31/10/10

Eu bem me parecia que andava no ar aquela coisa infantil de a "minha pilinha é maior que a tua"

«Com o cabelo da cor da espiga do trigo e uma franjinha que quase batia nos enormes olhos azuis, Pedro mais parecia uma boneca. Era o mais novo dos quatro irmãos — e aquele a quem a mãe (...) prestava mais atenção. Ela achava-o doce como um rebuçado, mas o pai sabia que o miúdo era dado a cóleras súbitas. Um dia, num restaurante, (...) a empregada de mesa perguntou: "O que é que a menina vai comer?". Nem houve tempo para explicações. Pedro cresceu na cadeira e, dirigindo-se ao pai, perguntou: "Pai, mostro-lhe a pilinha?"» (Felícia Cabrita, da primeira parte da biografia de Pedro Passos Coelho, na "Tabu"/"Sol)
Lido AQUI. Sobre outras pilinhas, AQUI.

29/10/10

A culpa foi da preia-mar [a propósito, a Holanda já desapareceu?]

Segundo o vereador municipal Manuel Brito (pelouro do Desporto, Obras Municipais e Protecção Civil), as inundações de hoje na capital ficaram a dever-se à coincidência de uma precipitação intensa com a preia-mar e isso afeta tradicionalmente as zonas baixas da cidade, a Baixa e a 24 de Julho.
Nada que ver, portanto, nem com a impermeabilização dos solos nem com os sistemas de limpeza.

A book a day keeps the doctor away: "Divórcio em Buda", Sándor Márai

Autor de livros que transpiram melancolia por todos os poros, Sándor Márai pertence aquela categoria de escritores que, uma vez descobertos, nunca mais se conseguem abandonar.
Desaparecido em 1989, data em que suicidou no exílio com um tiro na cabeça — faltavam dois meses para chegar à mesma idade do século —, vivia há muito arredado da glória que em tempos conhecera. Nome aclamadíssimo das letras húngaras, os seus livros haviam caído entretanto no esquecimento para só serem redescobertos na década de 90, após a sua morte.
Anti-fascista e anti-comunista, Márai abandonara a Hungria em 1948, fixando-se, por fim, nos EUA, na Califórnia, após ter residido na Itália e na Suíça. Viúvo, quase cego e cercado pela solidão, o escritor, que fora proscrito no seu próprio país e, poliglota, teimara, ainda assim, em exprimir-se em húngaro, não poderia imaginar o notável renascimento da sua obra, que muitos não hesitam em emparceirar com as de Musil ou Joseph Roth.
Cronista subtil e delicado do período entre as duas guerras, Márai cultiva a perspicácia tolstoiana conseguindo, através de personagens ambíguas e irresolutas, dar-nos a ver a decadência de um mundo que nunca mais será o mesmo: a crença no Iluminismo e na civilização humanista que, até então, muitos acreditavam ser o caminho da Europa, cairia por terra, varrida pelo nazismo e pela experiência comunista.
Em Divórcio em Buda, belíssimo retrato psicológico que prenuncia essa obra-prima intitulada As Velas Ardem até ao Fim (também traduzida na Dom Quixote), um juiz é chamado a julgar um caso de divórcio que envolve um casal seu conhecido. Caso simples, não fora os perigos que acompanham aqueles que “viajam por lugares ignotos”.
Escrito em 1935, Divórcio em Buda antecipa os anos de chumbo e revela-nos o declínio da época através da história trágica de um triângulo amoroso — mais imaginário do que real —, pondo em confronto dois homens que dialogam a propósito de uma mulher morta enquanto outra dorme tranquilamente, burguesmente, junto aos filhos inocentes.
Reflexão sobre o amor e também sobre a justiça humana, o romance coloca frente a frente o ponderado juiz Kristóf Kőmives e o desesperado médico Imre Greiner. A separá-los — e a aproximá-los — Anna Fazekas, mulher do último e flirt fugaz e remoto do primeiro.
Durante uma noite, a narrativa inesperada de Greiner porá em causa os alicerces da vida pacata e metódica de Kőmives, desencadeando no juiz uma inquietação que ele julgava selada para sempre. A vida nem sempre é um longo rio tranquilo. Kőmives sobreviverá incólume à noite da confissão? O próprio pensa que sim, embora a guerra se desenhe no horizonte. Mas isto sabemo-lo nós hoje, leitores entusiastas de Márai; talvez ele, sensitivo, também o soubesse já.
Divórcio em Buda, Sándor Márai, Dom Quixote, 2010, trad. de Ernesto Rodrigues

28/10/10

Crise: a engenharia socrática



Roubado daqui

Sobre o montanheiro de sequeiro há muitas coisinhas boas no blogue do João Lisboa mas que o bardo Manuel está mesmo lelé da cuca só pode

Cada vez que o homem fala o outro faz eco. A coisa é caricata e a última utrapassa tudo.
Após o anúncio de que a candidatura à presidência de Cavaco seria poupadinha, Alegre veio acusar o montanheiro de sequeiro de atitude populista.
Horas passadas, chega o anúncio: o candidato do PS e do BE vai gastar menos 500 mil euros do que Cavaco.
Vão-me desculpar, que assim como assim está em causa a eleição do representante máximo da nação, mas isto só me lembra aqueles concursos dos putos "a minha pila é maior que a tua", no caso em versão inversa.

