29/08/07

PORQUE HÁ COISAS QUE ME IRRITAM. FREUD (II): ERRO OU IMPOSTURA?

«Nós libertamos a sexualidade através do nosso tratamento, não para que o homem possa ser a partir de agora dominado por ela, mas sim para tornar possível uma repressão - a rejeição dos instintos sob orientação de uma instância superior».
Estas palavras de Freud poderiam servir para pulverizar o «sex appeal» que o persegue enquanto paladino de pulsões proibidas. Porque, embora alguns dos discípulos, nomeadamente Reich, tenham cedido à tentação da transferência entre analista e paciente, um puritanismo antigo subjaz ao edifício da psicanálise. Esse será, porém, apenas um dos aspectos em que ele foi bombardeado pelos críticos.

Bendita cocaína. Em 1884, Freud toma conhecimento de dois artigos que acredita poderem subtrai-lo à obscuridade: um descreve os resultados espantosos da cocaína em soldados em stress, o outro relata efeitos idênticos no desmame dos morfinómanos. Após testar a nova droga em si próprio, Freud aconselha-a ao seu amigo Fleischl Marxow (dependente da morfina por razões médicas), e publica poucas semanas depois um artigo em defesa da «droga milagrosa». Acontece que o tratamento prescrito apenas havia substituído uma dependência por outra. Freud considera o facto uma excepção e insiste em escrever que só os morfinómanos se tornam cocainómanos. Em 1886, porém, começam a ser conhecidos os efeitos nefastos da nova droga. A precipitação do pai da psicanálise é considerada uma irresponsabilidade, acabando por ser criticada publicamente pelos seus pares. Quando, em 1887, Freud apresenta uma lista de publicações para concorrer ao título de professor o «episódio da cocaína» é suprimido. Mais tarde, em A Interpretação dos Sonhos, responsabiliza «o infeliz amigo» pelo caso. E. M. Thornton analisará pormenorizadamente esta aventura pouco edificante em Freud and Cocaine (1983, Blond and Briggs), e o desejo de fama e desprezo pela comprovação empírica serão para sempre sublinhados pelos críticos do pai da psicanálise.

A histeria e a pobre Anna O. Em 1885, Freud parte para Paris para um estágio com o neurologista Charcot. Este, uma sumidade na época, ocupava-se, então, da histeria, doença que se veio a provar não existir, remetendo para coisas como a epilepsia ou lesões cerebrais causadas por acidentes. Apesar de, inicialmente, Charcot se inclinar para explicações orgânicas da histeria, o facto, entre outros, da hipnose parecer um método eficaz de tratamento, leva-o a conjecturar causas psicológicas com origem num acontecimento traumático do passado. Freud abraça com entusiasmo esta possibilidade. Quando regressa a Viena e se cruza com Josef Breuer a psicanálise está prestes a nascer.
Breuer fora médico da jovem Anna O., a quem diagnosticara histeria. O que cativou Freud foi o facto do amigo lhe dizer que ela parecia melhorar após o relato dos tresvarios que a assaltavam; a própria chamava a essas sessões «cura pela fala». Embora Breuer nunca tenha afirmado que isso anulava a patologia física, Freud convence-o a integrar Anna O. como exemplo em Estudos sobre a Histeria, obra assinada por ambos que faz a defesa da cura catártica pela fala. Mas o problema com o caso Anna O. - reclamado pelos adeptos como o caso fundador da psicanálise -, é que não só se tratou de «um lamentável erro de diagnóstico como de um fracasso terapêutico completo» (Jacques Bénesteau, Mensonges Freudiens). Sabendo-se que Freud confessou mais tarde a Ernest Jones, que «a pobre doente não se saiu tão bem como poderia inferir-se do relato publicado por Breuer», a pergunta de Richard Webster em Freud Estava Errado. Porquê? torna-se particularmente incómoda: «Por que razão Freud avalizou o relato do tratamento de Anna O. (...), se sabia que a informação de Breuer de a ter curado era falsa?» A pergunta continua a gerar pesadelos aos partidários do método.


