Autor de livros que transpiram melancolia por todos os poros, Sándor Márai pertence aquela categoria de escritores que, uma vez descobertos, nunca mais se conseguem abandonar.
Desaparecido em 1989, data em que suicidou no exílio com um tiro na cabeça — faltavam dois meses para chegar à mesma idade do século —, vivia há muito arredado da glória que em tempos conhecera. Nome aclamadíssimo das letras húngaras, os seus livros haviam caído entretanto no esquecimento para só serem redescobertos na década de 90, após a sua morte.
Anti-fascista e anti-comunista, Márai abandonara a Hungria em 1948, fixando-se, por fim, nos EUA, na Califórnia, após ter residido na Itália e na Suíça. Viúvo, quase cego e cercado pela solidão, o escritor, que fora proscrito no seu próprio país e, poliglota, teimara, ainda assim, em exprimir-se em húngaro, não poderia imaginar o notável renascimento da sua obra, que muitos não hesitam em emparceirar com as de Musil ou Joseph Roth.
Cronista subtil e delicado do período entre as duas guerras, Márai cultiva a perspicácia tolstoiana conseguindo, através de personagens ambíguas e irresolutas, dar-nos a ver a decadência de um mundo que nunca mais será o mesmo: a crença no Iluminismo e na civilização humanista que, até então, muitos acreditavam ser o caminho da Europa, cairia por terra, varrida pelo nazismo e pela experiência comunista.
Em Divórcio em Buda, belíssimo retrato psicológico que prenuncia essa obra-prima intitulada As Velas Ardem até ao Fim (também traduzida na Dom Quixote), um juiz é chamado a julgar um caso de divórcio que envolve um casal seu conhecido. Caso simples, não fora os perigos que acompanham aqueles que “viajam por lugares ignotos”.
Escrito em 1935, Divórcio em Buda antecipa os anos de chumbo e revela-nos o declínio da época através da história trágica de um triângulo amoroso — mais imaginário do que real —, pondo em confronto dois homens que dialogam a propósito de uma mulher morta enquanto outra dorme tranquilamente, burguesmente, junto aos filhos inocentes.
Reflexão sobre o amor e também sobre a justiça humana, o romance coloca frente a frente o ponderado juiz Kristóf Kőmives e o desesperado médico Imre Greiner. A separá-los — e a aproximá-los — Anna Fazekas, mulher do último e flirt fugaz e remoto do primeiro.
Durante uma noite, a narrativa inesperada de Greiner porá em causa os alicerces da vida pacata e metódica de Kőmives, desencadeando no juiz uma inquietação que ele julgava selada para sempre. A vida nem sempre é um longo rio tranquilo. Kőmives sobreviverá incólume à noite da confissão? O próprio pensa que sim, embora a guerra se desenhe no horizonte. Mas isto sabemo-lo nós hoje, leitores entusiastas de Márai; talvez ele, sensitivo, também o soubesse já.
Divórcio em Buda, Sándor Márai, Dom Quixote, 2010, trad. de Ernesto Rodrigues
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7 comentários:
Pronto, lá terei de ler este também. Gostei muito de "As Velas...". Muito.
Volto lá, em pensamento, muitas vezes!
Coincidência: tenho aqui na minha secretária "As Velas..." e "A Mulher Certa". Estou indeciso qual agarrar primeiro; embora a preguiça me empurre naturalmente para o menos espesso...
F. as Velas é mesmo uma obra-prima
Luís, Velas...
Obrigado, Ana. Vou pegar nele hoje mesmo. E desisto do Musil, que não é mesmo para mim. Ainda aguardo que alguém me explique a genialidade da coisa...
Não li, nem lerei: tu tens uma especial habilidade para me entesares, arruinares-me a carteira
Ah!, e mais: fiufiu...
Bom texto.
Ainda não li este, mas, de facto, lembra "As velas ardem até ao fim". Senão vejamos:
"história trágica de um triângulo amoroso ...pondo em confronto dois homens que dialogam a propósito de uma mulher morta"; "Durante uma noite, a narrativa inesperada de Greiner porá em causa os alicerces da vida pacata e metódica de Kőmives... Kőmives sobreviverá incólume à noite da confissão?"
Ainda só li "As velas...", mas parece que o Sandor Márai gosta de confissões durante toda noite :-)
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