26/10/10

João César das Neves desperta de novo o animal que há em mim mas alegra-me saber que ele vive com mais de 2 USD por dia que eu cá não sou de invejas

"Nestes tempos de pluralismo, diversidade e agitação existem poucos consensos. Um dos mais gerais é a crítica ao sistema. Vivemos no regime mais reprovado, vituperado e desprezado da história. É espantoso o grau e vastidão desse acordo. Toda a gente acha que isto está mesmo muito mal.
Em Portugal, Europa e mundo, das esquerdas às direitas, conservadores ou revolucionários, jovens e idosos, governos e oposições, todos concordam que isto anda cada vez pior. E não se diga que a causa é a crise financeira, porque mesmo no período anterior, que hoje nos parece de optimismo e euforia, as queixas eram universais. O nosso tempo detesta-se a si próprio. Os únicos períodos, aliás fugazes, de algum alívio e esperança vêm de oportunidades de mudar a detestada situação. O mais recente, na eleição de Obama, foi visto como um triunfo da heterodoxia e contracultura. Já acontecera o mesmo com Blair ou até Sarkozy. Depois, como é inevitável, todos acabam atacados por se acomodar e manter a abominação.
Os lamentos e mal-estar são compreensíveis pelas múltiplas injustiças, abusos, sofrimentos, miséria, desorganização, corrupção, vícios, perversões. Cada um identifica os males que considera piores e todos se queixam por razões objectivas e reais, embora muitas vezes contraditórias. Aquilo a que uns atribuem a maldade, outros lamentam a falta. Mas a questão é, não a justificação, mas a sabedoria das acusações.
Antes de mais é bom perguntar: para quê criticar o sistema? Este é o mundo que temos e ninguém nos vai dar outro. Já era mau quando cá chegámos e continuará a sê-lo depois de partirmos. Não seria mais sensato entretanto contentar-nos com o que temos?
É verdade que o conformismo é um dos vícios mais abominados neste tempo, e todos pensam que estes protestos nos desinstalam, contribuindo para melhorar a situação. Mas será mesmo assim? É indispensável que cada um tente deixar o mundo o melhor possível. Mas isso é uma actividade humilde e atenta, ao nosso nível local, amando e ajudando o próximo. Nada tem que ver com bramar contra males remotos e genéricos, nos quais a nossa influência é nula. Tal lisonjeia o nosso ego, mas não passa de vacuidade ociosa. Quando não é mesmo prejudicial, como as próximas greves, nada resolvendo, pois não há mesmo dinheiro, apenas servem para diminuir o pouco que ainda existe.
Suponhamos, no entanto, que as nossas queixas eram ouvidas. Iriam mesmo melhorar alguma coisa? A verdade é que os problemas globais são muito complexos, e as soluções têm inesperadas consequências nocivas. Basta lembrar como a ingénua confiança dos nossos avós nas virtudes do progresso industrial criou os actuais pesadelos ambientais, ou como o desenvolvimento das regiões pobres, tão ansiosamente desejado, começa a suscitar perigosos desequilíbrios globais que irão assombrar o futuro.
Por outro lado, será a situação assim tão má? Não há dúvida de que, persistindo muitos e graves problemas, o mundo progrediu nos últimos tempos muito mais do que seria de esperar há uma ou duas gerações. A percentagem de pessoas a viver no planeta com menos de dois dólares por dia é ainda de quase 50%. Mas era de 63% em 2002 e de 75% em 1980. Mesmo a actual crise e desemprego, se significam graves sofrimentos para muitos, não têm comparação com a miséria que se vivia por cá há 20 ou 30 anos, em crises menos profundas que esta.
O aspecto mais grave deste clima de descontentamento e queixume é, no entanto, a ingratidão
. Tudo aquilo que somos e temos devemo-lo ao sistema que nos sustenta. É este mundo que tanto desprezamos que nos alimenta todos os dias, nos veste, abriga, educa e orienta. Podemos protestar, mas é graças a ele que todos sobrevivemos. Aliás, os críticos só conseguem atacar com tanta eficácia o regime usando os largos meios que o mesmo lhes fornece.
Esta é hoje a suprema posição incorrecta, mas quero dizer uma palavra a favor deste nosso horroroso sistema. Não porque é bom, justo ou agradável, mas porque é nosso. Tem muitos defeitos, mas a grande vantagem de existir."
Lido AQUI, a partir DAQUI.

Crianças e bebés obrigados a inscrever-se nas finanças [e o cuzinho lavado com água das malvas também ia, não? E não estou a falar para as crianças]

Estão a tentar enlouquecer-nos. Até Março, todas as crianças portuguesas terão de ter número de identificação fiscal. Sem isso, não entram nas declarações de rendimentos dos pais. Como já não se fazem cartões de contribuinte, os petizes terão de pedir Cartão de Cidadão: 7,50 euros até aos 6 anos; 15 euros, a partir dessa idade.
Façam as contas e leiam o Orwell.

25/10/10

Para que não digam que sou exagerada e tenho mau feitio

AQUI e ainda há poucos dias também AQUI, na Pastelaria.

