03/11/07

Porque Há Coisas que me Irritam: Michel Houellebecq

No 2+2=5, este post, que remete para uma divertida reportagem publicada no Libération, dá conta de um encontro universitário que decorreu em Amesterdão a propósito da obra de Michel Houellebecq, escritor francês perseguido pelo escândalo ou vice-versa, e no qual algumas cabeças pensantes depositaram a coroa de salvação da literatura francesa. Incompetente para falar de assunto de tal envergadura (a saber, o de saber se a literatura francesa precisa ou pode ser salva), tenho, no entanto, opinião sobre o escritor Houellebecq. Opinião que saiu reforçada pela leitura de algumas pérolas que lhe dedicaram os críticos reunidos na Holanda: agradou-me em particular esta, proferida por uma investigadora da Universidade de Oslo (seja qual for o seu significado):«Num mundo em dissolução, incontrolável, só o corpo permanece resgatável». Lembrei-me, então, de resgatar e adaptar alguns textos sobre os livros deste autor. Começo por Plataforma (Bertrand, 2002).
A história contada em Plataforma, livro que tanto sururu provovou, resume-se em poucas penadas. Michel é um funcionário público que trabalha no Ministério da Cultura. A sua vida consiste em orçamentar eventos que quase sempre abomina, «ir dar uma volta por um peep-show» ao fim da tarde e adormecer diante do televisor ao fim da noite. Um dia, durante uma semana de férias na Tailândia, cruza-se com Valérie, jovem funcionária da agência Nouvelles Frontières, e o exotismo do local trespassa-lhe a existência: apaixona-se. Valérie idem. Michel deixa de frequentar os «peep-shows» e o casal passa a fazer amor sempre que pode, por vezes com a ajuda de um ou outro parceiro (nada de particularmente promíscuo). Entretanto, a jovem muda de agência e, em conjunto com o novo chefe, decide criar uma rede de turismo lícito e sexual, ideia que recebe o apoio de uma sociedade alemã. No dia da inauguração do primeiro clube, de novo na Tailândia, um grupo islâmico fundamentalista ataca o hotel. Há mortes, e o romance acaba mal.
À conta do livro, Houellebecq teve vários processos na Justiça. Grosso modo, as acusações diziam respeito à presumível promoção do ódio contra os árabes e defesa do proxenetismo. Uma entrevista dele à «Lire» deu o toque a rebate. Bem bebido, o escritor fez declarações chocantes (ou que, pelos vistos, chocaram). Eis alguns exemplos: «A prostituição, acho muito bem. Como profissão, não é assim tão mal paga»; «O Islão é uma religião perigosa, e isto desde que apareceu. Felizmente, está condenada»; «Claro que há vítimas nos conflitos do Terceiro Mundo, mas são elas próprias que os provocam. Se os pobres idiotas se divertem a extirpar-se, deixá-los»; «Quando era novo, ele (De Gaulle) irritava-me. (...) acabo por simpatizar mais com Pétain»; «A abolição da pena de morte está bem... mas não faço disso uma questão de princípio», etc., etc. (também disse que «não há ideias de direita», para justificar porque é que só atacava as de esquerda).
Apesar de Houellebecq insistir na clássica distinção entre autor e personagem, a referida entrevista veio permitir estabelecer uma certa proximidade entre o Michel-narrador e o Michel-escritor. A primeira questão que se coloca, contudo, é saber se o facto de o segundo preferir o colaboracionista Pétain ao resistente De Gaulle é relevante para a qualidade literária. Não, decididamente. A segunda é saber se o livro é bom, mau ou assim assim.
Pois bem, é assim assim. Começa com garra, aguenta as personagens, tem cenas de sexo bem esgalhadas, mantém um estilo coerente, neutro e seco. Então, o que falha? O reaccionarismo? Que se lixe o reaccionarimo. O problema de Houellebecq é aquilo a que poderíamos chamar simpaticamente «excesso de ideias». Se em As Partículas Elementares a fusão da biologia com a física quântica vinha permitir a clonagem do «homem novo» (através de um chato arrazoado pseudocientífico), em Plataforma, agora por intermédio do sexo (que se identifica com amor, numa repescagem requentada de Reich), o que se propõe é salvar o Ocidente caduco. Megalómano, confundindo literatura com análise sociológica, o escritor perde o pé. Não resiste a apresentar soluções pueris - Oh L’amour! - e supostamente universais. Compreende-se, assim, porque insiste tanto no seu ódio a Céline. É que esse desconhecia soluções, convicto de que o mais provável é que daqui ninguém saia vivo. Em resumo: sob o manto diáfano da irreverência esconde-se um menino de coro que tresanda a kitsch.

