Não se ponham com ideias. Foi só por causa d' A Segunda Guerra Mundial, o livro de Martin Gilbert que ando a ler. Às tantas tropecei na imagem acima. Um comboio de tropas alemães a caminho daquilo a que Hitler viria a chamar um figo, levando pintalgado no exterior uma frase que traduzida dá nisto: Vamos para a Polónia malhar nos judeus. Lembrei-me do actual ministro da propaganda. Mantidas respeitosamente as distâncias e circunstâncias (mas e se as últimas fossem outras?). Não me interpretem mal. Malhar pode suceder a todos. Quem nunca malhou que atire a primeira pedra… e eu encolho-me. Mas quem lhe toma o gosto vai um bocadinho mais longe... Por exemplo, até Varsóvia. Por essas e por outras, acho sempre preferível uma gritaria elevada. Com argumentos à altura. Quanto ao estilo queres porrada? queres porrada?, vulgo estilo Sarkozy, passo. Completamente. Nunca gostei de mocas de Rio Maior e não seria agora que ia mudar de orientação. Mesmo que servissem aquelas ― hoje ― para malhar na direita.
Há livros que são assim: poemas. Lêem-se de um fôlego, mas depois há que saboreá-los devagar. Aquilo que fica é a linguagem de um poeta. Tal como a deste, Hubert Haddad, francês de pai tunisino e mãe de origem argelina. O seu segundo nome esconde, porém, uma outra identidade, melhor, uma alteridade: Abraham, judeu berbere, como quem diz, árabe. Palestina é um romance com o tom de uma tragédia clássica. Belo, comovente, dorido e perturbador como só a poesia consegue. Parte de uma ficção, uma ideia louca, talvez apenas possível nas terras que dão o nome ao livro. Um jovem soldado israelita, Cham, é ferido num atentado e perde a memória. É recolhido por uma família palestiniana, pacifista, uma mãe cega e uma filha dilacerada pelas memórias, Falastin (Palestina, em árabe), que o trata e por quem ele se apaixona. Acaba por assumir a identidade do filho/irmão desaparecido, Nassim, e, por essa via, a da causa palestiniana. Até que Cham acorda, de novo, dentro de si e... não cabe aqui contar toda a história, que mereceu em 2008 o Prémio dos Cinco Continentes da Francofonia. O romance, percebe-se, é uma obra sobre identidades. E só talvez um autor tão complexo como Haddad o pudesse narrar com a simplicidade dos poetas. Identidades construídas sobre a realidade do dia-a-dia que o autor reconstrói: as humilhações, as violências, a arbitrariedade gratuita de quem pode e manda e que torna a vida dos palestinianos num inferno, sem deixar de ser o pesadelo israelita. Não é por acaso que o autor faz um major israelita dizer que "muçulmanos e judeus só conseguem estar de acordo a respeito dos mitos". O livro, porém, não é um panfleto, longe disso. O ódio está lá, o tempo todo: "O ódio é uma prisão", diz Falastin, citando os rabinos. "Sê antes o maldito do que aquele que amaldiçoa." Mas também o amor: "Amar não é morrer?", pergunta ainda uma outra vez. Não é a Palestina isso mesmo? Uma terra sem paz, de amores e ódios? Por ser narrado do ponto de vista de um 'estranho', perpassam ali as diferentes sensibilidades palestinianas, do pacifismo à revolta e ao martírio. Mas também dos israelitas, porque neste livro nada é linear, nada é como se espera. E quando se vira, sofregamente, a última página, é a emoção que explode: "O silêncio cumpre-se. Já nenhuma alma vive."
Confesso: o credo realisticó-pragmático provoca-me apoplexia. Explicando-me melhor. Apesar de provavelmente deus nem sequer existir, entre o bispo George Berkeley e o agnóstico (?) José Sócrates não hesito: janto com o primeiro. Com ou sem temas fracturantes servidos à sobremesa. E digo mais. Entre a ditadura desta corja medíocre e os marcianos de Brown o meu par é o Luke Deveraux. Tornando a coisa absolutamente clara: I do have certain feelings. My feeling is that whoever is in charge, I want him out (Lewis Black). E chamem-me irrealista à vontade.