A crise e as formas de a esconjurar porque a única coisa inevitável é a morte e um orçamento não passa de um orçamento


Alinhar ao centroDECLARAÇÃO

As medidas que o Estado português se prepara para tomar não servem para nada. Passaremos anos a trabalhar para pagar a dívida, é só. Acresce que a dívida é o menor dos nossos problemas. Portugal, a Grécia, a Irlanda são apenas o elo mais fraco da cadeia, aquele que parte mais depressa. É a Europa inteira que vai entrar em crise.
O capitalismo global localiza parte da sua produção no antigo Terceiro Mundo e este exporta para Europa mercadorias e serviços, criados lá pelos capitalistas de lá ou pelos capitalistas de cá, que são muito mais baratos do que os europeus, porque a mão-de-obra longínqua não custa nada. À medida que países como a China refinarem os seus recursos produtivos, menos viável será este modelo e ainda menos competitiva a Europa. Os capitalistas e os seus lacaios de luxo (os governos) sabem isso muito bem. O seu objectivo principal não é salvar a Europa, mas os seus investimentos e o seu alvo principal são os trabalhadores europeus com os quais querem despender o mínimo possível para poderem ganhar mais na batalha global. É por isso que o “modelo social europeu” está ameaçado, não essencialmente por causa das pirâmides etárias e outras desculpas de mau pagador. Posto isto, tenho a seguinte declaração a fazer:
Sou professor há mais de 30 anos, 15 dos quais na universidade.
Sou dos melhores da minha profissão e um investigador de topo na minha área. Emigraria amanhã, se não fosse velho de mais, ou reformar-me-ia imediatamente, se o Estado não me tivesse já defraudado desse direito duas vezes, rompendo contratos que tinha comigo, bem como com todos os funcionários públicos.
Não tenho muito mais rendimentos para além do meu salário. Depois de contas rigorosamente feitas, percebi que vou ficar desprovido de 25% do meu rendimento mensal e vou provavelmente perder o único luxo que tenho, a casa que construí e onde pensei viver o resto da minha vida.
Nunca fiz férias se não na Europa próxima ou na Índia (quando trabalhava lá), e sempre por pouco tempo. Há muito que não tenho outros luxos. Por exemplo: há muito que deixei de comprar livros.
Deste modo, declaro:
1) o Estado deixou de poder contar comigo para trabalhar para além dos mínimos indispensáveis. Estou doravante em greve de zelo e em greve a todos os trabalhos extraordinários;
2) estou disponível para ajudar a construir e para integrar as redes e programas de auxílio mútuo que possam surgir no meu concelho;
3) enquanto parte de movimentos organizados colectivamente, estou pronto para deixar de pagar as dívidas à banca, fazer não um, mas vários dias de greve (desde que acompanhados pela ocupação das instalações de trabalho), ajudar a bloquear estradas, pontes, linhas de caminho-de-ferro, refinarias, cercar os edifícios representativos do Estado e as residências pessoais dos governantes, e resistir pacificamente (mas resistir) à violência do Estado.
Gostaria de ver dezenas de milhares de compatriotas meus a fazer declarações semelhantes
PAULO VARELA GOMES

24/10/10

O Lino lá vai seguro e Pino lá foi para New York incluído na factura dos 3 milhões; Chávez voltou



Sobre Pino aqui.
Sobre Lino ali.

José Sócrates, a gente ouve e não acredita: nem um vendedor de banha da cobra certificado pelo Capucha conseguiria ir tão longe

«Se querem aproveitar esta crise como pretexto para atacar o Estado e para realizar aquilo que foram sempre os seus intentos — umas vezes mais, outras vezes menos disfarçados — não conseguirão porque o Partido Socialista manter-se-á firme em que a Constituição deve manter, no caso da educação e da saúde, uma garantia de serviços públicos que assegure a igualdade»

«Aqui está um partido socialista que quer servir os portugueses, no qual os portugueses podem ter confiança, que tem responsabilidade, que não vira a cara às dificuldades e que nunca deixa de tomar as medidas que são necessárias para servir o interesse geral»
Estas e outras pérolas AQUI.

22/10/10

E porque não ressuscitar a licença de isqueiro?

Declaração de interesses: em minha casa, a televisão só serve para ver vídeos.
Dito isto, se isto fosse um país a sério a partir de Janeiro optaríamos por viver romanticamente à luz de velas. E o António Mexia mais o Guilherme Costa que fossem comer palha para Abrantes.

Há vida para além do deficit: ontem fui ouvir Eduardo Lourenço

Eduardo Lourenço está velho. Naturalmente. Estava também um pouco cansado, como confessou, com chiste, no final.
A sala estava cheia, mesmo se pequena. Cheia e silenciosa, porque a voz de Eduardo Lourenço fala agora mais baixo.
Lourenço falava a propósito do novo livro do ensaísta e tradutor João Barrento, acabado de publicar pela Assírio & Alvim: O Género Intranquilo, Anatomia do Ensaio e do Fragmento.
O autor de Heterodoxia preferiu dissertar sobre coisas antigas que não interessam nada. Entre elas, Montaigne, o inventor do género. E falando sobre coisas antigas que não interessam nada, deu aos presentes uma lição de sabedoria, elegância, humor e simplicidade. Às vezes estas coisas andam juntas. E também gostei que não citasse Adorno nem referisse a comédia do orçamento.

