado que corte a raiz ao pensamento.
Seja qual for o objecto da nossa psique, o «segredo» consiste sempre em visualizá-lo no presente, antecipando-lhe a materialidade: dinheiro hoje, amor agora, saúde já, sucesso imediato, estacionamento ao virar da esquina...
Para o leitor que julga que ironizo, cito: A razão pela qual você é a torre de transmissão mais poderosa do Universo é o facto de lhe ter sido dado o poder de focar a sua energia através dos seus pensamentos e de alterar as vibrações daquilo em que está focado, que é depois magneticamente atraído até si.
Atenção! Avisa-nos O Segredo que este poder pode também virar-se contra nós. Maus pensamentos resultam em más vibrações, e más vibrações magnetizam coisas más. Veja-se como Rhonda Byrne aplica exemplarmente o raciocínio às dietas: Ninguém tem ‘pensamentos magros’ e é gordo. Isto contraria a lei da atracção (...) Os alimentos não o fazem perder peso, a não ser que acredite nisso.
A doença não é excepção: Tinham diagnosticado a Norman uma doença ‘incurável’. Os médicos disseram-lhe que tinha apenas alguns meses de vida. Norman decidiu curar-se a si próprio. Durante três meses, viu apenas filmes cómicos e riu, riu, riu. A doença deixou o seu corpo nesses três meses, e os médicos consideraram a sua recuperação um milagre.
Quanto a arrumar um carro, é coisa de principiante: As pessoas ficam admiradas por eu conseguir sempre um lugar de estacionamento. Ando a fazer isto desde o início, depois de ter percebido pela primeira vez O Segredo. Visualizava um lugar de estacionamento exactamente onde o queria e 95 por cento das vezes ele estava lá para mim e eu só tinha de estacionar. Cinco por cento das vezes tinha de esperar um minuto ou dois, e a pessoa saía e eu entrava. Faço isso regularmente [mais frases mortais para quem estiver interessado].
Chegados aqui, cumpre esclarecer. Declarar que a mente, de per si, muda a realidade exterior já não faz prova de optimismo nem é exemplo de pensamento positivo. Caímos em pleno caldeirão do pensamento mágico, assente, neste caso, num individualismo exacerbado (mesmo se disfarçado pela comunhão cósmica), a que se acrescenta o imobilismo social (mesmo se disfarçado pela cenoura do sucesso). Amálgama de falsidades científicas e lugares-comuns comportamentais, reciclagem de conceitos New Age misturados com New Thought, O Segredo soma milhões de cópias vendidas. Se nos lembrarmos que Barack Obama, o novo Presidente dos EUA, teve como slogan de campanha «Yes, We Can!», o que é que nos surpreende afinal no l’air du temps?



Bob Proctor, it’s all about the money?
Apresentam-no como filósofo, mas Proctor reconhece não ter estudos. O livro Think and Grow Rich, de Napoleon Hill, mudou-lhe a vida aos 26 anos. Mais tarde chegou a vez de ele escrever You Were Born Rich. E, entretanto, tornara-se rico de verdade. Segundo o próprio, graças ao «segredo»; segundo outros, graças aos seus dotes oratórios de pregador e à credulidade do público. Foi um dos que esteve ao lado da australiana Rhonda Byrne desde a primeira hora, participando no DVD The Secret, que daria mais tarde origem ao livro com o mesmo nome. Participa em conferências pelo mundo e disse numa entrevista à revista brasileira Veja, em Abril passado: Se convivemos com pessoas tristes, ambientes negativos, isso impede-nos de acreditar que cada um é o que quiser ser. Eu não perco tempo com pessoas infelizes. Ninguém deve perder tempo com elas.
Curto, grosso e com sucesso garantido.

21/12/08

«Ao vencedor, as batatas»

