Apesar de tudo o que separa a cientificidade de disciplinas como a física do “je ne sais quoi” que faz a literatura, seria útil que não se queimassem etapas. Assim: tal como se mostra impensável saltar de Galileu para Einstein sem passar por Newton, faríamos bem em não esquecer Melville quando damos, por exemplo, com Brandão (a propósito, ainda se lê Raul Brandão? A pergunta é retórica).
Dito isto. Não sei se ainda se lê Melville.
Quanto a Billy Budd, agora reeditado numa tradução de José Sasportes que recua a 1963, o texto só ficaria acessível 33 anos após a morte do autor de Moby-Dick, descoberto por acaso entre os seus papéis. Novela de aventuras náuticas (claro), carregada de nuvens que anunciam tempestade, é um daqueles livros que permitem as mais diversas interpretações, da cristã à queer, sem que isso o belisque minimamente.
Billy Budd encena uma tragédia e o marinheiro homónimo do título será o cordeiro do sacrifício. Exemplo do eterno confronto entre o Bem e o Mal, Melville descreve-nos um herói sem mácula — belo, corajoso e puro — que, ao ser forçado a trocar a vida livre de marinheiro pela de tripulante de um navio de guerra, despertará invejas e ódios que lhe custarão a vida. Porque Billy, personagem da família dos deuses, exibe um defeito aparentado ao de Aquiles; no caso dele, a gaguez, o que se traduzirá pela ausência de eloquência no momento decisivo.
Na sua inocência, o “marinheiro ideal” será incapaz de ler os avisos de perigo, restando-lhe cumprir o destino. Ao invés de Claggart, seu rival demoníaco, Billy não domina a retórica. Perante a falsidade das acusações que pesam sobre si sobrar-lhe-á o gesto irreflectido que o conduz a tribunal, com o capitão do navio, que o admira, a ter de escolher entre a justiça e a lei. Em resumo: a grande literatura a falar do que verdadeiramente interessa.
Billy Budd, Herman Melville, Biblioteca editores Independentes, 2010, trad. José Sasportes
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
EM REDE
- 2 dedos de conversa
- A balada do café triste
- A causa foi modificada
- A cidade das mulheres
- A curva da estrada
- A dança da solidão
- A rendição da luz
- A revolta
- A terceira via
- A única real tradição viva
- Abrasivo
- Agricabaz
- Agua lisa
- Albergue espanhol
- Ali_se
- Amor e outros desastres
- Anabela Magalhães
- Anjo inútil
- Antologia do esquecimento
- Arrastão
- As escolhas do beijokense
- As folhas ardem
- Aspirina B
- ayapaexpress
- Azeite e Azia
- Bibliotecário de Babel
- Bidão vil
- Blogtailors
- Casario do ginjal
- Centurião
- Church of the flying spaghetti monster
- Ciberescritas
- Cidades escritas
- Cinco sentidos ou mais
- Claustrofobias
- Coisas de tia
- Complicadíssima teia
- Contradição Social
- Dazwischenland
- De olhos bem fechados
- Dias Felizes
- Do Portugal profundo
- Duelo ao Sol
- e-konoklasta
- e.r.g..d.t.o.r.k...
- Enrique Vila-Matas
- Escola lusitânia feminina
- Fragmentos de Apocalipse
- Governo Sombra
- Helena Barbas
- If Charlie Parker was a gunslinger
- Illuminatuslex
- Incursões
- Instante fatal
- Intriga internacional
- João Tordo
- Jugular
- Klepsydra
- Last Breath
- Ler
- Les vacances de Hegel
- Letteri café
- LInha de Sombra
- Mãe de dois
- Mais actual
- Malefícios da felicidade
- Manual de maus costumes
- Metafísica do esquecimento
- Mulher comestível
- Nascidos do Mar
- Non stick plans
- O Declínio da Escola
- O escafandro
- O funcionário cansado
- O jardim e a casa
- O perfil da casa o canto das cigarras
- Obviario
- Orgia literária
- Paperback cell
- Parece mal
- Pedro Pedro
- Porta Livros
- Pratinho de couratos
- Raposas a Sul
- Reporter à solta
- Rui tavares
- S/a pálpebra da página
- Se numa rua estreita um poema
- Segunda língua
- Sem-se-ver
- Sete vidas como os gatos
- Shakira Kurosawa
- Sorumbático
- Texto-al
- The catscats
- There's only 1 Alice
- Tola
- Trabalhos e dias
- Um dia... mais dias
- Um grande hotel
- We have kaos in the garden
1 comentário:
oRA BoLaS:
AtÃO o Querelle, O de Brest???
é que o Genet não faz 100 ânus este Dezembro? Brincamus ou Quê?...
Enviar um comentário