21/10/10

Politicamente são o que se sabe mas também precisavam de ter cara de parvos? [da série "já não há mafiosos jeitosos"]

André Figueiredo, chefe de gabinete de José Sócrates acusado de oferecer empregos à escolha e formado em Direito numa coisa chamada Universidade Internacional da Figueira da Foz, entretanto mandada fechar pelo Mariano Gago*
Rui Pedro Soares, militante do PS, ex-administrador da PT formado em marketing pelo IPAM com 13 valores, candidato a comprador do jornal SOL e apologista de criadas fardadas
Rui Paulo Figueiredo, ex-vereador da Câmara de Lisboa pelo PS, assessor do primeiro-ministro José Sócrates e ocasionalmente espião na ilha da Madeira
Paulo Penedos, ex-secretário nacional da JS, membro da Comissão Nacional do PS e candidato precoce a secretário-geral do partido quando o Guterres bazou
Fernando Medina, porta-voz do PS e grande conhecedor de blogues

Pedro Silva Pereira, ministro da presidência e, segundo o portal do governo, "autor de diversas obras e publicações na área do Direito" (sic)
Ascenso Simões, ex-deputado do PS, membro do Conselho de Administração da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos nomeado pelo governo

Nota: Pede-se encarecidamente aos clientes da Pastelaria que enviem fotos de outros canditatos à série JÁ NÃO HÁ MAFIOSOS JEITOSOS para leonardo(ponto)anacristina(arroba)gmail(pontocom).
As exigências são parcas.
1. Podem ser militantes de qualquer partido político
2. Dá-se preferência a candidatos até aos 50 anos
3. Valorizam-se os candidatos com cursos tirados ao domingo ou similares
4. Aceitam-se candidaturas de largo espectro: de grunhos a betos; de Vilar de Maçada a Massamá.
*acrescentado entretanto à lista

20/10/10

Assim como assim bem podiam anunciar a extinção do país...

Vinha eu de passear com a minha Princesa quando ao virar da esquina dou com o Diário de Notícias pendurado no quiosque: "Governo anuncia extinção de entidades que já não existem".
Lido o artigo online, fiquei particularmente enternecida com estas entidades
Estrutura de Missão Parcerias em Saúde (dirigido por Jorge Abreu Simões)
Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental (dirigido por Manuel Alexandre Ferreira Pinto de Abreu)
Estrutura de Missão Lojas do Cidadão de Segunda Geração (dirigido por Eduardo Elísio Silva Peralta Feio)
"Estrutura de Missão" — nunca tinha ouvido falar. Será coisa de influência lacaniana?

18/10/10

António Damásio: Uma leitura de "O Livro da Consciência — A Construção do Cérebro Consciente"

Ponto prévio ao leitor. Há qualquer coisa de kantiano no último título lançado pela neurologista António Damásio. A adjectivação sugerida, além de um elogio assumido ao autor de O Livro da Consciência — A Construção do Cérebro Consciente (Kant é Kant, apesar de Hume…), representa também um aviso à navegação: à semelhança das Críticas…, a mais recente obra de Damásio não se lê como um romance.
O investigador ensaia hipóteses, contraria-as, explicita-as, enquanto desbrava caminhos e opta por trajectórias que obrigam a desfazer evidências e a suspeitar do óbvio. Aconselha-se papel e lápis. Afinal, em biologia (a pedra de toque capaz de confirmar, ou não, quaisquer conjecturas neurocientíficas) o caminho mais curto entre dois pontos raramente é uma linha recta.
Um bom exemplo: Graças ao facto de o nosso cérebro ter conseguido combinar a nova orientação tornada possível pela consciência com a antiga que consistia numa regulação inconsciente e automática, os processos cerebrais não-conscientes estão à altura das tarefas que terão de executar em nome das decisões conscientes.
Do que se trata aqui é de ultrapassar a dicotomia robusta entre consciente/inconsciente e, mais do que isso, interpretar o aparente paradoxo revelado, entre outros, pelo psicólogo Ap Dijksterhuis que, num estudo por si dirigido, nos confronta com a bizarra conclusão de as decisões tomadas sem uma pré-deliberação consciente revelarem-se de longe mais acertadas.
Ou seja, apesar do papel importante do inconsciente no que diz respeito à tomada de decisões, isso não significa, segundo Damásio, que a consciência seja descartável; tão-só que ela se terá descartado de uma série de tarefas: Os processos não-conscientes tornaram-se num meio adequado e conveniente para levar a cabo o comportamento e dar à consciência mais tempo para análise das situações e planeamento do futuro.