Vou ser absolutamente pueril. E, sim, gosto de advérbios de modo. Ao invés, aborrece-me Sócrates, o primeiro-ministro. Tudo nele me aborrece. O curso, o inglês, as casas (ah, como me aborrecem as casas!), os livros que finge ter lido, os esgares, o perfil e os lugares-comuns, até os fatos me entediam de tão óbvios. E por falar em fatos abrevio: repugna-me a enfatuada ignorância.
Citando de novo esse génio do humor que dá pelo nome de Lewis Black, José Sócrates é a prova de que o americano estava universalmente certo quando disse: In my lifetime, we've gone from Eisenhower to George W. Bush. We've gone from John F. Kennedy to Al Gore. If this is evolution, I believe that in twelve years, we'll be voting for plants.
Da política tive eu, em pequenina, sem naturalmente o saber que não venho para aqui armar-me em génio, uma visão pré-maquiavélica. Resume-a muito bem J.M.Coetzee em Diário de um Mau Ano: A posição pré-maquiavélica era a da supremacia da lei moral. Se acontecesse a lei moral ser por vezes infringida, era uma infelicidade, mas no fim de contas os governantes eram apenas humanos. A nova posição, a maquiavélica, é que a infracção à lei moral se justifica quando necessária.
De Maquiavel, que era esperto, fomos andando até chegarmos às plantas que, como é fácil entender mesmo sem ter lido Kant, escapam à lei moral.
Um pragmatismo alucinado invadiu a política. A presente crise internacional, nascida disso mesmo, não teve como resultado nenhuma discussão séria. Comemos mais do mesmo. Não que eu me encontre ainda na fase anal pré-maquiavélica ou tenha qualquer ilusão sobre o «homem novo» (neste capítulo estou com o Viridiana do Buñuel). Apesar disso, as Luzes continuam a pestanejar a espaços no trapézio do meu cérebro, como diria Machado (e, já agora, diga-se que o título deste post também é do brasileiro).
Tudo isto me foi gerundicamente ocorrendo (eu avisei que gosto de advérbios de modo), após ler estas declarações de José Sócrates a respeito do próximo ano, chamado pelo próprio (ou pelos assesores de agit-prop) o «cabo das tormentas»: É preciso agir sem ortodoxia e sem ideias feitas (...) É preciso estar com a mente aberta para responder aos problemas e não para responder às necessidades da nossa ideologia. Precisamos de ter mente aberta e não ficarmos reféns da ideologia ou das respostas clássicas, porque problemas novos exigem respostas novas.
Ou seja, e sem lembrar agora a frase de Richard Dawkins: There's this thing called being so open-minded your brains drop out. Ou lembrando-a. Pronto. Esqueçamo-nos por uns segundos que o iluminado engenheiro se refere à actual crise. Façamos de conta que fala durante os heróicos tempos do boom financeiro que acabou como se sabe. Sublinhem-se as diferenças. Zero! Ideias novas? Zero. O mesmo ódio ao pensamento (entendido pejorativamente como "respostas clássicas"), a mesma crença no fim das ideologias (depois ― ou antes? ― foi ― ou fora? ― o fim da História), o mesmo credo pragmático. O paleio é decalcadinho... como decalcadinho de outras matrizes se mostra o paleio de Alegre. É o cabo das tormentas: estamos entregues às plantas.

20/12/08

Música variada para o fim-de-semana


Kreisler toca Kreisler - Schön Rosamarin


Wilma de Angelis - Rosita cha cha cha


Muddy Waters & James Cotton - Got My Mojo Working


Jacques Brel - La Chanson des Vieux Amants


Billy Taylor, Duke Ellington e Willie the Lion - Perdido

18/12/08

Um tipo invade um país sob falsas alegações e é reeleito presidente, outro atira-lhe um par de sapatos e arrisca de 2 a 15 anos de cadeia


A cena do par de sapatos contra Bush anda a fazer correr muita tinta. Uma manifestação nos EUA exigia hoje a libertação de Muntazer al Zaidi, mas o franco-atirador iraquiano arrisca-se mesmo a ser condenado. Pela parte que me toca, não sendo eu a Imelda Marcos, considerem que os ditos me pertenciam.

17/12/08

O dartacão, agora a cores

Da série embirrações assumidas III

Eu e os meus amigos sabíamos que existiam televisões a cores, mas nunca tínhamos visto nenhuma. Quando alguns dos rapazes que andavam comigo na escola começaram a ter televisões a cores, não foi algo que nos surpreendesse. Nós sabíamos que existiam televisões a cores. No entanto, foi espantoso ver a abelha Maia ou o Dartacão pela primeira vez a cores.
Retirado do blogue do costume.