Da Teoria da Sedução ao Édipo. A hipótese de que a origem da histeria residia em acontecimentos traumáticos do passado vai refinar-se, com os traumas a ganharem carácter estritamente sexual, ao mesmo tempo que a masturbação sobe à cena, para os casos masculinos: «A origem da neurastenia é a masturbação (...) Podemos observar no círculo dos nossos conhecidos que (pelo menos em populações urbanas) os indivíduos que foram seduzidos por mulheres quando eram jovens escaparam à neurastenia», escreve Freud ao médico e amigo Wilhelm Fliess.
Guiado pela convicção grandiosa de que seria capaz de «abrir todos os segredos com uma única chave», é por esta altura que Freud elabora a Teoria da Sedução, que diz ter construído a partir do estudo de 18 casos, o que será desmentido aquando da publicação, em 1985, das suas cartas enviadas a Fliess. No essencial, a teoria defende que a histeria no adulto recua até a um traumatismo sexual (real) na infância. Ao expô-la em público, acrescenta ter verificado que as convulsões histéricas cessavam mal o paciente tomava consciência do facto reprimido.
O autoconvencimento de Freud ficou registado para a posteridade. Sabe-se mesmo que, por pouco, não matava Emma Eckstein. Aliando às suas as teses estapafúrdias do amigo Fliess, Freud diagnosticara à paciente um «reflexo neurótico nasal» provocado por masturbação, acabando por fazê-la operar ao nariz por Fliess, que lhe deixa pelo menos meio metro de gaze na cavidade nasal. Perante as hemorragias, que não paravam, Freud teima em que não passam de um sintoma histérico, resultado do desejo inconsciente de Emma de o atrair para a beira da cama (o episódio está narrado pelo próprio numa carta a Fliess que Anna Freud censuraria na primeira edição da correspondência).
Mas para a classe médica a convicção dele não basta. Recebe a Teoria da Sedução com prudente cepticismo e fala de «conto de fadas» que precisa de ser testado. É então que Freud tem uma jogada de mestre. Já que a Teoria da Sedução se mostrava demasiado singela, Freud não hesita em substitui-la por uma outra - irrefutável. Afinal, os pacientes tinham-no enganado, nunca tendo sofrido agressões sexuais. Na realidade, a bola do desejo estava do lado deles, e era esse seu desejo reprimido que explicava agora as neuroses. Freud podia escusar-se à prova. Se o desejo edipiano universal (o desejo sexual que as crianças sentem pelos pais) fosse reconhecido, tanto melhor. Se não, a conclusão era que o paciente não conseguira ainda libertar o seu próprio recalcamento. Esta circularidade falaciosa continua, até hoje, a ser o grande quebra-cabeças dos admiradores de Freud. Muitos críticos chamaram-lhe embuste, e não existe uma única comprovação empírica do complexo de Édipo.
Webster é particularmente certeiro: «Sugerir que do acto de mamar resulta prazer sexual não é mais razoável que sugerir que da copulação resulta prazer de comer. Se eu der dois terços de uma cenoura para compensar o cavalo da minha carroça e der o outro terço ao meu cão pastor, não vou admitir que o abanar da cauda deste último significa satisfação equina».

São Freud enfrenta o dragão dos sonhos. Freud propõe-se alargar o âmbito da teoria. É então que avança pelo campo dos sonhos e os define como «realizações de desejos inconscientes». O inconsciente, que tantos reclamam para ele, era conhecido há muito, embora seja certo que com o Iluminismo a Razão subira para o pedestal. Mas o que Freud faz, ao autonomizar o inconsciente sob uma aparência científica, é esvaziá-lo, de facto, de muitas das subtilezas que anteriormente tinha contido. Sob a capa de um monismo biopsicológico, eram as antigas concepções dualistas do homem que regressavam: anjo/demónio, bom/malévolo, agora importadas para o interior da mente.
Os sonhos vistos como manifestações de desejos criam um problema a Freud do qual este se descarta com a mesma facilidade com que abandonara a Teoria da Sedução. Freud conta o caso de uma mulher que detestava passar férias com a sogra. Após a ter elucidado sobre a sua interpretação dos sonhos, a mulher sonha que viaja com a mãe do marido, facto que leva Freud a perguntar-se: «Não era isto a contradição mais evidente da minha teoria de que os sonhos são realizações de desejos?» Mas nada detém um sábio: «O sonho mostrava que eu estava enganado. Era desejo dela eu poder estar enganado, e o sonho apresentava esse desejo cumprido».
O expediente argumentativo desta vez impressiona menos porque já conhecemos o truque. E embora acabe por introduzir certos matizes na teoria, Freud nunca abandona o essencial - e o essencial é poder, pelo sonho, aventurar-se pelo território do inconsciente que ele imaginava transbordando de desejos sexuais inconfessados.
Wittgenstein dá nitidamente conta desta obsessão freudiana pelo recalcamento da líbido: «Freud faz com muita frequência o que poderíamos chamar uma interpretação sexual. Mas é interessante que entre todos os relatos de sonhos que ele apresenta não haja um único exemplo de sonho sexual directo. Porém, estes são tão frequentes como a chuva». Orwell é mais demolidor: «Mas porque é que impulsos sexuais em que eu não tenho medo de pensar quando estou acordado terão de ganhar roupagens de algo diferente quando estou a dormir? E mais, para que serve o disfarce, se na prática é sempre penetrável?»
Os críticos notaram, também aqui, a incapacidade para compreender a complexidade da mente e comportamento humanos. A visão esquemática e redutora, que estenderá à sexualidade das crianças com o axioma das fases oral, anal e genital - que mais não são do que um decalque da descrição evolucionista, vigente na época, da anatomia sexual dos animais não humanos, como mostrou Frank Sulloway -, está, com certeza, mais perto do século XIX do que do nosso século. É estranho que ainda hoje alguns continuem a achá-la revolucionária.