Começando, porém, pelo princípio. António Damásio, cientista português radicado desde 1975 nos EUA, acaba de publicar um novo livro em que retoma o tema da consciência, já ensaiado há uma década em O Sentimento de Si, desta vez pegando-o de caras. Dito isto, certos pressupostos assumidos em O Livro da Consciência…(Temas & Debates/ Círculo de Leitores) recuperam postulados anteriores, alguns deles a que quase poderíamos chamar traços distintivos do pensamento de Damásio.
De entre as ideias apresentadas neste livro, nenhuma é mais importante do que a noção de que o corpo é o alicerce da mente consciente, lê-se quase a abrir. O neurologista sublinha, assim, uma concepção já patente em obras mais antigas, a saber, a da inscrição inescapável do mental no corpóreo (seja no que diz respeito aos sentimentos, à razão ou à moral).
A unicidade corpo/mente é indiscutível e, além disso, explicativa: Espinosa viu mais longe que Descartes.
Outro pensamento reconhecível — este a denunciar um certo optimismo antropológico – é o que suporta a interpretação do papel da consciência nos processos de homeostase sociocultural. Escreve Damásio: A marcha do processo da mente não termina com o aparecimento do eu. Ao longo da evolução dos mamíferos, e especialmente dos primatas, as mentes tornaram-se cada vez mais complexas, a memória e o raciocínio desenvolveram-se notavelmente e os processos do eu alargaram o seu âmbito. (…) Armada com estruturas de eu tão complexas e apoiada por uma capacidade ainda maior de memória, raciocínio e linguagem, a mente consciente dos seres humanos cria os instrumentos de cultura e abre caminho a novas formas de homeostase ao nível da sociedade. E, em seguida, confundindo-se o cientista com o humanista: A notável redução da violência, a par do aumento da tolerância que se tornou tão aparente nos últimos séculos, não teria ocorrido sem a homeostase sociocultural.
Da citação anterior pode inferir-se outra das ideias-chave da obra, esta uma relativa novidade. Damásio introduz em O Livro da Consciência… uma “quarta dimensão” que remete para a evolução das espécies: A maioria das espécies cujo cérebro dá origem a um eu fá-lo a um nível nuclear. Os humanos possuem tanto um eu nuclear como um eu autobiográfico. Há uma série de mamíferos que provavelmente também têm ambos, como os lobos, os nossos primos símios, os mamíferos marinhos, os elefantes, os felídeos e, claro está, aquela espécie animal chamada cão doméstico.
Indo mais longe — e afundando assim um pouco mais a concepção da superioridade radical do homem — pode ler-se num subcapítulo intitulado “Consciência humana e não-humana”: 1) se uma espécie tem comportamentos que são melhor explicados por um cérebro com processos mentais do que por um cérebro com meras disposições para a acção (como, por exemplo, os reflexos); e 2) se a espécie dispõe de um cérebro com todos os componentes descritos nos capítulos seguintes como sendo necessários para criar uma mente consciente nos seres humanos, 3) então, meu caro leitor, a espécie é consciente. Feitas as contas, estou pronto a aceitar qualquer manifestação de comportamento animal que me faça pensar na presença de sentimentos, como um sinal de que a consciência não deve andar longe.
E, como habitualmente, sempre o “sentir” a desempenhar o papel de protagonista das narrativas assinadas pelo neurologista.

Mas o que é afinal a consciência? O livro avança uma definição pela positiva e pela negativa. Pela positiva, a consciência é a característica da mente que possibilita que nos percebamos a nós próprios como um eu distinto do mundo. Resumindo: é através da consciência que a nossa subjectividade se afirma. Precisa Damásio: A consciência é um estado mental — se não houver mente, não há consciência: a consciência é um estado mental particular, enriquecido por uma sensação do organismo específico onde a mente está a funcionar; e o estado mental inclui o conhecimento de que a dita existência ocupa uma certa situação, de que existem objectos e acontecimentos que a cercam. E, sem resistir ao apelo da filosofia, acrescenta: A consciência é um estado mental a que foi acrescentado o processo do ser.
Pela negativa, a consciência não se confunde com processos inconscientes. Nem com aqueles que apenas convocam um ingrediente activo (produção de imagens actual e constante no cérebro) nem com os que implicam um ingrediente latente (o que envolve um repositório de registos, para cuja existência a memorização é indispensável). Estes processos, que parecem prenunciar uma economia da consciência, assentam em três situações conhecidas: produção superabundante e constante de imagens no cérebro; selecção e ordenação espacio-temporal das mesmas, espaço limitado de exibição.
Neste particular, e apesar de o tema, alheio ao livro, merecer apenas um parêntese, valerá a pena citar esta nota de Damásio: (Na geração que cresceu habituada às multitarefas, na era digital, os limites superiores da atenção no cérebro humano encontram-se em rápida expansão, algo que provavelmente levará à alteração de certos aspectos da consciência num futuro não muito distante, se tal não tiver já acontecido. Expandir a atenção traz vantagens óbvias, e as capacidades associativas geradas pelas multitarefas trazem vantagens espantosas; em contrapartida, poderá haver um custo em termos de aprendizagem, consolidação de memória e emoção. Não temos ainda ideia de qual poderá ser esse custo.)
Fechado o parêntese, uma outra ideia-chave: as imagens são a moeda corrente da mente. O termo “imagem” é utilizado num sentido lato, englobando registos auditivos, tácteis, e até os sentimentos, entendidos como “uma variedade de imagem”.
Como o próprio explicita, “imagem” pode ser sinónimo, e é-o muitas vezes em O Livro da Consciência…, de “mapa” ou “padrão neural”. Na sua interacção com os objectos, incluindo o corpo de que faz parte, o cérebro constrói imagens, ou mapas, dos quais se alimenta. Esse filme incessante acaba por ser organizado segundo um processo que invoca uma sala de montagem, onde as escolhas são naturalmente obrigatórias, resultando de selecções feitas com base no valor, inseridas ao longo do tempo, numa estrutura lógica. E é esse processo altamente complexo que estará na base da passagem do cérebro à mente, e da mente à consciência.
A própria consciência assentará, por sua vez, num processo evolutivo que passa pelo “proto-eu”, pelo “eu nuclear” e, finalmente, pelo “eu-autobiográfico” (com a memória, ou os vários tipos de memória, a desempenhar um papel cada vez mais significativo). A ancestralidade decorrente desta visão, levou António Damásio a interessar-se por sistemas considerados mais arcaicos, nomeadamente o “humilde tronco cerebral”, apesar de deixar claro que a consciência humana necessita tanto do córtex cerebral como do tronco cerebral. O córtex cerebral não pode fazer tudo sozinho, tão-pouco o tronco cerebral.
Livro complexo para um tema complexo ou, como se escreveu mais atrás, em biologia o caminho mais curto entre dois pontos raramente é uma linha recta.