Não garanto a afirmação de Harold Bloom, inserida na contracapa, de que Hadji-Murat é "a melhor história do mundo", ou sequer que é "pelo menos a melhor que eu li até hoje". Mas, claro, é Tolstói. E dizer isto é dizer já quase tudo. A novela, que leva o nome de um herói (real) do Cáucaso que, durante o reinado do czar Nicolau I, enfrentou a invasão dos exércitos russos, foi publicada postumamente e terá sido a última coisa escrita por Lev Tolstói. Retoma as aventuras e desventuras do resistente homónimo muçulmano, contando-nos as suas desavenças com outros guerreiros caucasianos, a sua tentativa para salvar a família e a sua aliança improvável com os invasores. O confronto entre dois mundos e duas culturas em cenário de guerra (ainda hoje absolutamente actual na Tchetchénia) é o pano de fundo da história narrada, convidado o leitor a escutá-la na "Introdução": "Então, lembrei-me de uma história caucasiana que em parte testemunhei, em parte ouvi contar por outros, e o resto fantasiei. Esta história, tal como se formou na minha memória e imaginação, é a que relato a seguir." Começa, então, o encantamento (só interrompido pela necessidade de consultar as notas de tradução, que teria sido mais simpático colocar em rodapé de página e não no final do volume...), encantamento reforçado pelo estilo próximo da oralidade, pelas tergiversações que vão, aqui e ali, interrompendo a construção da obra (que nada tem de linear) e, sobretudo, pelo pacto narrativo que vamos estabelecendo com o livro e que nos coloca, a nós, leitores, pelo menos momentaneamente, nesse limbo de inocência e entrega sem o qual a leitura deixa de ser prazer para se transformar em mero esforço. Hadji-Murat lê-se como um livro de aventuras. É um livro de aventuras. O destino (trágico) do protagonista vai-se desenrolando subtilmente à nossa frente, enriquecido por toda uma plêiade de personagens, pinceladas naquele jeito realista que torna qualquer obra de Tolstói num quadro a transbordar de vida. E a simpatia assumida do russo pelo seu herói fora-da-lei (o que levaria, aliás, o livro a ter problemas vários com a censura), descrito não como um bárbaro primitivo mas como um corajoso insurrecto, confirma aquele traço único de Tolstói, sempre capaz de nos seduzir pela bondade.
... in my lifetime, we've gone from Eisenhower to George W. Bush. We've gone from John F. Kennedy to Al Gore. If this is evolution, I believe that in twelve years, we'll be voting for plants, Lewis Black
Encontrando-se o leitor deste post em Lisboa, no Largo do Rato, de costas para o Tejo e alinhado em esquadria com a Rua da Escola Politécnica, verá à sua frente uma estação de Correios, na esquina com a São Filipe Nery. Subindo por essa rua, do lado esquerdo, chegará depressa ao número 25B, um edifício estreito de rés-do-chão e primeiro andar onde Catarina Barros passa a maior parte dos dias. Há quase dois anos que é este o seu destino diário. Chega de manhã, fica até ao entardecer, às vezes noite dentro, seis dias por semana, doze meses por ano. Na “Trama”. Nome de livraria. Nome de um projecto que Catarina, 25 anos, apostou em concretizar, ao arrepio do derrotismo e cansaço que, diz, parecem caracterizar precocemente a sua geração. A “Trama” abriu portas a 30 de Novembro de 2007. Muito antes disso, já os livros enchiam a vida e o imaginário desta jovem que um dia decidiu trocar um emprego seguro na indústria farmacêutica pela aventura livreira (não livresca). Talvez o gosto lhe venha da avó. É uma hipótese. Não tem explicações definitivas. Lá de trás chega-lhe, isso é certo, a imagem dela a ler “A Pousada da Jamaica” durante umas férias de Verão no Carvoeiro, enquanto Catarina e o avô iam andando para a praia. Ainda hoje continua a chamar “Esplanada Jamaica” ao café onde a avó se deixava ficar sentada, a folhear o romance de Daphne du Maurier indiferente ao apelo das águas algarvias. Ela própria era fã da Colecção Dois Mundos, da Livros do Brasil. Começou no número um, “O Livro de San Michele”; o último não se recorda. “Os livros têm imagens e levam-me a lugares onde nunca chegaria sem eles”; talvez por isso, quando sai de casa, traga sempre mais de um dentro na mala, para o que der e vier. Em Julho, quando falei com ela, andava às voltas com a “Obra Completa” do Nuno Bragança, “Porque é que a Vida Acelera à Medida que se Envelhece” e o “Breves Notas Sobre as Ligações”, do Gonçalo M. Tavares. Poesia lê aos bocadinhos. Em modo saltitante. Quatro ou cinco poemas por dia, de autores vários. Está sentada no primeiro andar da “Trama”, junto à máquina de café (que também se pode tomar aqui), pernas entrelaçadas sobre o pequeno sofá, e vai alisando os cabelos com as mãos. Fala devagar: “Penso melhor quando escrevo”. Aproveito a deixa involuntária: “Também escreves?” Hesita. “Para mim a escrita é tão importante como a leitura e há dias em que não leio. Mas escrevo todos os dias”. Fica registado. Saiu de casa aos 17 anos. Enquanto acabava o liceu, ia trabalhando por aqui e por ali. Um dia passou em frente à “Clepsidra” de Massamá e viu que havia uma vaga: “Era o sonho da minha vida! Escrevi a carta de apresentação mais lamechas do mundo e implorei o lugar na livraria”. Deram-lhe o lugar. Ficou por lá algum tempo, depois saiu por motivos alheios aos livros; o tempo de ter como colega Ricardo Ribeiro, seu futuro sócio na “Trama”. Inscreveu-se na Faculdade, em Estudos Portugueses, mas, quando engravidou e teve um filho, a realidade pesou mais e abandonou o curso. O emprego de secretária que conseguiu, entretanto, não era mau; Catarina, contudo, definhava. Com Ricardo, e lido um poema de Borges de título homónimo, atira-se de cabeça ao projecto de fundar a “Trama”, um espaço que fosse seu. Estão juntos nisto há dois anos e, apesar do período tramado que se vive, com a crise e tal…, nunca se arrependeu: “Mesmo que não dê certo no futuro, faria tudo de novo. Pelo bem que nos tem feito; a mim, ao Ricardo e a uma data de pessoas”. A uma data de pessoas que aqui vem pelos livros, pelos concertos, pelas sessões de cinema e de poesia, conversas, lançamentos, tertúlias.
