A escrita pretensamente confessional alia-se à brevidade dos textos, o que nos permite abrir o volume ao acaso e lê-lo sem regra nem preceito. Façamo-lo.
Pág. 33 (que nem de propósito): “Sobressalto. Vejo três críticos literários (três!!!) na esquina da Travessa do Mal com a Verdi e, imediatamente, numa atitude instintiva, escondo-me atrás de um camião.”
Pág. 52: “Adivinhar o futuro do livro face à suposta ameaça digital é como especular sobre o resultado que no domingo alcançará a nossa equipa favorita”.
Pág. 165: “Sei que há muitas pessoas que, quando estão sozinhas a tomar duche, sentem um repentino terror por se recordarem da cena do assassinato de Janet Leigh em Psico, de Hitchcock.”
Pág. 233: “Alguns dos meus patrícios odeiam as citações: não olham com bons olhos uma certa erudição e têm como estúpida palavra de ordem que ‘quando se escreve não se deve ficar a dever nada a ninguém”.
Pág. 269: “Procuro o recolhimento, porque a literatura costuma ser mais interessante do que a vida. Não sei se é paradoxal, mas gosto imenso da vida, porque, digam o que disserem, é parecida com um grande romance”…
Os assuntos são como as cerejas e Vila-Matas percorre-os a todos com desenvoltura, não faltando, claro, aqueles episódios coincidentes que só mesmo ele para os detectar. Como este, delicioso, a propósito de o que se passa quando não se passa nada.
Os assuntos são como as cerejas e Vila-Matas percorre-os a todos com desenvoltura, não faltando, claro, aqueles episódios coincidentes que só mesmo ele para os detectar. Como este, delicioso, a propósito de o que se passa quando não se passa nada.
"De novo na esplanada do café de Perec, espero, em vão como sempre, que passe Catherine Deneuve, que vive na praça. Mas, uma vez mais, ela não aparece. Surpreende-me, um pouco mais tarde, ler na revista Lire que Vargas Llosa também vive nesta praça, tem um dúplex num edifício do século XVIII: 'Neste bairro, sinto-me como em casa. É um bairro muito literário. Umberto Eco também vive na praça. Há quinze anos que espero ver Catherine Deneuve, mas ela nunca aparece.'
"Nesse momento aparece Deneuve. Fico mudo de surpresa e pergunto-me se, durante um momento, Deneuve não foi 'o que se passa quando não se passa nada.'"
Organizado a partir da compilação, selecção e adaptação de crónicas assinadas na edição catalã de “El Pais” (Dez. 2005/ Abril 2008), mais alguns inéditos, Diário Volúvel confirma as obsessões do escritor e a sua cultura literária; transversal ao conjunto, a ironia como condição de sobrevivência.
Ficção, realidade e biografia reinventam-se neste título que, bem vistas as coisas, não se afasta assim tanto de todos os outros já por si assinados, ou, como bem disse Pedro Almodóvar, Diário Volúvel lê-se como um romance “cujo narrador nos oferece informação exaustiva sobre o protagonista, que por acaso é o mesmo”.
Absolutamente conseguido – divertido, amargurado, inventivo, esperançoso, versátil e implacável –, reflexão acrobática de hábil execução, é Enrique Vila-Matas em grande forma (apesar da doença que nos relata), num híbrido literário que não poupa o autor, a realidade, nem o que se vai publicando por aí.
Gosto em especial deste momento de auto-ironia: "As moscas são todas diferentes, mas tão parecidas entre si que há quem acredite que, na realidade, só existiu uma mosca em toda a história do universo. Nunca conheci melhor especialista em insectos do que Augusto Monterroso, que escreveu em certa ocasião: 'A mosca que hoje poisou no teu nariz é descendente directa da que ficou parada no nariz de Cleópatra.' O mundo das moscas sem lei atraiu-o sempre e planeou uma antologia universal sobre esse emaranhado universo. Finalmente, acabou por abandonar o projecto, porque viu que o volume teria de ser forçosamente infinito. Mas em Movimiento perpetuo ofereceu aos seus leitores uma pequena mostra da história mundial das moscas. Movimiento perpetuo começava assim: 'Há três temas: o amor, a morte e as moscas.' Um categórico início para um livro inclassificável, escrito muito antes de haver tantos livros híbridos e inclassificáveis como agora. (...)"
Diário Volúvel, Enrique Vila-Matas, Teorema, 2010, tradução de Jorge Fallorca
Absolutamente conseguido – divertido, amargurado, inventivo, esperançoso, versátil e implacável –, reflexão acrobática de hábil execução, é Enrique Vila-Matas em grande forma (apesar da doença que nos relata), num híbrido literário que não poupa o autor, a realidade, nem o que se vai publicando por aí.
Gosto em especial deste momento de auto-ironia: "As moscas são todas diferentes, mas tão parecidas entre si que há quem acredite que, na realidade, só existiu uma mosca em toda a história do universo. Nunca conheci melhor especialista em insectos do que Augusto Monterroso, que escreveu em certa ocasião: 'A mosca que hoje poisou no teu nariz é descendente directa da que ficou parada no nariz de Cleópatra.' O mundo das moscas sem lei atraiu-o sempre e planeou uma antologia universal sobre esse emaranhado universo. Finalmente, acabou por abandonar o projecto, porque viu que o volume teria de ser forçosamente infinito. Mas em Movimiento perpetuo ofereceu aos seus leitores uma pequena mostra da história mundial das moscas. Movimiento perpetuo começava assim: 'Há três temas: o amor, a morte e as moscas.' Um categórico início para um livro inclassificável, escrito muito antes de haver tantos livros híbridos e inclassificáveis como agora. (...)"
Diário Volúvel, Enrique Vila-Matas, Teorema, 2010, tradução de Jorge Fallorca
Um versão abreviada deste texto foi publicada no semanário Expresso
1 comentário:
Um apetite, portanto :)
Enviar um comentário