16/10/10

Habemus pen

Este estabelecimento está a ficar assim para o bélico, mas é que sinto, no meu corpo, vestígios de uma substância proibida.
Imagem roubada aqui.

And now for something completely different e metam o orçamento num sítio que eu cá sei


Eu cá por 15 mil euros casava-me mas nunca com o André Figueiredo [mal por mal antes um tipo do PS sem aquela boca de sapo]

15 mil euros por mês e não se fala mais nisso.
A acusação a André Figueiredo, um rapaz que estudou Direito numa coisa chamada Universidade Internacional da Figueira da Foz (por acaso mandada fechar pelo Gago), veio pela mão de outro militante socialista.
Vítor Baptista diz que o chefe de gabinete do secretário-geral do PS lhe ofereceu um lugar de gestor numa empresa pública à escolha, em troca da sua desistência à Federação de Coimbra.
Vítor Baptista não desistiu mas perdeu, entretanto, as eleições.
Por razões várias, as mesmas iriam ser realizadas de novo, mas ontem a Comissão Nacional de Jurisdição do Partido deliberou, por unanimidade, considerar nula a decisão da comissão organizadora das eleições para a Federação de Coimbra de ordenar a repetição do acto eleitoral.
O PSD já veio exigir um inquérito do Ministério Público, mas diz-me o dedo mindinho que o Vítor Baptista vai acabar com um processo por difamação.
Quanto a mim, continuo solteira e farta desta corja nascida das ervas.

14/10/10

Porque cada deputado com fome é um português que não come seguido de isto seria uma metáfora segundo o Manuel Alegre ou metáfora era a tua tia, pá

O blogue Aventar organiza no próximo sábado uma meritória iniciativa destinada à recolha de géneros para o depauperado deputado do PS, Ricardo Gonçalves.
Conhecendo eu na pele o que significa passar do El Corte Inglés para o Jumbo das Amoreiras, do Jumbo das Amoreiras para o Pingo Doce e do Pingo Doce para o Mini-Preço, só posso declarar-me solidária com este BANCO ALIMENTAR PARLAMENTO promovido pelo Aventar.
Quanto ao poeta Alegre e às metáforas (???!!!) está tudo aqui.
E mais orçamento, menos orçamento, assim vai o país.

A book a day keeps the doctor away: "A Viagem dos Inocentes", Mark Twain

Faço minhas as palavras citadas na contracapa de A Viagem dos Inocentes: “Quando penso como fui enganado pelos livros de viagens sobre o Oriente, só me apetece comer um turista ao pequeno-almoço”.
Atendendo a que a frase transcrita data de 1869, ou seja, de há 141 anos, a conclusão impõe-se e não é de índole optimista: apesar da invenção do Allgarve, não parece ter havido melhoras.
Falamos do autor de As Aventuras de Tom Sawyer, logo, não falamos de um qualquer. Nem sequer de uma viagem qualquer.
Do que se trata aqui é da narrativa do périplo pela Europa e pela Terra Santa de um grupo de americanos que parte para o Velho Mundo como quem parte para um piquenique. No caso, a bordo do USS Quaker City que zarpou de Nova Iorque a 8 de Junho de 1867 para regressar apenas seis meses depois.
Entre os passageiros, Mark Twain, pseudónimo de Samuel Langhorne Clemens, aquele a quem outro gigante, William Faulkner, classificaria como o “pai da literatura americana”. Paternidade à parte, Clemens é obrigatório.
O livro, a sua real estreia literária (descontados uns contos anteriores), regista, à maneira de um diário de bordo, as aventuras e desventuras do grupo de inocentes peregrinos que, desta vez, rumam em sentido contrário (no original, “The Innocents Abroad, or The New Pilgrims' Progress”, numa referência explícita aos primeiros europeus a desembarcarem na América).
O humor de Twain não perdoa. O Velho Mundo é passado a pente fino (e disso são exemplo as notas sobre os Açores), mas os excursionistas também não escapam: “Estamos acampados perto de Temnin-el-Foka, um nome que os rapazes simplificaram consideravelmente para facilitar a pronúncia. Chamam-lhe Jacksonville. Soa um pouco estranho, aqui no vale do Líbano, mas tem a vantagem de ser mais fácil de decorar (…)”.
E que melhor forma de assinalar os 100 anos da morte de Mark Twain do que a publicação (ainda por cima pela mão da editora com os livros mais bonitos do país...) desta deliciosa viagem inédita em Portugal?