Resumindo é isto: “Aos 23 anos, quando comecei, tinha medo que a minha ignorância pudesse prejudicar a livraria. Nada disso aconteceu. O meu mundo cresceu, fiz amigos, descobri autores… Sinto que este é um projecto fértil, que estamos a criar coisas novas.” Encontrando-se o leitor deste post em Lisboa, no Largo do Rato, basta-lhe, pois, subir a Filipe Nery e perguntar por ela. Catarina Barros. Amante de livros. Ao seu serviço. E deles, claro.
Cuando pienso en ellos, hay um libro que abre sus páginas. Una persiana baja, el pájaro de las marismas se aleja de las palavras.
Hay palabras que matan. Hay un livro donde los amigos viven para siempre, envueltos en la luz ciega de las orquídeas.
Hay diez mandamientos sobre la evocación de sus días. Hay un martillo sobre los clavos de su cruz, una hacha de piedra negra que refleja el dolor.
Cuando pienso en ellos, parece que llueve. Llueve siempre en las plazas vacías y es domingo, otra vez. Entonces, los perros duermen en las fincas abandonadas. Todos se fueron. Solamente los amigos me esperan del otro lado del cielo.
Cuando pienso en ellos, hay un rastro de ternura en la nieve y en la lava, hay un anillo de acero que aprieta la garganta, sus cuerdas de sonido, y la neblina es más densa. Hay un cántico, un secreto qur recomienza en las vocales del nombre, y ya no es nada.
Esta voz es casi viento, José Agostinho Baptista, Macaronesia, 2009
A imagem será futuristicamente asséptica. Na realidade o que lá está são escavadoras, buracos, pó, feridas e mamarrachos. Uma figueira de gesso assiste (e resiste) ao progresso molto vivace, aliens de betão e mármores milionários para fazer a diferença com as "casas de emigrantes" e a "Mariani" do Cavaco que isto é gente que da Maconde passou para a Hugo Boss e férias só no Dubai. Parafraseando os pescadores de Alvor, se os houver ainda, que vos desse uma traçã no beraco desse cu, que tevesseís sem cagar oito dias e quando cagassem só cagassem figos de pita inteiros.
Não me interpretem mal. Até já reencontrei uma antiga companheira coimbrã. Mas é que não param de insistir em que eu seja amiga do José Manuel Fernandes e, horror dos horrores, já é para aí a quinta vez que me propõem para amigo o José Luís Peixoto.
Bem gostaria de uma vez na vida receber uma carta assinada por uma mulher que não se apresentasse preenchida até à caricatura desse estilo feminimo cujo sucesso vai infelizmente crescendo. É verdade que as reticências têm a vantagem de permitir que acreditemos numa qualquer progressão de um pensamento mantido secreto e reservado à cumplicidade do leitor quando, na realidade, não escondem senão vazio e confusão; mas neste caso, sinceramente, vós abusais, e com que obstinação!
(Montherlant em tradução livre)
E transcrevo, no original, excerto de Les jeunes filles, romance de Henry de Montherland onde o escritor francês, autor, entre outras coisas, de uma peça de teatro chamada La reine morte (a qual não abona muito a favor da coitada da Inês de Castro…), desanca no uso exagerado das reticências por certos espíritos femininos. A parte traduzida insere-se numa passagem que contém duas cartas: uma, enviada a Montherlant por uma senhora indignada com a visão misógina dele; outra, com a respectiva resposta – misógina, talvez, cínica, certamente, mas com uma graça infinita!
CARTA PARA HENRY
Henry... si je puis me permettre de vous appeler par votre prénom... Les jeunes filles que vous peignez dans vos écrits auraient bien des choses à vous apprendre d'elles-mêmes... elles ne sont pas que l'expression de la niaiserie... Mais comment l'auriez-vous su... quand on sait ce qu'était votre mère... et quand on connaît vos penchants...
Mon cher ange décédé... le fait que vous étiez inverti ne me dérange en rien... (passez le bonjour à Peyrefitte... dont j'ai tant aimé «Les amitiés particulières», c'est la votre existence sur laquelle je ne dirai rien. Mais vous auriez dû en oublier celles que vous ne connaissiez que trop mal). En revanche je vous félicite pour votre «ville où le roi est un enfant», l'histoire sentimentale est là, plus vraie que nature...