16/12/08

Non flere, non indignari, sed intellegere*


O vice-presidente norte-americano Dick Cheney veio defender publicamente a prática da tortura como forma de obter confissões. Quando interrogado sobre o "afogamento", o grande arquitecto da guerra do Iraque disse concordar com o método.
A questão da tortura coloca graves problemas morais. O mais óbvio é o da proporção: se um prisioneiro recusar confessar onde vai decorrer um atentado que levará à morte um determinado número de inocentes, será legítimo recorrer à tortura como forma de prevenir a mortandade?
Quem tiver uma visão utilitária da moral, dificilmente poderá responder pela negativa. Mas e se a ética não for uma pragmática, tão-só o que nos salva da barbárie?
*Não chorar, não se indignar, mas compreender, Espinosa

12/12/08

A guerra das cruzes sob o embalo do Alfa

Não sou cristã. Suponho que, mais coisa menos coisa, pelas razões que Bertrand Russell anunciou em 1927 (digo suponho porque há muito que não leio Why I Am Not a Christian). Quanto ao Ser Supremo, gosto de o imaginar algures entre o que disse Hemingway quando lhe perguntaram se acreditava em Deus – «À noite, no escuro, às vezes» – e a teologia solitária de Espinosa. Será um paradoxo, mas é assim.
O meu pai é ateu convicto, daqueles que têm como livro de cabeceira O Drama de Jean Barois. Eu não chego a tanto, não porque algo me convença do contrário, mas tão-só pelo défice de imaginação que me parece impregnar o ateísmo. Dito isto, não acredito em deuses de carne e osso, virgens engravidadas por pombas e muito menos em fogueiras como método de conversão. Cá em casa, as minhas filhas mais velhas chegaram a discutir se Cristo morrera enforcado ou levado por uma bala. Preferi não intervir no debate, que era aceso, e deixei passar o anacronismo da pólvora. Isto porque não gosto de cruzes, como terão percebido. Apesar disso, há guerras que não compro. Não compro, por exemplo, guerras fracturantes contra as ditas. Há quem faça questão nisso.
Sentado atrás de mim vinha um desses. Vivia em Monchique e não consegui perceber se era imigrante regressado com pronúncia enviesada, se estrangeiro convertido à língua camoniana. Tinha um filho que andara na escola primária em plena serra algarvia. Pelo que consegui ouvir, agora frequentava o ciclo. Em Monchique, o meu companheiro do Alfa indignara-se com o crucifixo pendurado na sala de aula. Fizera uma exposição. O Estado é laico e o Estado laico respondera-lhe que o estabelecimento devia agir em conformidade. Mais não lhe responderam. Depois soube da visita programada de um bispo e aí adoptara formas de luta mais firmes: Através de um amigo fiz saber à Fernanda Câncio o que se estava a passar. Os jornalistas apareceram e aquilo não ficou assim.
Continuo sem perceber a parte do «aquilo não ficou assim». Agora que religião é cultura, do contrário ninguém me convence. Apesar de Ockham, Giordano Bruno, Galileu e muitos mais. E, também por eles, nunca me apanharão em cruzadas. Por muito que abomine cruzes.

11/12/08

Publicidade descarada: já agora contribuam com qualquer coisinha s.f.f.

Joaninha Toma uma Decisão Depois do Jantar e Nós Ficamos a Saber Qual Foi.