12 comentários:

Táxi Pluvioso disse...

O efeito dos livros é esse. Cada um lê o que quer ler. Por isso, prefiro o cheiro deles quando ardem. 451º fahrenheit chegam mas pode ser mais. Não há perfume melhor que um Cocteau passado pelas brasas. E um Joyce? Cheira a gambas assadas numa praia da Tailândia.

Um escritor é bom quando consegue impingir a sua obra aos outros e fazer muito dinheiro, como o caçador Sousa Tavares, o apresentador Rodrigues dos Santos, o canário Saramago. De outra forma mais vale carregar na tecla delete.

Num mundo onde tudo é pago perseguir a prostituição é incompreensível. Querer sexo de borla, ou por via do poético amor, não se adequa aos ditames liberais. Seria mais lógico ir ao fundo do problema e proibir o sexo.

Já tinha publicado o meu último post quando li este. Terei que lhe acrescentar um link para aqui. Não há mistério nessa frase enigmática. Os fãs de Baywatch compreendem o significado de "corpo resgatável".

Anónimo disse...

"O efeito dos livros é esse. Cada um lê o que quer ler. Por isso, prefiro o cheiro deles quando ardem."

Já pareces o Pepe Carvalho Táxi! Concordo.

Anónimo disse...

Cristina vou-te oferecer este brinquedo no natal

Ana Cristina Leonardo disse...

Manuel, agradeço antecipadamente. Táxi Pluvioso, da Baywatch só me lembro do David Hasselhoff, aquele rapaz de cabelo aos caracóis parecido com o Marco Paulo, e da Palmela, já não sei se antes ou depois de insuflada. Mas agora que fala nisso...

Anónimo disse...

Por falar no David Hasselhoff...

Anónimo disse...

Ana Cristina:
Como escreveu Nietzsche," Há homens tranquilos que se servem da serenidade porque está serenidade os torna incompreensíveis. Eles querem ser mal compreendidos ". No caso do M.H. o que parece, é.Salut! FAR

menina alice disse...

Belo textículo. Até me deixa com vontade de concordar quando espreitar esse Houellebecq.

Táxi Pluvioso disse...

Um nadador-salvador resgata qualquer corpo, inclusive um corpo sem órgãos. Just doing his job!

Luis Eme disse...

Quanta filosofia literária...

e eu que vinha só comer um pastel de feijão...

Ana Cristina Leonardo disse...

luís, aqui é mais bolas de berlim

Anónimo disse...

Tema astral de Michel HOUELLEBECQ:

La prédominance d'éléments planétaires dans l'hémisphère Sud vous pousse à agir, à vous montrer et rendre visibles à tous vos actes et ce que vous avez en tête. Au mépris et au détriment parfois d'une vie intérieure plus riche et d'une réflexion plus profonde et sage. L'action et la communication vous interpellent et vous avez tendance à considérer que ce qui compte, c'est ce qui se voit ! Ce n'est pas forcément exact et il vous appartient pour évoluer de ne pas négliger les forces de l'être, la méditation, la solitude et l'imagination sans lesquelles toute manifestation ne peut aboutir que de façon limitée et sans vous rendre pour autant plus fort.

Ana Cristina Leonardo disse...

Milú, com esse tema astral o Michel devia ter ido antes para a política ou para marketing & publicidade, o que nos dias que correm é praticamente um pleonasmo