Merci quand même... car nous les femmes... nous arrivons à aimer les misogynes.... Ana de Lyne
CARTA DE HENRY
Madame, Je voudrais bien recevoir une fois dans ma vie une lettre de femme qui ne fût pas emplie jusqu'à la caricature de ce style féminin dont le succès va malheureusement croissant. Il est vrai que les points de suspension ont cet avantage qu'ils permettent de laisser croire à quelque développement de la pensée tenu secret et comme réservé à la complicité du lecteur quand ils ne recouvrent en réalité que vide ou confusion; mais là, sincèrement, vous en abusez, et avec quelle obstination!
Bien entendu, votre lettre n'eût pas été complète, ni assez féminine en ce sens, sans l'emploi du verbe aimer, compliqué d'un petit paradoxe exaltant de surcroît le goût du martyre public pour lequel vous êtes si douées: si vous aimez les misogynes et que vous y trouviez votre compte, eh bien tant mieux pour vous; car je crois pouvoir affirmer que ceux-ci se passent fort bien d'une telle furia amoris.
Vous faites allusion aux romans de la série des «Jeunes Filles»: si vous n'avez vu dans les personnages féminins que «l'expression de la niaiserie», je crains que votre lecture n'ait été superficielle; la niaiserie n'est jamais tragique comme peut l'être la sentimentalité, ni pathétique comme le ridicule, ni dangereuse comme la bêtise.
D'ailleurs, si ignorant de la nature féminine que vous me considériez, il semble pourtant que mes portraits soient cruellement justes; nombre de femmes en ont convenu dans une enquête menée par le magazine «Les Nouvelles Littéraires» d'août 1936, auquel je vous renvoie. De plus, d'autres femmes de mes relations ont cru, bien à tort, se reconnaître dans mes héroïnes et ont fait bien du tapage à ce sujet! Mon ambition est donc pleinement atteinte, qui désirait montrer la femme telle qu'elle est, et non à travers l'idéalisation forcenée et criminelle que nous connaissons.
Enfin, puisque «La ville dont le prince est un enfant» vous a tant charmé, apprenez que, comme je l'ai confié ailleurs, nombre de traits de ma mère se retrouvent dans ceux de Madame de Sevrais; vous jugerez donc s'il n'est pas trop hardi de votre part de prétendre savoir qui elle était, vous qui vivez presque un siècle après sa mort. Bien à vous, Henry de Montherlant
A CAMPANHA CONTRA O PONTO DE EXCLAMAÇÃO TERÁ COMEÇADO AQUI, GANHOU CORPO AQUI E TEVE COMENTÁRIO ATINADÍSSIMO AQUI.
Quase podia servir de manual. Um manual que, como a palavra indica, se transporta na mão. Organizado com rigor e inteligência, Problemas da Filosofia não interessará apenas ao público especializado (como é, aliás, característica da colecção ‘Filosofia Aberta’ da Gradiva, onde se insere). Útil, sem dúvida, aos estudantes da disciplina e eventual ferramenta de professores, o livro de James Rachels (1941-2003) consegue ser suficientemente apelativo para poder ser lido por qualquer pessoa que, como Brian Cohen (do filme dos Monty Python), pense que andamos cá para pensar pela nossa própria cabeça.
Os temas são os habituais, e provavelmente eternos. Começando por Sócrates, o grego que terminou a beber a cicuta, discute-se Deus e a origem do Universo, o problema do mal, a vida pós-morte, a questão do Eu e da identidade, a dicotomia corpo e mente, o livre-arbítrio, a objectividade do conhecimento, os fundamentos da ética e o sentido da vida. É obra! E é tanto mais obra quanto Rachels consegue, para cada argumento, expor o seu contraditório, tudo isto em pouco mais de 300 páginas.
Com notas explicativas e sugestões de leitura que permitirão ao leitor interessado ir mais a fundo nas questões, o autor de Problemas da Filosofia (de quem a Gradiva já publicara o obrigatório Elementos da Filosofia Moral) aborda numa linguagem simples, mas não simplória, o por vezes hermético pensamento filosófico, traduzindo-o em perguntas que qualquer um de nós perceberá: ‘porque razão as pessoas boas sofrem?’; ‘poderá uma máquina pensar?’; ‘as pessoas serão responsáveis pelo que fazem?’; ‘porque razão é mau mentir?’; ‘como sabemos que as nossas experiências representam correctamente o mundo?’, etc.
Dentro de uma linha de exposição que privilegia a argumentação lógica e analítica, Rachels consegue fugir aos sofismas e pôr-nos a pensar. Andassem os manuais escolares perto disto e a filosofia nos liceus seria outra coisa. Embora também seja verdade que, como bem ilustra o caso de Sócrates, ‘corromper a juventude’ (uma das razões porque terá sido condenado à morte) não é actividade recomendável a qualquer um. Pelos riscos evidentes que pode comportar, claro. Problemas da Filosofia, James Rachels, Gradiva, 2009
É um livro pequeno sobriamente ilustrado, cabe no bolso e tem capa vermelha. Chama-se Outubro e debruça-se sobre a revolução bolchevique de 1917.
