"DEZEMBRO
Aqui estou no meu quarto habitual, onde me parece ter estado sempre. Como tantas outras manhãs da minha vida, encontro-me em casa a escrever. Ressoa, vibrante, a música Be My Baby, cantada pelas The Ronettes. Quando tinha dezassete anos, era a minha canção preferida. De repente, ouço perfeitamente que alguém acaba de chegar ao patamar, no elevador. Mas é estranho. Quem chegou não toca a nenhuma das quatro portas, nem se decide a abrir nenhuma delas. É como se tivesse ficado indeciso, aturdido ou simplesmente imóvel, ali. Vivo há tantos anos nesta casa, que controlo muito bem os sons que se possam ouvir perto da minha porta. Passam quase dois minutos até que, exactamente quando a canção termina, tocam à minha porta. Abro. Vejo um homem, mais ou menos da minha idade. É o estafeta de uma editora e veio entregar-me um livro. Dá-mo e assino um papel. «As Ronettes...», sussura o homem, melancólico. «Põem-me bem-disposto», comento sem me mostrar surpreendido - embora o esteja - por ele conhecer The Ronettes. Sorrio, despeço-me, fecho a porta devagar, com a amabilidade habitual. Fico à escuta atrás da porta e noto que o homem não entra no elevador. É possível que tenha voltado a ficar imóvel no patamar. Seguramente, deixou-se ficar encostado a uma parede, quebrado, desfeito de nostalgia e até a chorar, à espera que volte a pôr-lhe Be My Baby.»
[abertura de] Diário Volúvel, Enrique Vila-Matas, Teorema, 2010, tradução de Jorge Fallorca
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5 comentários:
Ah, leoparda! Danças?
Com certeza|
Comprei-o ontem, invejosíssima com este extracto ;-)
Vou ver se, esta Páscoa, dou cabo do Brendan Behan para, depois me atirar a ele.
IO, é mesmo muito bom este Vila-Matas. Quanto ao Brendan Behan também está na minha lista, mas para depois da páscoa.
O Villas-Boas vai para o FCPorto.
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