Conhecido na América como o “Chekhov dos subúrbios” – por aplicar a sua análise cirúrgica da natureza humana, similar à do escritor russo, a personagens que situa, normalmente, em lugares na aparência idílicos, e a palavra-chave é, claro, “aparência” – Cheever retrata em Crónica de Wapshot a família do mesmo nome, cujas origens remontam ao século XVII e que desde essa altura vive na região de St. Botolphs, uma terra em decadência, antigo porto fluvial que já conheceu melhores dias.
O romance organiza-se em torno de Leander Wapshot, o pai de família e capitão do S.S. Topaze, “um xaveco de água doce que se movia (…) a passo de lesma”, da sua mulher, Sarah Coverly, dos filhos Moses e Coverly e ainda de Honora, uma prima rica e dominadora que acabará por deserdar os rapazes “expulsos do paraíso, até ao dia em que cresçam e se multipliquem” (do prefácio de Rick Moody, autor de Tempestade de Gelo, livro com o qual Ang Lee faria um belíssimo filme).
Despiciendo contar as aventuras narradas, sublinhe-se a organização da obra – cheia de interrupções, excentricidades e apartes picarescos – o humor fino e melancólico de Cheever e, sobretudo, o prazer que se retira do seu domínio da linguagem: “Tal como Moses, chegas às nove da noite a Washington, uma cidade desconhecida. Esperas a tua vez de sair do comboio, de mala na mão, e percorres o cais de embarque até à sala de espera. Aqui pousas a mala e olhas à tua volta, perguntando a ti mesmo qual teria sido a ideia do arquitecto. Há deuses por cima da tua cabeça, na penumbra, e o chão que pisas, a menos que tenha sofrido alguma intervenção, foi em tempos percorrido por reis e presidentes. Segues a multidão e o ruído de uma fonte, passando desta penumbra para a noite. Pousas de novo a mala e ficas de boca aberta. (..)”
Como disse o próprio Cheever, “a page of good prose remains invincible.”
Crónica de Wapshot, John Cheever, Relógio D’Água, 2010, tradução de José Miguel Silva
3 comentários:
Lá iremos, tenho mais Cormac à espera e Salinger.
Só para te enervar, estou a traduzir Felisberto Hernández, o "pianista" a que Vila-Matas se refere no que andas a ler ;)
Fallorca, para te redimires de me tentar enervar, bem podias pedir lá ao editor do Matas para enviar um exemplar chez moi.
Hmmm... amuaram. Não prometo, para não falhar ou dizer-te que levei sopa
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