O autor, Rui Bebiano (RB), professor de História Contemporânea na Faculdade de Letras de Coimbra, mantém um blogue, A Terceira Noite, e foi lá que estes textos, agora compilados e ligeiramente alterados, apareceram pela primeira vez.
Quando comecei a ler Outubro lembrei-me de Arthur Koestler, o homem de O Zero e o Infinito, ex-comunista que desde logo percebeu que a utopia igualitária era, na verdade, uma realidade monstruosa.
Koestler escreveria no 1º volume da sua autobiografia, Arrow in the Blue: 'Nos anos 30, a conversão à fé comunista (...) foi a expressão sincera e espontânea de um optimismo nascido do desespero (...). Deixar-se atrair pela nova fé, penso-o ainda, foi um erro louvável. Estávamos enganados pelas boas razões; e continuo a acreditar que, apenas com algumas excepções (...) aqueles que, desde o início, denegriram a revolução russa o fizeram por motivos menos louváveis do que o nosso erro. Existe um mundo entre o amoroso desencantado e os seres incapazes de amar'.
Entretanto, muito tempo decorreu e muitos cadáveres passaram debaixo das pontes. Como questiona o próprio RB, a quem interessará hoje Outubro ‘fora do universo protegido dos prosélitos mais irredutíveis da revolução proletária?’.
Di-se-á que, desde logo, aos historiadores, mas porventura também, e concordando com RB, a todos os ‘que se não conformam com o mundo tal qual ele é’.
Abordando aspectos vários – do pragmatismo leninista, levado ao paroxismo por Estaline, aos compagnons de route; da invenção do ‘realismo socialista’ ao Gulag – Outubro, reflexão sobre o potencial utópico, dimensão simbólica e crimes reais da revolução soviética, será, sobretudo, na sua versão de pequeno ensaio, uma tentativa honesta de pensar o desencantamento. Outubro, Rui Bebiano, Angelus Novus, 2009
[Imagem: reprodução de um cartaz de Aleksandr Rodschenko]
AINDA A TOMADA DA BASTILHA, PERDÃO, DA CAMÂRA, MELHOR DIZENDO DA BANDEIRA
Quando li o manifesto do SIMplex registei a pluralidade dos humores: a vida tem destas coisas, juntar pessoas que não se conhecem, homens e mulheres, jovens e menos jovens, gente consagrada e por consagrar, gente divertida e sisuda... No que toca ao recente episódio da troca das bandeiras não sei, porém, onde páram os primeiros. Os sisudos, sim. E, pelas declarações, já foram convidados para ministros.
Com o crime de furto rebaixado à categoria de anedota nacional, vivemos hoje num país mais perigoso (Diogo Moreira)
Caso não haja uma resposta enérgica e firme por parte das autoridades, nunca a expressão “República (ou Câmara) das Bananas” foi mais apropriada (Diogo Moreira)
Eu pensava que os anarquistas eram de extrema-esquerda. Estamos sempre a aprender (Diogo Moreira)
Nunca tão poucos deram uma machadada tão grande na autoridade do Estado (Diogo Moreira)
É bom ver que a autoridade do Estado, o Estado de Direito ou o simples cumprimento da Lei é algo que os “guerrilheiros ideológicos” consideram risível (Diogo Moreira)
Em matéria de autoridade do Estado não há graçolas (Eduardo Pitta)
CONCLUSÃO: Como escreveu Bruno Sena Martins «entre monárquicos bem humorados e republicanos sisudos estou, naturalmente, com os primeiros».
Eu, que republicana me confesso, dedico o hino aí de cima aos valentes rapazes monárquicos que tentaram derrubar a república munidos só de um escadote. Sobretudo pelo escadote, mas também na esperança que, seja qual for o regime, deixem de escrever há 99 anos atrás e um acto de resistência contra.