A Viagem dos Inocentes, Mark Twain, Tinta-da-China, 2010, trad. Margarida Vale de Gato

13/10/10

Os socialistas de merda ou a merda de socialistas e o Maldonado Gonelha que vá morrer num corredor de hospital

São anafados, engravatados e grunhem ao telemóvel. Passeiam-se pelas urgências do ambulatório guiados por uma senhora de bata branca que tem bordado no bolso directora de qualquer coisa.
A cor da bata da senhora, que não é médica, foi escolhida criteriosamente pela equipa de marketing e publicidade do hospital: sugere respeitabilidade, confiança, segurança.
(A coisa está mais do que provada: enfiem uma bata branca num idiota qualquer e as vendas do detergente aumentam.)
O grupo de trogloditas tem um ar saudável. Os doentes não. O mundo não é justo, já sabíamos, e a cena tem lugar no recentemente inaugurado HPP Hospital de Cascais.
Num pequeno ecrã da sala de espera das urgências corre em permanência o filme da inauguração. Resultado, levamos com o Sócrates de cinco em cinco minutos.
Dito isto, o novo hospital, não há nada a dizer, fica num sítio fantástico, cheio de bons ares apesar de um pouco ventoso e fora de mão. Para os lados de Alcabideche.
Mas também nisso eles pensaram.
(Eles são a malta do HPP Saúde.)
Há uma praça de táxis (normalmente vazia) e autocarros que passam de hora e meia em hora e meia. Por perto, várias megas-lojas e um centro comercial com hipermercado. O que poderíamos querer mais? Um audi, um chauffeur e um pretinho da guiné para nos carregar as compras?
O velho hospital ficava no centro de Cascais e rebentava pelas costuras. Fizeram, pois, um novo.
É ajardinado, tem estacionamento pago e o hall de entrada lembra um hotel do Allgarve. Além de substituir o antigo também substituiu o ortopédico da Parede.
Segundo informa um gajo com o nome adequado de José Miguel Boquinhas, a HPP Saúde é responsável pela gestão do Hospital de Cascais, em regime de Parceria Público-Privada (PPP). É o primeiro hospital do Serviço Nacional de Saúde a ser concessionado e construído neste regime, que contempla a concepção, construção, financiamento, conservação e exploração da unidade hospitalar.
Quanto ao HPP Saúde, himself, é dirigido pelo socialista Dr. António Manuel Maldonado Gonelha, a quem as más línguas do costume preferem chamar electricista mas não pude confirmar, e tem qualquer coisa que ver com a Caixa Geral de Depósitos, não percebi bem.
O que percebi bem foi isto.
No recente HPP Hospital de Cascais, apesar da largueza do edifício, o número de camas somado é igual ao que existia nos antigos hospital de Cascais e da Parede. Com uma nuance: como aumentou o número de especialidades, os doentes que anteriormente eram enviados para outras unidades hospitalares agora também vão para Alcabideche.
Conclusão: quem quiser ser internado, acampa nos corredores. Que são largos, insisto.
Será ao que eles chamam, lá no site deles, umas vezes "a saúde da nova geração", outras vezes "cuidados de saúde de excelência". É só carregar na setinha.

11/10/10

Allô! Allô! Vem aí o amigo do Sócrates que por sua vez é muito amigo da China, não confundir com a Cinha

Como é sabido, algum tempo antes das famigeradas semanas que fizeram o mundo mudar para xuxu, o engenheiro José Sócrates andou pela Venezuela a vender Magalhães inquebráveis.
Parece que Chávez ficou convencido da qualidade do produto e aceitou vir agradecer pessoalmente ao nosso Primeiro.
A visita a Portugal está anunciada para as próximas semanas e faz parte de um pacote que também contempla a Rússia, a Bielorússia e o Irão (tudo gente altamente recomendável).
No entretanto, quer dizer, enquanto Chávez não chega nem o orçamento se orçamenta, o prémio nobel da paz foi atribuído a Liu Xiaobo.
Naquele estilo que faz Alberto João Jardim parecer um menino de coro, o venezuelano pronunciou-se sobre a decisão norueguesa no seu programa dominical "Allô Presidente": O governo chinês, fazendo uso de sua independência e soberania, reclama pelo prémio a esse senhor que está preso lá. Acontece que deram o Nobel a um cidadão dissidente e contra-revolucionário chinês, que está preso na China certamente por violar as leis da China.
E rematou: Aqui vai a nossa saudação, a nossa solidariedade ao governo chinês. Viva a China!
E agora se me permitem remato eu: Viva o Magalhães! Viva o José Sócrates! Viva o MRPP! Et Vive la Suisse Libre!

09/10/10

Ó Platão, pobre Platão e foi para a Marta Rebelo escrever estas barbaridades que Sócrates bebeu a cicuta

«A República Portuguesa, essa jovem de 100 anos, está longe de constituir a sociedade justa que Platão compôs n' A República, no século IV a.C. Trata-se de um "diálogo socrático", género literário em prosa: todo o diálogo é narrado na primeira pessoa, por Sócrates, que desafia o interlocutor à discussão para, através da ironia e da maiêutica, fazerem uma descoberta dialogante da verdade e chegaram ao ideal da sociedade justa. No Politéia de Platão, tal como na República do 5 de Outubro, a educação é o núcleo da justiça social, pois permite seleccionar e avaliar as aptidões de cada um. Ora, dividida a alma platónica em três partes, resta saber em quem é que, nos cem anos da nossa República, predomina o apetite, a coragem e a razão.»

Aqui, a partir daqui e do que eu mais gosto é da definição de “diálogo socrático”: género literário em prosa em que todo o diálogo é narrado na primeira pessoa.
Por muito menos do que isto o meu querido professor José Trindade Santos dava-lhe com A República na cabeça.