– Qual foi o quê?
– A decisão.
– E o jantar?
– O jantar foi bife com batatas fritas.
– Ah!
Então, um dia, o dia mesmo antes de fazer sete anos, depois do jantar Joaninha tomou uma decisão, que é uma coisa que também se pode tomar durante o pequeno-almoço, ou a outra hora qualquer. Não é como os remédios. Aliás, para se tomar uma decisão nem é preciso estar doente. Basta que deixemos de ter dúvidas e passemos a ter certezas. Por exemplo, se perguntarmos ao lanche:
– O que é maior? Um hamster ou um elefante?
Claro que o elefante é de certeza maior, mesmo se o hámster for crescido e o elefante tiver acabado de nascer, até porque os elefantes bebés pesam 125 quilos e os hámsters nunca passam muito de 1 quilo, mesmo quando já são adultos.
Mas, voltando a Joaninha que, parece-me, não tinha hámsters. Nem elefantes, julgo eu.
«Não quero fazer sete anos!», eis a decisão que Joaninha tomou eram quase nove da noite, já tinha comido o bife e estava na sobremesa. Tinha agora de avisar os pais, para não comprarem as velas. Como a mãe não estava em casa (tinha ido ao jardim passear o Pata Branca), Joaninha foi ter com o pai à cozinha onde ele levava a loiça:
– Pai, estive a pensar… Eu não quero fazer sete anos!
– O quê? – perguntou o pai, porque com o barulho da água não a tinha percebido.
– Não quero fazer sete anos!
– Ora, que disparate!
– Não quero, não quero e não quero!
– E onde é que foste buscar uma ideia tão maluca?!
Joaninha ia responder que não tinha ido a lado nenhum buscar a ideia maluca porque ela estava muito bem, obrigada, dentro da sua própria cabeça, quando a mãe chegou da rua e o pai – crac! – partiu um prato.
– Lá partiste outra vez qualquer coisa! – disse a mãe.
E o pai disse:
– Para a próxima lavas tu a loiça!
E a mãe disse:
– Era só o que faltava! Eu faço o jantar, tu lavas a loiça!
E a Joaninha percebeu que iam começar naquilo do filme! notícias! filme! notícias!, só que desta vez ia ser loiça! jantar! loiça! jantar! e resolveu ir para a cama sem sequer lavar os dentes.
No outro dia de manhã, antes de fazer anos, porque só tinha nascido às cinco e meia da tarde, Joaninha tentou convencer a mãe:
– Mãe, não quero fazer sete anos!
A mãe, que estava – nhac! nhec! – muito distraída a comer os seus cereais, quase que se engasgou:
– Glup! Não queres fazer sete anos?!
– Não, não quero!
– Mas que ideia tão sem pés nem cabeça! Pois se já fizeste seis... Não podes saltar para os oito assim de qualquer maneira. Isso seria batota!
– Mas eu não quero fazer sete anos! – insistiu a Joaninha.
– Oh! Joaninha! Mas toda a gente faz anos.
– Então, eu não quero ser gente!
E foi, então, que aconteceu uma coisa extraordinária.
Zás! Trás! Pás!
Joaninha transformou-se em PEIXE!
Ora, acontece que os peixes só respiram debaixo de água, o que não sendo uma coisa tão extraordinária como Joaninha ter ficado coberta de lindas escamas azuis, também não deixa de ser fantástico. Como é que eles conseguem?
(...)
Joaninha, a menina que não queria ser gente, Ana Cristina Leonardo (texto); Álvaro Rosendo (ilustracões), Gradiva Júnior

06/12/08

Uma rapariga clássica aconselha clássicos

Enquanto vou ali e já venho, deixo-vos com alguns romances, contos e novelas publicados em 2008. A ordem é arbitrária.

OS NUS E OS MORTOS, Norman Mailer, Dom Quixote
O CÉU É DOS VIOLENTOS, Flannery O'Connor, Cavalo de Ferro
MYRA, Maria Velho da Costa, Assírio & Alvim
HISTÓRIAS DE AMOR, José Cardoso Pires, Edições Nelson de Matos
A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL, Gustave Flaubert, Relógio d'Água
CASAIS TROCADOS, COELHO ENRIQUECE e REGRESSA, COELHO, John Updike, Modo de Ler Editores e Livreiros Lda
O ARQUIPÉLAGO DA INSÓNIA, António Lobo Antunes, Dom Quixote
A MÃO DIREITA DO DIABO e REQUIEM PARA D. QUIXOTE, Dennis McShade, Assirío & Alvim
O FESTIM DA ARANHA, vários autores, Assírio & Alvim
HISTÓRIAS DE AMOR, Robert Walser, Relógio D'Água
RAYUELA, Julio Cortázar, Cavalo de Ferro
PATRIMÓNIO e O FANTASMA SAI DE CENA, Philip Roth, Dom Quixote
DOM CASMURRO/ ESAÚ e JACÓ, Machado de Assis, Relógio D'Água
A fotografia da Marilyn foi roubada aqui.

