«That is no country for old men»: Cormac McCarthy foi buscar a Yeats o verso que dá título ao romance. Sylvia Plath também não estaria mal: «I talk to God but the sky is empty». Por aqui não há ninguém a quem o céu proteja.
O catolicismo tem, que me ocorra de repente, duas coisas boas: os filmes de Martin Scorsese e os livros de Cormac McCarthy. É verdade que em Este País não É para Velhos o Ser Supremo pode ser uma desilusão. Mas até o xerife Bell, assaltado por visões de Satanás entre os homens, compreenderia Hemingway quando este um dia, inquirido sobre se acreditava em Deus, respondeu: «À noite, às vezes».
Quando escrevo, a versão cinematográfica deste romance já estreou nos EUA. Não por acaso, decerto, sob a batuta de Joel e Ethan Cohen, a dupla responsável pelo maior tratado moral alguma vez transposto para o ecrã: Miller's Crossing, em português, História de Gangsters. Porque McCarthy escreve livros morais. Com o adjectivo a encarnar o seu sentido mais nobre, aquele que percorre autores tão diversos como Defoe, Flaubert, Dostoievski, Conrad ou Melville. O cenário da acção é, como já o era em todos os títulos da Triologia da Fronteira, a América profunda que havia também fascinado Faulkner. Um caçador de antílopes a contas com o passado, Llewelyn Moss, encontra por acaso, ao lado de um monte de cadáveres, uma mala com dois milhões de dólares. Alguma coisa correu mal no que se percebe ter sido uma transacção de droga e o único sobrevivente é um mexicano moribundo que implora por água. Moss não tem como lhe matar a sede, mas tomará duas decisões morais que lhe irão determinar a vida (e a de outros) para sempre: rouba a mala dos dólares e volta ao lugar do crime para dessedentar o homem.
A partir deste fait-divers tantas vezes glosado, McCarthy produz um romance poderoso, um western moderno e metafísico que nos confronta, num registo slow motion que lembra Rulfo, com a condição humana no que ela tem de mais terrível. Porque, claro, Moss não se safará impunemente com a mala dos milhões: «(...) Ficou sentado a olhar para as notas, depois fechou a aba e continuou sentado de cabeça baixa. Tinha ali a sua vida inteira, pousada na sua frente. Dia após dia, do nascer ao pôr do Sol, até ao momento da sua morte. Tudo resumido a dezoito quilos de papel dentro de uma mala.»
Ao brilhantismo estilístico (e sobre isso escreve e bem o tradutor Paulo Faria em nota introdutória), acresce a construção romanesca. Este País não É para Velhos não começa sequer com o resumido fait-divers. A abrir, algumas reflexões proferidas na primeira pessoa pelo desencantado e velho xerife Bell, as quais irão pontuando o desenrolar da acção sem que em nada satisfaçam, esclareça-se já, a nossa necessidade de consolo: «Lembram-se do que eu disse no outro dia sobre os jornais. Na semana passada lá na Califórnia, apanharam um casal que alugava quartos a idosos e depois matava-os e enterrava-os no quintal. A seguir iam levantar os cheques das pensões de reforma. Mas primeiro torturavam-nos, não sei porquê. Se calhar tinham a televisão avariada».
É Bell quem sai em socorro de Moss e da mulher deste, alvos visados por Chigurh, um assassino a soldo dos patrões da droga que tem por missão recuperar o largo punhado de dólares. Desde sempre se percebe que o casal tem todos os motivos para não dormir descansado: «Estou-me aqui a preparar para fazer uma coisa completamente estúpida, mas mesmo assim vou seguir em frente. Se eu não voltar, diz à minha mãe que gosto imenso dela.
A tua mãe já morreu, Llewelyn.
Bom, então eu mesmo lhe digo.»
E a coisa estúpida é ir dar água a um moribundo.
Chigurh, que não é um sádico, ao contrário do juiz Holden desse outro livro de McCarthy para «leitores corajosos», Meridiano de Sangue, apenas um homem zeloso do seu destino de matador, não sofre da doença humana da compaixão. É isso mesmo que explica a Carla Jean:
«Estás a pedir-me que me torne vulnerável, e isso é coisa que eu nunca poderei fazer. (...) A grande maioria das pessoas não acredita que possa existir alguém assim. Isso deve constituir para elas um grande problema (...). Como levar a melhor sobre uma coisa cuja existência nos recusamos a reconhecer. Compreendes? Assim que eu entrei na tua vida, a tua vida terminou. Teve um começo, um meio e um fim. O fim é agora. Dirás que as coisas podiam ter sido diferentes. Que podiam ter corrido de outra maneira. Mas o que é que isso significa? As coisas não correram de outra maneira. Correram desta. Estás a pedir-me que desminta o mundo. Percebes?
Sim, disse ela, a soluçar. Percebo. A sério que percebo.
Ainda bem, disse ele. Óptimo. Depois deu-lhe um tiro.»
E é sobre Chigurh que Bell, logo a abrir, fará a pergunta mais inquietante de todas: «O que é que se diz a um homem que é o primeiro a reconhecer que não tem alma?» Daqui ninguém sai vivo? Bom, quase ninguém. Talvez Loretta, a mulher do xerife. Mas só porque não lia jornais.