06/10/10

O exilado de bougie ou o republicano que mandou o poder às urtigas [da série homens de quem eu gosto]

Manuel Teixeira Gomes


Norberto Lopes, no prefácio de O Exilado de Bougie (Parceria António Maria Pereira, 1942), descreve assim o homem que foi presidente da república e mandou a presidência às urtigas: “Pudera eu traçar-lhe o perfil que fosse digno da sua personalidade requintada, sóbria, simples como a de um grego do século de Péricles, magnânimo e brilhante como a de um príncipe florentino da Renascença.”
Demasiado para Portugal, já se vê.

05/10/10

No meu caso não foi tanto o sexo anal, foi mais o Manuel Alegre

O feicebuque é um lugar estranho. À Menina Limão expulsaram-na. A mim convidaram-me para apoiar o Alegre. Qualquer dia querem que eu seja amiga da Lídia Jorge.

04/10/10

A book a day keeps the doctor away: "Billy Budd", Melville

Apesar de tudo o que separa a cientificidade de disciplinas como a física do “je ne sais quoi” que faz a literatura, seria útil que não se queimassem etapas. Assim: tal como se mostra impensável saltar de Galileu para Einstein sem passar por Newton, faríamos bem em não esquecer Melville quando damos, por exemplo, com Brandão (a propósito, ainda se lê Raul Brandão? A pergunta é retórica).
Dito isto. Não sei se ainda se lê Melville.
Quanto a Billy Budd, agora reeditado numa tradução de José Sasportes que recua a 1963, o texto só ficaria acessível 33 anos após a morte do autor de Moby-Dick, descoberto por acaso entre os seus papéis. Novela de aventuras náuticas (claro), carregada de nuvens que anunciam tempestade, é um daqueles livros que permitem as mais diversas interpretações, da cristã à queer, sem que isso o belisque minimamente.
Billy Budd encena uma tragédia e o marinheiro homónimo do título será o cordeiro do sacrifício. Exemplo do eterno confronto entre o Bem e o Mal, Melville descreve-nos um herói sem mácula — belo, corajoso e puro — que, ao ser forçado a trocar a vida livre de marinheiro pela de tripulante de um navio de guerra, despertará invejas e ódios que lhe custarão a vida. Porque Billy, personagem da família dos deuses, exibe um defeito aparentado ao de Aquiles; no caso dele, a gaguez, o que se traduzirá pela ausência de eloquência no momento decisivo.
Na sua inocência, o “marinheiro ideal” será incapaz de ler os avisos de perigo, restando-lhe cumprir o destino. Ao invés de Claggart, seu rival demoníaco, Billy não domina a retórica. Perante a falsidade das acusações que pesam sobre si sobrar-lhe-á o gesto irreflectido que o conduz a tribunal, com o capitão do navio, que o admira, a ter de escolher entre a justiça e a lei. Em resumo: a grande literatura a falar do que verdadeiramente interessa.
Billy Budd, Herman Melville, Biblioteca editores Independentes, 2010, trad. José Sasportes

02/10/10

José Sócrates, o homem que gosta de andar de metro, contou em público a melhor piada do mundo e mantém-se vivo

O prémio para a melhor piada do mundo pertencia até agora aos ingleses. O seu efeito letal, largamente confirmado durante a II Guerra, levara os súbditos de sua majestade, acabado o conflito, a enterrá-la com pompa e circunstância. Acreditava-se que para sempre.
Eis senão quando José Sócrates a desenterra durante a sua última entrevista à RTP. Contudo, por motivos ainda desconhecidos, quando o engenheiro afirmou que as medidas de austeridade são para defender o emprego não se registaram mortes.
Vários analistas são de opinião que os efeitos letais da piada só se farão sentir mais pró Natal.
Outros dizem que a inexistência de vítimas se ficou a dever ao facto de já ninguém dar ouvidos ao primeiro-ministro.
Um terceiro grupo, no qual pontifica Manuel Alegre, e que se encontrava por acaso no interior de um submarino em prospecção de robalos, recusou prestar declarações alegando que o referido habitáculo era à prova de som.
Fontes bem informadas garantiram, porém, que a piada de Sócrates só não foi ouvida debaixo de água porque o Bardo declamava na altura um poema longo e toda a tripulação tinha metido salsa nas orelhas.

O PEC3 chega ao parlamento: deputado do ps ricardo gonçalves ameaça “transunânciar” para o estrangeiro [não confundir o com o ricardo dos gravadores]

Ricardo Gonçalves, que dá ao litro na Assembleia há já quatro legislaturas, mostrou-se ontem indignado com as medidas do governo de Sócrates.
Segundo este professor de filosofia efectivo, autor ilustre da obra Heróis em Transunância [sic], Emigrantes Clandestinos, e cito: Nós estamos a atravessar um momento difícil, foram tomadas medidas muito duras e, obviamente que, sendo neste momento deputado, sou dos que perde mais dinheiro.
O deputado do PS, o mesmo a quem Maria José Nogueira Pinto chamou há uns tempos palhaço, fez estas surpreendentes declarações à porta do hospital de Penafiel, onde acabou por ser atendido no serviço de urgência após um doente a quem fora retirado o direito a medicamentação gratuita lhe ter lançado um carneiro à cabeça.