05/12/08

O que eu não gosto de não gostar de um livro

«Com licença – eu tive um avô americano»: assim começa Os Três Desejos de Octávio C., novela de Pedro Eiras, ensaísta e dramaturgo nascido no Porto em 1975, vencedor há dois anos do Prémio Pen Clube (ensaio) com texto onde reunia quatro pesos pesados da literatura portuguesa: Raul Brandão, Fernando Pessoa, Herberto Helder e Maria Gabriela Llansol. Desta vez, o registo é ficcional.
A primeira frase pode contar muito num livro. Anna Karénina é um exemplo clássico. Nem todos o terão lido, mas mesmo esses lhe reconhecerão o início: Todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira. Apetece ler o resto. O mesmo para Com licença – eu tive um avô americano, embora, no romance de Pedro Eiras, o problema seja, precisamente, o resto.
Abalançando-se a uma ficção a que subjaz assumida intenção moral, no fim há uma lição a tirar. Mais coisa menos coisa, que nem sempre das boas intenções resultam bons resultados, um pouco à maneira da historieta judaica. Que é assim. Um passarinho cai do ninho num dia de frio. Pia desesperadamente até que passa um menino que o coloca num monte de estrume ainda quente. O passarinho, quentinho, desata a cantar em louvor do salvador. É então que passa uma raposa que, ao ouvi-lo, pula sobre ele e o devora.
A moral da história são três: 1. nem sempre aquele que te põe na merda te quer mal; 2. nem sempre aquele que te tira da merda te quer bem; 3. porquê cantar quando se está na merda? Transpondo para Os Três Desejos de Octávio C.
Octávio, o protagonista, recebe em adulto do avô americano uma velha candeia de azeite, que lhe é enviada pelo correio pelo U.S. Army juntamente com uma carta onde o informam da morte do familiar, atingido por uma bomba no Iraque. Ao contrário da vida do avô, que o leitor consegue imaginar cheia de aventuras, a dele nada tem de empolgante. Responsável pelos divórcios de uma Conservatória, que fica não com certeza por acaso na rua das Parcas, leva uma vida obscura, incapaz mesmo de se declarar a Anabela, a colega de escritório (lembramo-nos de Ruben A.).
E é então que o génio da candeia, que lhe aparece nos sonhos, lhe permite pedir três desejos. Rebentando pelas costuras de altruísmo, Octávio pensa na Humanidade antes de pensar em si próprio. Antes de pensar na Anabela. Escusado será dizer que tudo lhe correrá mal, a ele e aos seus congéneres terráqueos. A intriga, não sendo original, teria funcionado se o registo de comédia se tivesse conseguido manter ao longo das 165 páginas e a linguagem não fosse tão chã apesar das piscadelas de olho literárias. Não é o caso. Embora o fim também tenha graça. O problema reside no meio. E no meio teria de estar a virtude deste romance falhado.

04/12/08

Porque o prometido é devido: da vez em que estava a gamar matrículas

Encontrava-me eu uma noite muito sossegadinha de rabo para o ar a tentar desaparafusar uma matrícula quando o meu ângulo de visão – rasteiro – se viu invadido por um par de sapatos que lenta, silenciosa e resolutamente se aproximava de mim sem margem para erro. Com a respiração, os movimentos e a chave de fendas suspensas, deixei-me ficar assim, feita estátua de sal. Não sei se por ter enxergado que as meias do portador dos sapatos eram cada uma de sua cor ou se do incómodo da posição, o certo é que algo me trouxe de volta à vida. Dei por mim erguendo-me em slow motion enquanto atirava também sem pressa e com o mínimo de barulho o material de trabalho para dentro do saco que apanhara do chão e sustinha agora dramaticamente junto ao peito como se ele me protegesse do frio que não fazia. Os sapatos estacaram a dois metros mais ou menos e o meu olhar tímido não ultrapassara ainda a linha dos joelhos da figura que se erguia imóvel à minha frente quando uma voz me obrigou a reconhecer que estava definitivamente lixada. A voz, trémula, dizia assim: «Quietinha, senão disparo!»
Se a voz tremia, o mesmo se diga da mão, acometida de tosse convulsa: subia e descia em espasmos irregulares, e ora fazia mira aos meus olhos ora me visava o estômago. Enquanto isso, o guarda-nocturno – porque de um guarda-nocturno se tratava – não parava de me ameaçar: «Se te mexes, disparo!» Devo ter ido buscar sangue-frio às histórias de partisans que consumia então com ferrenha militância no escurinho do Palácio Foz: «Calma homem! Veja lá se tem calma senão isso dispara mesmo!» Atrás de nós, sobre o que teria sido um terreno agrícola, achava-se agora o corpo descarnado de uma obra. Pedras, tijolo, ferros retorcidos e paredes inacabadas que me pareciam o local ideal para despejar o material de trabalho. E enquanto estávamos para ali os dois, eu abraçada ao saco, ele escorado ao revólver, passou uma motorizada que o guarda-nocturno fez parar com grande determinação, dando indicações ao motard para que fosse chamar a polícia. Não havia telemóveis.
Aproveitei o interregno para dizer que tinha de fazer chichi. O motard, se já estava baralhado, mais baralhado ficou: «O senhor está-me a deixar nervosa com a arma! Vou fazer chichi e já venho!» E fui. Em vez disso esvaziei o saco dos aprestos comprometedores, conservei os documentos e a bolsa de maquilhagem, e voltei. Não tinha por onde fugir e ser baleada não fazia parte dos planos.
Passado algum tempo chegou, em linguagem de época, o nívea da bófia. «Então, o que é que se passa aqui?», perguntou a autoridade naquele seu modo clássico habitual. Cada um de nós deu a sua versão dos acontecimentos. Eu, que ia descansada para casa quando um louco me saltara ao caminho com uma arma na mão ameaçando-me de morte (era quase tudo verdade). Ele, que ia descansado na ronda quando dera de caras com a meliante em presença que andava por ali a desaparafusar matrículas (também não era tudo mentira). Entrei no carro da polícia para ser conduzida à esquadra. Comecei a ver a vida a andar para trás, seja o que for que isso queira dizer, mas pelo caminho um dos polícias confortou-me: «Não se preocupe, não é a primeira vez que temos chatices com o velho. Com a idade ficou um pouco destrambelhado...».
Estava eu sentada na esquadra pronta para assinar uns papéis e ir dormir – e até me tinham perguntado se quereria tomar algo – quando deu entrada de rompante o meu contraditor. Mal me viu, colocou shakesperianamente o dedo em riste e disse: «E ela foi despejar o material na obra... De certeza!» Era dos duros.
Regressaram à obra – e ao partir um dos polícias pediu-me desculpa pelo incómodo acrescido – e voltaram, azar dos Távoras, com os meus despojos. Fui revistada por uma mulher polícia que já não foi assim tão simpática e interrogada por um outro que me chamou mentirosa. Não gostei, até porque mentirosa é coisa que não sou mesmo, e foi depois disso que eu, recorrendo de novo ao meu imaginário cinéfilo, disse que tinha direito a um telefonema e que queria telefonar para casa. Telefonei à minha mãe e pouco depois ela aparecia. Esbaforida. Como eu era menor, antes de nos virmos embora levou uma descompostura do chefe. Depois deu-me ela uma descompostura durante o pequeno-almoço que com aquilo tudo eram horas. Desde esse dia nunca mais gamei matrículas, nem para a causa nem por conta própria. Mas também vos digo, e isto pensei-o logo: aquele guarda-nocturno era um perigo e um dia por engano ainda matava alguém.