O catolicismo tem, que me ocorra de repente, duas coisas boas: os filmes de Martin Scorsese e os livros de Cormac McCarthy. É verdade que em Este País não É para Velhos o Ser Supremo pode ser uma desilusão. Mas até o xerife Bell, assaltado por visões de Satanás entre os homens, compreenderia Hemingway quando este um dia, inquirido sobre se acreditava em Deus, respondeu: «À noite, às vezes».
Quando escrevo, a versão cinematográfica deste romance já estreou nos EUA. Não por acaso, decerto, sob a batuta de Joel e Ethan Cohen, a dupla responsável pelo maior tratado moral alguma vez transposto para o ecrã: Miller's Crossing, em português, História de Gangsters. Porque McCarthy escreve livros morais. Com o adjectivo a encarnar o seu sentido mais nobre, aquele que percorre autores tão diversos como Defoe, Flaubert, Dostoievski, Conrad ou Melville. O cenário da acção é, como já o era em todos os títulos da Triologia da Fronteira, a América profunda que havia também fascinado Faulkner. Um caçador de antílopes a contas com o passado, Llewelyn Moss, encontra por acaso, ao lado de um monte de cadáveres, uma mala com dois milhões de dólares. Alguma coisa correu mal no que se percebe ter sido uma transacção de droga e o único sobrevivente é um mexicano moribundo que implora por água. Moss não tem como lhe matar a sede, mas tomará duas decisões morais que lhe irão determinar a vida (e a de outros) para sempre: rouba a mala dos dólares e volta ao lugar do crime para dessedentar o homem.
A partir deste fait-divers tantas vezes glosado, McCarthy produz um romance poderoso, um western moderno e metafísico que nos confronta, num registo slow motion que lembra Rulfo, com a condição humana no que ela tem de mais terrível. Porque, claro, Moss não se safará impunemente com a mala dos milhões: «(...) Ficou sentado a olhar para as notas, depois fechou a aba e continuou sentado de cabeça baixa. Tinha ali a sua vida inteira, pousada na sua frente. Dia após dia, do nascer ao pôr do Sol, até ao momento da sua morte. Tudo resumido a dezoito quilos de papel dentro de uma mala.»
Ao brilhantismo estilístico (e sobre isso escreve e bem o tradutor Paulo Faria em nota introdutória), acresce a construção romanesca. Este País não É para Velhos não começa sequer com o resumido fait-divers. A abrir, algumas reflexões proferidas na primeira pessoa pelo desencantado e velho xerife Bell, as quais irão pontuando o desenrolar da acção sem que em nada satisfaçam, esclareça-se já, a nossa necessidade de consolo: «Lembram-se do que eu disse no outro dia sobre os jornais. Na semana passada lá na Califórnia, apanharam um casal que alugava quartos a idosos e depois matava-os e enterrava-os no quintal. A seguir iam levantar os cheques das pensões de reforma. Mas primeiro torturavam-nos, não sei porquê. Se calhar tinham a televisão avariada».
É Bell quem sai em socorro de Moss e da mulher deste, alvos visados por Chigurh, um assassino a soldo dos patrões da droga que tem por missão recuperar o largo punhado de dólares. Desde sempre se percebe que o casal tem todos os motivos para não dormir descansado: «Estou-me aqui a preparar para fazer uma coisa completamente estúpida, mas mesmo assim vou seguir em frente. Se eu não voltar, diz à minha mãe que gosto imenso dela.
A tua mãe já morreu, Llewelyn.
Bom, então eu mesmo lhe digo.»
E a coisa estúpida é ir dar água a um moribundo.
Chigurh, que não é um sádico, ao contrário do juiz Holden desse outro livro de McCarthy para «leitores corajosos», Meridiano de Sangue, apenas um homem zeloso do seu destino de matador, não sofre da doença humana da compaixão. É isso mesmo que explica a Carla Jean:
«Estás a pedir-me que me torne vulnerável, e isso é coisa que eu nunca poderei fazer. (...) A grande maioria das pessoas não acredita que possa existir alguém assim. Isso deve constituir para elas um grande problema (...). Como levar a melhor sobre uma coisa cuja existência nos recusamos a reconhecer. Compreendes? Assim que eu entrei na tua vida, a tua vida terminou. Teve um começo, um meio e um fim. O fim é agora. Dirás que as coisas podiam ter sido diferentes. Que podiam ter corrido de outra maneira. Mas o que é que isso significa? As coisas não correram de outra maneira. Correram desta. Estás a pedir-me que desminta o mundo. Percebes?
Sim, disse ela, a soluçar. Percebo. A sério que percebo.
Ainda bem, disse ele. Óptimo. Depois deu-lhe um tiro.»
E é sobre Chigurh que Bell, logo a abrir, fará a pergunta mais inquietante de todas: «O que é que se diz a um homem que é o primeiro a reconhecer que não tem alma?» Daqui ninguém sai vivo? Bom, quase ninguém. Talvez Loretta, a mulher do xerife. Mas só porque não lia jornais.
4 comentários:
Excelente texto.
2 gralhas: "Se calhar tinham a televisão avarida" e "E é sobre Chigurh que Bell, logo a abir,"
estou sem óculos. não percebo, além de avarida, qual é a gralha?
"LOGO A ABIR" não devia ser "LOGO A ABRIR"?
é mesmo dos óculos, porra! e ainda dizem que a idade dá sabedoria
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