Para mim, os olhos dele são verdes. Há quem conteste. E, a crer no jornalista brasileiro Sidney Garambone (Isto É, 11-11-1998), nem os seus familiares se conseguem pôr de acordo: uns dizem que são azuis, outros que são verdes, alguns afirmam que é conforme. O facto é que quando o ‘pivete’ Chico Buarque foi preso por ‘puxar’ um carro, aos 17 anos, o ‘policial’ que lavrou o auto, meio confundido, terá escrito ‘cor de ardósia’. Em Julho passado, durante a conversa que manteve com Milton Hatoum (um dos melhores escritores actuais do Brasil, autor, entre nós, da Cotovia), no âmbito da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), ele estava demasiado longe para eu poder tirar teimas. Mas agora, ‘olhos nos olhos’ (como na canção cuja letra leva a sua assinatura), no seu apartamento do Alto Leblon com vista aérea sobre o Rio de Janeiro, ia jurar que são verdes. A incansável Miriam Cutz, da TurisRio, avisara-me que ‘para chegar a casa do Chico’ levaria mais ou menos uma hora. Pus hora e meia. Entrei no táxi, dei a morada, o motorista accionou o GPS e pouco depois, mais ou menos a meio de Botafogo, disparou um fumo branco. Rendido à evidência de um motor prestes a gripar, o sujeito encostou a viatura e eu fiquei apeada. Apanhei um segundo táxi. O motor não chegou a aquecer: mal pronunciei ‘Alto Leblon’ o taxista informou-me que não fazia a menor ideia de como lá chegar. Ainda insisti. Em vão. O terceiro taxista conhecia o bairro, porém, desconhecia a rua. E, quase uma hora passada, o problema era precisamente encontrá-la. Interrogados, sem êxito, vários transeuntes, o chofer desesperava comigo: ‘Isto já parece São Paulo! Ninguém sabe de nada… Ninguém sabe de nada’. Por fim, o porteiro de um dos vertiginosos prédios da zona veio em nosso socorro. A meio da explicação, o motorista do táxi interrompeu os vira-à-esquerda-e-à-direita e rematou: ‘Ah! Mas isso é a rua do Chico! ‘. A entrevista fora marcada em Portugal. Motivo: o lançamento quase simultâneo, cá e lá, do romance ‘Leite Derramado’ (Dom Quixote). Aos media brasileiros Chico Buarque disse nada. Falou apenas na FLIP, com a casa a vir por fora. Falou de literatura, mas também a favor de várias comunidades locais, cujos moradores se manifestaram nas ruas de Paraty contra o condomínio multimilionário de Laranjeiras, que, garantem, os impede de chegar à praia. No momento em que chego à porta de sua casa no Rio (que o próprio abre), ainda não li o que sobre ele escreveria Milton Hatoum: ‘Não foi fácil participar de uma mesa com Chico Buarque (…) O assédio a um dos artistas mais talentosos e queridos do Brasil inibe qualquer um’. Sem dúvida. Mas a verdade é que acabou por ser fácil. Pelo menos para mim (e arrisco que também para Hatoum). A sala é luminosa e despojada, e um piano que já pertencera ao pai, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda, ocupa grande parte do espaço. Uma varanda enorme oferece um plano de conjunto dos prédios, das ruas, dos morros e da água. É aí que a conversa começa. Depois, a oficial, de gravador ligado, tem lugar lá dentro entre cafés e cigarros. Só eu é que fumei. Durante quase duas horas. Mal apanhava um intervalo, Chico assobiava baixinho.
Todas os brasileiros a quem disse que vinha falar consigo, comentavam como que emocionados: ‘Oh! Meu Deus, vai entrevistar o Chico! Bom, nesse caso você conheceu as pessoas certas (risos). Porque isso não é assim. Se, por um lado, existe uma certa boa vontade, gente que gosta porque é simpático, por isto e aquilo, existe também o contrário…
Talvez, mas o que pude confirmar, até pela forma de tratamento, ‘o Chico’, é que o seu estatuto é de ídolo. Isso incomoda-o? Não penso muito nisso, não. Me incomoda um pouquinho, por exemplo, que a gente esteja falando de um livro e que o autor se ponha à frente. Acho que o livro é mais importante do que o autor. Foi por isso que aqui no Brasil não dei entrevistas, para não tirar proveito dessa eventual simpatia. Porque existe. Agora, existe na mesma medida e com a mesma intensidade com que existe uma objecção e antipatia muito grandes.
Esses dois pólos estarão ligados, também, à sua imagem política… Será, mas eu há muito que renunciei a qualquer relevância política. Isso tinha a ver com a ditadura, a pressão, a falta de liberdade, quando a música popular e os artistas representavam um papel fora do normal… Era uma situação estranha.
Apesar do que diz, em Paraty, foi para si que os manifestantes apelaram. Em podendo me manifestar, não me recuso. Só que a minha voz não tem importância nenhuma. Ou tem a importância que tem. Não se trata de um desligamento da política ou das questões sociais, continuo atento ao que se passa no meu país. Se trata de um recolhimento, por considerar que há pessoas mais próximas desses problemas. Há políticos. Por exemplo, na questão ambiental, a Marina Silva [ex-ministra do Meio Ambiente de Luiz Inácio Lula entre 2003 e 2008, quando apresenta a demissão por divergências com o governo]. Ela pode falar sobre os caiçaras de Paraty muito melhor do que eu. Escreve uma coluna num jornal, é senadora… Porque é que eu vou dar entrevistas sobre isso? Não vejo muito sentido. Agora, se for solicitado, naquele momento farei.
E eles sabiam disso… Talvez vejam em mim um vínculo maior com essas causas sociais. Mas depois… o que li nos jornais. Disseram candidamente que foram falar comigo porque a imprensa estava voltada para mim e assim chamariam mais a atenção. Não por ser eu, mas porque era para onde a imprensa estava olhando.