03/12/08

Foi debaixo do vulcão que Lowry concluiu que no se puede vivir sin amar


Agustín Lara, Noche de ronda


Agustín Lara, Arrancame la vida


Agustín Lara, Piensa en mí


Agustín Lara, Solamente una vez

Não podia deixar passar em branco a anedota mais seca do ano face à qual a nossa Manuela Ferreira Leite devia ser nomeada a rainha da comédia

Iraq war my biggest regret, admitiu o Bush Júnior, a umas semanas de se pirar da Casa Branca. E a anedota só não tem mesmo graça por causa disto.*
* Infelizmente, os números que se exibem na imagem estão muito desactualizados; no momento em que publico este post já foram substituídos pela variável 89, 544 - 97, 762

02/12/08

E foi ele de Galveias ao México... (também pode ser o caso de ter bebido mescal marado mas acho pouco provável)

Da série embirrações assumidas II
Seguindo uma lebre levantada pela Ana, fui espreitar o blog daquele cujo nome evito pronunciar. Foi lá que encontrei estas pérolas.
«ALGUMAS COISAS QUE APRENDI ONTEM SOBRE O MÉXICO»
«Os emos no México são lindos. Existem em toda a parte e falam com voz muito frágil enquanto levam a mão à testa para quase afastar a franja. Há emos adultos. Nunca tive nada contra emos, agora tenho ainda menos. Além disso, aqui até há manifestações de emos, de que já ouvi falar bastante (...).*
«Nas estações de metro e nas carruagens de metro, há zonas onde só é permitida a entrada a mulheres e a crianças. Na estação, essas zonas estão separadas por um muro transparente. De um lado, só existem mulheres e crianças, do outro estão os homens, algumas mulheres e algumas crianças.»
*Sobre emos, eu, proprietária da Pastelaria, aconselho vivamente a leitura desta notícia que dá conta de confrontos entre emos, por um lado, punks, darks e góticos por outro, com os hare krishnas no meio.
E JÁ AGORA UM BOCADINHO DO MEU MÉXICO*

Chavela Vargas, Quisiera amarte menos

*que o José Agostinho Baptista me fez conhecer há muitos anos, numa época em que ainda não havia emos nem pérolas peixoteiras