23/03/10

A book a day keeps the doctor away

Uma saga familiar tem de ser uma coisa chata? Não tem. A prova (descontado Thomas Mann, para quem aprecie, e não é o meu caso...) está neste livro de John Cheever (1912-1982), contista de primeiríssima água que se estreou no romance – cautelosamente, só em 1957 – com Crónica de Wapshot, título que lhe valeria o National Book Award e ao qual daria continuação mais tarde com The Wapshot Scandal, publicado em 1964.
Conhecido na América como o “Chekhov dos subúrbios” – por aplicar a sua análise cirúrgica da natureza humana, similar à do escritor russo, a personagens que situa, normalmente, em lugares na aparência idílicos, e a palavra-chave é, claro, “aparência” – Cheever retrata em Crónica de Wapshot a família do mesmo nome, cujas origens remontam ao século XVII e que desde essa altura vive na região de St. Botolphs, uma terra em decadência, antigo porto fluvial que já conheceu melhores dias.
O romance organiza-se em torno de Leander Wapshot, o pai de família e capitão do S.S. Topaze, “um xaveco de água doce que se movia (…) a passo de lesma”, da sua mulher, Sarah Coverly, dos filhos Moses e Coverly e ainda de Honora, uma prima rica e dominadora que acabará por deserdar os rapazes “expulsos do paraíso, até ao dia em que cresçam e se multipliquem” (do prefácio de Rick Moody, autor de Tempestade de Gelo, livro com o qual Ang Lee faria um belíssimo filme).
Despiciendo contar as aventuras narradas, sublinhe-se a organização da obra – cheia de interrupções, excentricidades e apartes picarescos – o humor fino e melancólico de Cheever e, sobretudo, o prazer que se retira do seu domínio da linguagem: “Tal como Moses, chegas às nove da noite a Washington, uma cidade desconhecida. Esperas a tua vez de sair do comboio, de mala na mão, e percorres o cais de embarque até à sala de espera. Aqui pousas a mala e olhas à tua volta, perguntando a ti mesmo qual teria sido a ideia do arquitecto. Há deuses por cima da tua cabeça, na penumbra, e o chão que pisas, a menos que tenha sofrido alguma intervenção, foi em tempos percorrido por reis e presidentes. Segues a multidão e o ruído de uma fonte, passando desta penumbra para a noite. Pousas de novo a mala e ficas de boca aberta. (..)”
Como disse o próprio Cheever, “a page of good prose remains invincible.”

Crónica de Wapshot, John Cheever, Relógio D’Água, 2010, tradução de José Miguel Silva

3 comentários:

fallorca disse...

Lá iremos, tenho mais Cormac à espera e Salinger.
Só para te enervar, estou a traduzir Felisberto Hernández, o "pianista" a que Vila-Matas se refere no que andas a ler ;)

Ana Cristina Leonardo disse...

Fallorca, para te redimires de me tentar enervar, bem podias pedir lá ao editor do Matas para enviar um exemplar chez moi.

fallorca disse...

Hmmm... amuaram. Não prometo, para não falhar ou dizer-te que levei sopa