Está a querer dizer que a nova geração vai ter consigo, não por si mas por ser famoso. Exactamente. No caso foram pragmáticos (risos). Para onde é que as câmaras estão apontando? Então é para aí que vamos…
Trocando a política pela literatura. No longo caminho para cá (risos) tive tempo para reformular uma pergunta. Ia perguntar-lhe porque é que um letrista – e muita gente não hesitaria em chamar-lhe poeta de canções – prefere a prosa. Mas depois pus-me a pensar que muitas das suas letras contam histórias… Embora as minhas letras não pretendam ser poesia, na verdade as minhas músicas que contam histórias são poucas. É que às vezes as canções que ficam são ligadas ao teatro… Há muito isso. Depois tornam-se independentes, mas na origem foram escritas para cenas de teatro, personagens teatrais e tal, e então elas são mais narrativas. Quando ganham vida própria, as pessoas não ligam uma coisa à outra. Mas eu nunca escrevi poesia. Assim como nunca escrevi uma letra de música sem música. A minha letra é feita em função da música. Sou músico antes de ser letrista. Então, para mim escrever prosa é uma coisa à parte, não tem nada a ver com a literatura da canção. É outra arte, outra maneira de lidar com as palavras.
O letrista nunca escreveu poemas? As pouquíssimas coisas que fiz eram coisas de garoto, muito jovem. Poemas com formas fixas, sonetos… Até brinco com isso, fazer sonetos de circunstância. Agora, eu não sei escrever. Não me sai. Se eu me quiser sentar para escrever poesia, não sei por onde começar. Sou condicionado pela música. A métrica será a métrica da música. As rimas serão em função da música.
A música antecede… Sempre! Sempre antecede a letra. Tenho muitos trabalhos feitos de pareceria. O compositor me entrega a música pronta e eu devolvo com a letra. A letra em cima daquela nota, tudo certinho e tal… Quando faço sozinho, por vezes durante a feitura da música a letra vai surgindo, mas sempre em função da música. Nunca começo pela letra, não sei fazer isso.
Na prosa sente-se mais livre? Sinto-me mais livre. Se bem que na prosa, tenho a impressão que se poderia reconhecer uma vocação musical. Eu sinto necessidade que ela corresponda a um rigor musical. No sentido de ter uma certa cadência, ritmo… Muitas vezes mudo uma frase, uma palavra, e não paro enquanto não me satisfizerem musicalmente. Não que eu fale a frase em voz alta, ou vá cantar aquilo. Mas há uma exigência quase musical. Agora, na criação de prosa, evidentemente, há que haver uma lei narrativa. Se bem que muitas vezes a gente supõe que não, ou a gente não quer. Mas aí, acho que é um pouco a inveja que a prosa tem da poesia. Eu, na verdade, o que menos me atrai na escrita de um romance é a história. Me interessa mais trabalhar com a forma, a forma de contar aquela história… A história em si não é nada, muitas vezes não é nada.
Neste seu livro sente-se muito isso. Os cortes, as repetições. Mesmo o facto dos capítulos serem curtos. Mas, provavelmente, por ser músico, não precisa de ler alto. É uma música que está dentro da cabeça. A cabeça pensa a música, não precisa de cantar para perceber que música é aquela. Os capítulos são todos feitos de um parágrafo só. Os capítulos são parágrafos. E há um desejo que eles sejam um pensamento fluente, que não haja nenhuma interrupção. Uma coisa vai puxando a outra, como se fosse um desafogo daquele velho falando, falando, até… até ele cansar. Pá! (risos) Aí retoma o segundo parágrafo e vai, vai, vai, mesmo que não tenha interlocutor, mesmo que os interlocutores sejam imaginários ou que estando ali não falem. Ele não quer saber, ou pode ser surdo. Ou então fala sozinho…
E relê os seus livros depois de publicados? Não. No caso, fiquei com o velho durante um ano e meio. Durante aquele tempo você vive com aquilo, depois termina e você diz: tá bom! É o melhor que eu posso fazer. Um pouco como: agora eu posso morrer… Não posso morrer, não (risos). Mas há essa necessidade de se libertar.
Disse há pouco que uma história pode ser nada. A propósito disso, porque já vi o seu livro anunciado como um romance sobre a história do Brasil, e eu, confesso, com honrosas excepções torço um bocadinho o nariz à ideia do romance histórico… Também eu, também eu… Acho mesmo uma coisa meio chata.
