18/10/10

António Damásio: Uma leitura de "O Livro da Consciência — A Construção do Cérebro Consciente"

Ponto prévio ao leitor. Há qualquer coisa de kantiano no último título lançado pela neurologista António Damásio. A adjectivação sugerida, além de um elogio assumido ao autor de O Livro da Consciência — A Construção do Cérebro Consciente (Kant é Kant, apesar de Hume…), representa também um aviso à navegação: à semelhança das Críticas…, a mais recente obra de Damásio não se lê como um romance.
O investigador ensaia hipóteses, contraria-as, explicita-as, enquanto desbrava caminhos e opta por trajectórias que obrigam a desfazer evidências e a suspeitar do óbvio. Aconselha-se papel e lápis. Afinal, em biologia (a pedra de toque capaz de confirmar, ou não, quaisquer conjecturas neurocientíficas) o caminho mais curto entre dois pontos raramente é uma linha recta.
Um bom exemplo: Graças ao facto de o nosso cérebro ter conseguido combinar a nova orientação tornada possível pela consciência com a antiga que consistia numa regulação inconsciente e automática, os processos cerebrais não-conscientes estão à altura das tarefas que terão de executar em nome das decisões conscientes.
Do que se trata aqui é de ultrapassar a dicotomia robusta entre consciente/inconsciente e, mais do que isso, interpretar o aparente paradoxo revelado, entre outros, pelo psicólogo Ap Dijksterhuis que, num estudo por si dirigido, nos confronta com a bizarra conclusão de as decisões tomadas sem uma pré-deliberação consciente revelarem-se de longe mais acertadas.
Ou seja, apesar do papel importante do inconsciente no que diz respeito à tomada de decisões, isso não significa, segundo Damásio, que a consciência seja descartável; tão-só que ela se terá descartado de uma série de tarefas: Os processos não-conscientes tornaram-se num meio adequado e conveniente para levar a cabo o comportamento e dar à consciência mais tempo para análise das situações e planeamento do futuro.

Começando, porém, pelo princípio. António Damásio, cientista português radicado desde 1975 nos EUA, acaba de publicar um novo livro em que retoma o tema da consciência, já ensaiado há uma década em O Sentimento de Si, desta vez pegando-o de caras. Dito isto, certos pressupostos assumidos em O Livro da Consciência…(Temas & Debates/ Círculo de Leitores) recuperam postulados anteriores, alguns deles a que quase poderíamos chamar traços distintivos do pensamento de Damásio.
De entre as ideias apresentadas neste livro, nenhuma é mais importante do que a noção de que o corpo é o alicerce da mente consciente, lê-se quase a abrir. O neurologista sublinha, assim, uma concepção já patente em obras mais antigas, a saber, a da inscrição inescapável do mental no corpóreo (seja no que diz respeito aos sentimentos, à razão ou à moral).
A unicidade corpo/mente é indiscutível e, além disso, explicativa: Espinosa viu mais longe que Descartes.
Outro pensamento reconhecível — este a denunciar um certo optimismo antropológico – é o que suporta a interpretação do papel da consciência nos processos de homeostase sociocultural. Escreve Damásio: A marcha do processo da mente não termina com o aparecimento do eu. Ao longo da evolução dos mamíferos, e especialmente dos primatas, as mentes tornaram-se cada vez mais complexas, a memória e o raciocínio desenvolveram-se notavelmente e os processos do eu alargaram o seu âmbito. (…) Armada com estruturas de eu tão complexas e apoiada por uma capacidade ainda maior de memória, raciocínio e linguagem, a mente consciente dos seres humanos cria os instrumentos de cultura e abre caminho a novas formas de homeostase ao nível da sociedade. E, em seguida, confundindo-se o cientista com o humanista: A notável redução da violência, a par do aumento da tolerância que se tornou tão aparente nos últimos séculos, não teria ocorrido sem a homeostase sociocultural.
Da citação anterior pode inferir-se outra das ideias-chave da obra, esta uma relativa novidade. Damásio introduz em O Livro da Consciência… uma “quarta dimensão” que remete para a evolução das espécies: A maioria das espécies cujo cérebro dá origem a um eu fá-lo a um nível nuclear. Os humanos possuem tanto um eu nuclear como um eu autobiográfico. Há uma série de mamíferos que provavelmente também têm ambos, como os lobos, os nossos primos símios, os mamíferos marinhos, os elefantes, os felídeos e, claro está, aquela espécie animal chamada cão doméstico.
Indo mais longe — e afundando assim um pouco mais a concepção da superioridade radical do homem — pode ler-se num subcapítulo intitulado “Consciência humana e não-humana”: 1) se uma espécie tem comportamentos que são melhor explicados por um cérebro com processos mentais do que por um cérebro com meras disposições para a acção (como, por exemplo, os reflexos); e 2) se a espécie dispõe de um cérebro com todos os componentes descritos nos capítulos seguintes como sendo necessários para criar uma mente consciente nos seres humanos, 3) então, meu caro leitor, a espécie é consciente. Feitas as contas, estou pronto a aceitar qualquer manifestação de comportamento animal que me faça pensar na presença de sentimentos, como um sinal de que a consciência não deve andar longe.
E, como habitualmente, sempre o “sentir” a desempenhar o papel de protagonista das narrativas assinadas pelo neurologista.