O sexo e o efeito aspirina. As críticas a Freud são muitas e de diversa ordem. Uns indignam-se com a teoria, outros com a prática sectária, outros com o branquear da história do movimento psicanalítico, outros, ainda, com o negócio. Cioran foi directo: «Freud é um profeta, um chefe de seita, um reformador 'religioso'. Confundiu sempre a sua missão com a verdade, em detrimento desta última. Entre os homens de ciência não conseguimos imaginar um espírito menos objectivo. Havia nele algo de fanático, de homem da Antiga Aliança».
Os que o censuram concordam com Cioran, realçando o dogmatismo, o desprezo pelos factos (ou mesmo a invenção de factos - Bénesteau, por exemplo, resume os casos clínicos de Freud a seis, realçando-lhes o fracasso terapêutico), a crença na equação definitiva, no fundamento derradeiro. Se olharmos mais de perto, as explicações de Freud sobre a sexualidade enquanto razão de ser das neuroses parecem-se com as de alguém que, tendo uma dor de cabeça e verificando que ela passa depois de tomar uma aspirina, conclui que a falta da aspirina era a causa da dor de cabeça.

Webster, que tem do homem de Viena uma visão menos negativa do que muitos dos seus críticos, não tem ilusões: «Freud não fez quaisquer verdadeiras descobertas intelectuais. Ele foi o criador de uma pseudo-ciência complexa que deve ser reconhecida como uma das grandes loucuras da civilização ocidental». Crews escreve em Skeptical Engagements que «o freudismo tornou-se para mim o exemplo paradigmático de uma doutrina que obriga a uma lealdade irracional». E certos autores, como Ernest Gellner, sublinham a ligação de Freud à doutrina cristã do pecado original, substituído nele pelo inconsciente, esse lugar obscuro de onde brota o complexo de Édipo, desejo inconfessado de matar o Pai.
O crítico Walter Kendrick terá colocado a questão para a qual nenhuma pirueta interpretativa de Freud encontraria resposta: «Como é que se pode matar o Pai que nos ensinou que a sua morte deve ser o nosso desejo?» («Voice Literary Supplement», Junho/1984). E insistiu em pôr o dedo na ferida: «Certos autores abordam a psicanálise de diversos ângulos e fazem o seu trabalho de demolição de diversas maneiras, mas, à mistura com um desejo frenético de pulverizar Freud, partilham da crença ingénua que se pode varrer o século XX nesse processo. Nenhum deles tenta explicar por que é que um vetusto castelo de cartas como a psicanálise, pronto a desmoronar-se com qualquer aragem, foi arrematado por grosso por toda a cultura que ainda lá mora».
Talvez a resposta a isto dada por Adolf Grünbaum seja aceitável, pelo menos para alguns: «Como frisou Henri Ellenberger, a prevalência de conceitos freudianos vulgarizados torna difícil determinar, de maneira fidedigna, até que ponto as verdadeiras hipóteses psicanalíticas se tornaram realmente influentes na nossa cultura como um todo» («Um Século de Psicanálise», in Freud: Conflito e Cultura). E remata: «Devemos também ter cuidado com a tese bizarra (...) de que a difundida influência das ideias freudianas na cultura ocidental avaliza a justeza comprobatória da empreitada psicanalítica e a validade das suas teorias. Porque a ampla influência cultural de Freud valida tanto os seus princípios como a hegemonia cultural cristã justifica a crença no nascimento virginal de Cristo ou na sua ressurreição».

5 comentários:

Anónimo disse...

«It can be seen from this model that Freud's writings on the Oedipus complex in females date primarily from his later writings, of the 1920s and 1930s. He believed that the Oedipal wishes in females are initially homosexual desires for the mother, and in 1925, raised the question of how females later abandon this desire for their mother, and shift their sexual desires to their fathers (Appignanesisi & Forrester, 1992). Freud believed that this stems from their disappointment in discovery that their mother lacks a penis.»

ahahaahah!!

Acho que uma vez vi um filme porn sobre esta questão...

Enfim...Freud era burro.

Viva o Buster Keaton!

Táxi Pluvioso disse...

Sobre a heroina e a aspirina.
http://opioids.com/heroin/heroinhistory.html

Armando Rocheteau disse...

Muito se aprende nesta Pastelaria.

Anónimo disse...

Quem é o autor ir-responsável por tanta besteira e péssima compreensão e total falta de estudo?

Ana Cristina Leonardo disse...

A autora do texto sou eu. E o nome está bem visível no blogue. Quanto ao autor anónimo e «ir-responsável por tanta besteira e péssima compreensão e total falta de estudo» que este comentário denuncia isso é que não lhe consigo responder. Algum problema de identidade, não?