[Uma versão abreviada deste texto foi publicada no semanário Expresso, caderno Actual]À boleia dos versos de Natália ― “ó subalimentados do sonho! / a poesia é para comer”― arriscaria que entre as artes literária e culinária existem certas afinidades electivas. A culinária parte, todavia, em vantagem: os seus ingredientes base podem ser mais ou menos nobres ou mais ou menos variados; a literatura está confinada ao verbo ― alquimia de fracos recursos, vive do mistério que transforma a palavra vulgar em romanesca ou poética.
Nele entrados, terá de obrigatoriamente acontecer aquilo que o nobel J-M G Le Clézio resumiu assim: “Les mots ne veulent pas dire les sentiments, les passions ou les obsessions. Cela ne les intéresse pas. Ils vibrent et tremblent comme des oiseaux avant de crier" (in L'Inconnu sur la Terre). Acrescente-se ao manuseio do verbo o pesado lastro da história da literatura e perceber-se-á que contar (mais) uma história não basta.
João Paulo Borges Coelho tinha uma para contar. Melhor, várias. Escreveu O Olho de Hertzog e venceu o prémio Leya 2009.
O tempo da acção recua ao fim da Grande Guerra, o cenário fica na África Austral (entre Moçambique e a África do Sul), o protagonista é Hans Mahrenholz, um misterioso militar alemão que deambula por Lourenço Marques ― onde se cruza com uma plêiade de personagens, recriadas, umas (como a do jornalista mulato João Albasini de quem o livro reproduz alguns editoriais), ou imaginadas de raiz, outras ―, o cocktail doseado em partes exactas de História e thriller.
Quem é Hans Mahrenholz, chegado num zepelim de onde se atira de pára-quedas em socorro de um exército que já havia perdido a guerra? O que procura ele em Lourenço Marques, disfarçado de inglês sob o nome de Henry Miller? Quem é Rapsides, o homem da cicatriz? E Glück, essa figura sombria à luz da qual se vai desenhando Mahrenholz?
Estas perguntas delimitam o enredo; das respostas, infelizmente, não resulta um grande livro.
Borges Coelho ensaia estratégias conhecidas.
Alternância temática de capítulos (a fuga ao exército português no mato versus peripécias urbanas); alternância da primeira e terceira voz do narrador; tentativa de cruzamento dos tempos da acção dentro de um mesmo plano, vide mesmo parágrafo (de todo não conseguida, sobretudo atendendo a essa obra-prima de Saul Bellow intitulada A Autêntica); recurso hiper-realista a listas de publicidade de época (já ensaiado jocosamente, entre outros, por Camilo, mas que aqui pouco mais é do que um acrescento ornamental), analepses, encontros e desfechos forçados (inverosímeis no registo realista adoptado), inconsistência das personagens (mesmo João Albasini parece uma caricatura)…
Se a isto juntarmos a cacofonia das aliterações, as soluções frásicas duvidosas (“soluços molhados do tempo”, logo na primeira página), uma linguagem que não levanta voo e um esqueleto organizacional à vista, sobra o rigor histórico, o ineditismo do material ficcionado, uma ou outra imagem conseguida ("... caminhando pelos capinzais como se anda nas ruas da cidade, olhando as árvores como se olhasse as montras"), o jogo de identidades (ninguém é quem parece ser num tempo e espaço históricos que se encontram, eles mesmos, pejados de indefinições), e, sobretudo, esse achado delicioso do contabilista A.O. Salazar.
Encerrando o balanço estritamente literário (prémios e negócios à parte), diria que não basta ser historiador para escrever um romance histórico (leia-se Guerra e Paz) e que, em O Olho de Hertzog, Glück perde demasiado para Kurtz, sendo impossível ― além de inadmissível― entrados no século XXI, vir falar de arte literária e ignorar Conrad e Tolstói. Logo os dois. E que dois!
O Olho de Hertzog, João Paulo Borges Coelho, Leya, 2009