Mas o que é afinal a consciência? O livro avança uma definição pela positiva e pela negativa. Pela positiva, a consciência é a característica da mente que possibilita que nos percebamos a nós próprios como um eu distinto do mundo. Resumindo: é através da consciência que a nossa subjectividade se afirma. Precisa Damásio: A consciência é um estado mental — se não houver mente, não há consciência: a consciência é um estado mental particular, enriquecido por uma sensação do organismo específico onde a mente está a funcionar; e o estado mental inclui o conhecimento de que a dita existência ocupa uma certa situação, de que existem objectos e acontecimentos que a cercam. E, sem resistir ao apelo da filosofia, acrescenta: A consciência é um estado mental a que foi acrescentado o processo do ser.
Pela negativa, a consciência não se confunde com processos inconscientes. Nem com aqueles que apenas convocam um ingrediente activo (produção de imagens actual e constante no cérebro) nem com os que implicam um ingrediente latente (o que envolve um repositório de registos, para cuja existência a memorização é indispensável). Estes processos, que parecem prenunciar uma economia da consciência, assentam em três situações conhecidas: produção superabundante e constante de imagens no cérebro; selecção e ordenação espacio-temporal das mesmas, espaço limitado de exibição.
Neste particular, e apesar de o tema, alheio ao livro, merecer apenas um parêntese, valerá a pena citar esta nota de Damásio: (Na geração que cresceu habituada às multitarefas, na era digital, os limites superiores da atenção no cérebro humano encontram-se em rápida expansão, algo que provavelmente levará à alteração de certos aspectos da consciência num futuro não muito distante, se tal não tiver já acontecido. Expandir a atenção traz vantagens óbvias, e as capacidades associativas geradas pelas multitarefas trazem vantagens espantosas; em contrapartida, poderá haver um custo em termos de aprendizagem, consolidação de memória e emoção. Não temos ainda ideia de qual poderá ser esse custo.)
Fechado o parêntese, uma outra ideia-chave: as imagens são a moeda corrente da mente. O termo “imagem” é utilizado num sentido lato, englobando registos auditivos, tácteis, e até os sentimentos, entendidos como “uma variedade de imagem”.
Como o próprio explicita, “imagem” pode ser sinónimo, e é-o muitas vezes em O Livro da Consciência…, de “mapa” ou “padrão neural”. Na sua interacção com os objectos, incluindo o corpo de que faz parte, o cérebro constrói imagens, ou mapas, dos quais se alimenta. Esse filme incessante acaba por ser organizado segundo um processo que invoca uma sala de montagem, onde as escolhas são naturalmente obrigatórias, resultando de selecções feitas com base no valor, inseridas ao longo do tempo, numa estrutura lógica. E é esse processo altamente complexo que estará na base da passagem do cérebro à mente, e da mente à consciência.
A própria consciência assentará, por sua vez, num processo evolutivo que passa pelo “proto-eu”, pelo “eu nuclear” e, finalmente, pelo “eu-autobiográfico” (com a memória, ou os vários tipos de memória, a desempenhar um papel cada vez mais significativo). A ancestralidade decorrente desta visão, levou António Damásio a interessar-se por sistemas considerados mais arcaicos, nomeadamente o “humilde tronco cerebral”, apesar de deixar claro que a consciência humana necessita tanto do córtex cerebral como do tronco cerebral. O córtex cerebral não pode fazer tudo sozinho, tão-pouco o tronco cerebral.
Livro complexo para um tema complexo ou, como se escreveu mais atrás, em biologia o caminho mais curto entre dois pontos raramente é uma linha recta.

2 comentários:

F disse...

e continuando a falar de consciência, há quem ainda esmiúce mais:
http://theselfiam.blogspot.com/2010/10/consciencia-e-uma-ilusao.html

Anónimo disse...

Terminei de ler "O Erro de Descartes". O livro é muito interessante. Recebi hoje "Como funciona a mente" do Steve Pinker.