31/03/10

A book a day keeps the doctor away

Este livro é uma pequena pérola. Não porque seja portátil — chega às 600 páginas — mas porque nos introduz a um Oriente expurgado de exotismos e misticismos de trazer por casa. Aliás, se há coisa que Disse-me um Adivinho prova à exaustão é o materialismo que subjaz à cultura chinesa (pragmática, tanto nos negócios como na acupunctura).
A China, apesar da sua presença recorrente, não é, porém, tema exclusivo. O autor percorre uma Ásia em uniformização acelerada (Laos, Birmânia, Tailândia, Indonésia, Malásia…), sendo ainda assim capaz de nos dar a ver nuances, idiossincrasias e mesmo incompatibilidades (e essa é certamente outra das grandes atracções do livro). E consegue-o também por isto: porque, apesar da “uniformização acelerada”, o italiano Tiziano Terzani (1938-2004) viaja devagar.
Tudo começou quando um adivinho de Hong Kong o avisou que 1993 seria o ano de todos os perigos. Estava-se ainda em 1976 e na realidade todos os perigos se resumiam a um: o jornalista não deveria andar de avião. Passadas quase duas décadas, Terzani aproveitou a profecia e desacelerou a sua vida frenética de repórter de guerra e similares, no Vietname, no Cambodja, na China (de onde acabaria expulso), na Rússia e etc. Fez-se à estrada e ao mar e desse percurso longo nasceria Disse-me um Adivinho, declaração de amor sentida a um Oriente que se desfaz a olhos vistos, libelo contra o desenvolvimento a todo o custo, confissão de um homem inquieto e por vezes angustiado: “Não é de admirar que a depressão seja hoje um mal tão comum. É quase reconfortante. É sinal que no íntimo das pessoas ainda resta o desejo de serem mais humanas.”
No seu longo périplo, o italiano vai conjugando curiosidade com cepticismo, desconfiança com abertura de espírito. As suas recorrentes visitas a adivinhos — fio condutor da narrativa — são-nos descritas com humor e inteligência. Nada aqui é a preto e branco. A ironia do viajante ajuda ao resto.
A descrição de Singapura, “a cidade com mais robôs per capita do mundo” atinge o ponto: “(…) o que é que acontece na cabeça das crianças que crescem com a impressão de que há solução para todos os problemas e que tudo é, quanto muito, uma questão de software?” E, mais à frente, ainda sobre o Estado asiático exemplar: “Um dia descobre-se que esta cidade rica e moderna é enfadonha, sem cultura e sem arte? Vai-se buscar um general ao exército e faz-se dele ministro. Ele se encarregará de dar ordens para que a cultura e as artes floresçam.”
Inteligente, conhecedor, apaixonado, desencantado, o jornalista dá-nos a conhecer uma Ásia que perde identidade (e alteridade) mas que ainda assim nos surpreende, pejada de xãmas, astrólogos, yoguis, bruxos ou simples charlatães, tu cá tu lá com o mundo invisível, e na qual o próprio Terzani se liberta por momentos do seu corpo, guiado por um mestre budista ex-agente da CIA.
Estranhos são os caminhos abertos por um adivinho e estranhos são os caminhos dos homens.
Disse-me um Adivinho, Tiziano Terzani, Tinta-da-China

9 comentários:

Cristina Gomes da Silva disse...

Olá AC, ainda vou nas primeiras vinte páginas e nunca odiei tanto a minha absoluta diletância errante em relação à leitura...se não fosse ela já teria podido chegar ao fim sem antecipar (através do seu post) o que esta magnífica narrativa nos oferece. Abraço, CGS

jaa disse...

Eu prometi que o comprava e ainda não o fiz. Mas tratarei do assunto a curto prazo, ok? (Que não sou de deixar promessas por cumprir - excepto as de responder a telefonemas ou mensagens de correio electrónico.)

fallorca disse...

Já sei, já sei, mas ainda não recebi, provocadora :)

io disse...

tão bom, tão bom, tão bom que, com uma excepçãozinha para um amigo que não é muito dado à leitura, não tenho comprado outra coisa para oferecer. Falta de imaginação? Nã. O Terzani é mesmo muito bom e todos e cada um deles merecem-no.

Bem caçado em meia-dúzia de linhas, Ana Cristina, que é como quem escreve MAIS UMA belíssima recensão.

Ana Cristina Leonardo disse...

IO, muito obrigada

jaa disse...

Promessa cumprida. Resta saber quando vou conseguir lê-lo. Estou a ponderar seriamente dedicar-me apenas a livros de viagens durante um mês...

Ana Cristina Leonardo disse...

jaa, por falar em livros de viagens, uma das coisas mais bonitas que já li foi "Trilhos", da Robyn Davidson, editado há uns anos pela Quetzal. Se não leu, aconselho vivamente

jaa disse...

Obrigado pelo conselho, Ana Cristina, mas eu não poooosso comprar mais livros. Há dias empilhei oito (dos, sei lá, cento e muitos ou talvez mais de duzentos que tenho aqui por ler) no canto da secretária e prometi que: a) os lia até ao fim de Abril; b) não comprava mais enquanto não os lesse. A leitura não vai mal (três e um bocadinho) mas o Terzani já foi uma quebra das regras que me impus.

Bom, talvez se o encontrar na Feira do Livro...

Ana Cristina Leonardo disse...

vale muito, mas mesmo muito a pena. se eu o encontrar por aqui no meus montes talvez ainda poste qualquer coisa que isto da actualidade tem que se lhe diga...