… mas depois comecei a ler, e as memórias do velho Eulálio, imaginando que seriam outras, se a solidão, a raiva e a força dele se mantivessem, o que ele, no concreto, recorda, quase seria irrelevante. A história do Brasil vai pontuando um pouco. O passado do pai, do avô, como a própria história do Rio de Janeiro que se vai transformando junto. Ele vai envelhecendo e o Rio, de certa forma, também vai perdendo a importância que tinha. Mas eu não pretendo contar a história do Brasil. Agora, há elementos ali, personagens da política, por exemplo, que dão um pouco a entender o que eram, enfim, as mazelas brasileiras, e que se perpetuam até hoje. A confusão entre o público e o privado, um tema que o meu pai aborda em ‘Raízes do Brasil’, a natureza conciliadora do brasileiro, as formas de nepotismo, essa maneira quase familiar de se tratar a coisa pública… Coisas que já foram ditas e reditas. Isso está lá. Mas talvez porque o meu pai é historiador, e as pessoas imaginam que eu seria muito influenciado por ele, deu-se uma importância maior do que a que eu acho que a história do Brasil tenha no livro.
Porquê ‘Leite Derramado’? Lembrou-me o ‘não chorar sobre leite derramado’, mas depois fui achando cada vez mais que a expressão teria antes que ver com as mulheres retratadas, com a Matilde… Há uma ideia de maternidade… Mas tem, claro. Tem essa ideia de maternidade o tempo todo, e o título me ocorreu exactamente durante uma cena que está lá, que é o leite derramado, literalmente derramado… Eu ainda fiquei um pouco hesitante por causa justamente desse dito vulgarizado, que parece um pouco título de auto-ajuda (risos). Mas depois pensei que não podia ser outro.
A propósito deste seu trabalho, vários críticos falaram de Machado de Assis. É leitor de Machado? Não especialmente. O Machado, eu li quando tinha 15 anos. Mas como em 2008 se comemoraram os 100 anos da morte dele, pode ser que isso tenha reavivado em mim alguma coisa do ‘Dom Casmurro’. Só li esse e o conto ‘O Alienista’. Eram deveres da escola. Mas algum parentesco há-de haver. A gente não sabe.
Por falar de brasileiros consagrados. Quando disse na FLIP que não sabia o que seria mais importante, se Guimarães Rosa se João Gilberto, onde é que queria chegar? Eu estou reagindo a um certo tipo de preconceito, que é semelhante a um preconceito de classe em relação à música popular. No Brasil, eu acho isso um absurdo. Então, é uma tentativa de me embaraçarem quando dizem, por exemplo, que em Paraty vai estar o cantor Chico Buarque. Acham que eu me sinto diminuído com o ‘cantor’. Como se o cantor quisesse ser escritor. Eu já disse várias vezes que não sou, não quero ser escritor, não faço questão de ter essa toga, essa carteirinha, de pertencer a esse clube. O meu mundo é o mundo dos músicos. E não acredito nessa hierarquização, não acredito que o escritor pertença a uma classe superior a um compositor de música popular ou a um cantor no Brasil. E isso existe muito. Tem 50 anos que Vinicius de Morais foi expulso do Ministério das Relações Exteriores porque era um boémio e cantava… Há 50 anos que, de certa forma, ele desistiu da poesia culta para se dedicar à música popular. E ainda hoje há uma certa má vontade… 50 anos! Pôxa! Para a formação cultural do brasileiro, não sei se Guimarães Rosa, que é o meu escritor preferido, é mais importante do que João Gilberto. Sinceramente, não sei. Os literatos não gostam que se diga isto, vão ficar escandalizados, mas eu não digo para provocar. Estou reagindo a uma provocação, talvez, mas sem intenção de épater… o literato (risos). Digo por liberdade. Afirmo e confirmo.
Voltando ao livro, como é que lhe apareceu o velho Eulálio? Antes de aparecer o velho, apareceu o tempo do velho. O passado. Eu comecei-me a interessar por aquele princípio do século. E, por algum motivo, comecei a querer criar uma acção por volta dos anos 20. Comecei a ler sobre isso. A ler sobre um navio, o ‘Lutécia’, como eu contei em Paraty e é verdade. Aliás, continuo a falar verdade, não estou mentindo (risos). E depois houve uma cantora brasileira que lançou um disco de músicas minhas, com uma música que eu nunca mais tinha ouvido, ‘O Velho Francisco’. Eu já tinha um velho, pois, um outro, um antigo escravo delirando num asilo, inventando passados gloriosos, fui isto, fui aquilo… E isso aí foi um pouco a chave do meu personagem, que é um velho inteiramente diferente, mas enfim, trata-se de um velho a relembrar factos, políticos ou não, da sua infância, da sua juventude e tal. Achei que havia nisso algo interessante como forma de narrativa. Um velho rememorando, às vezes, tem uma forma moderna de contar, essas idas e vindas, esse tempo fluido… Eu presto atenção à conversa de velhos, eu me interesso por isso. Por essa memória selectiva, as fugas, as tergiversações, mesmo aquelas mentirinhas ou lapsos de memória, coisas que voltam não exactamente como eram…
E velhos como ele ainda existem? Com aquela visão classista e tão reaccionária, uma visão que nem sequer é ideológica, vem das tripas: as coisas são assim! São assim! Eu conheço isso. Conheço por dentro. Pessoalmente. Eu ouvi esse tipo de coisa a vida inteira. Claro que as coisas se transformaram. Se bem que esse pensamento também ficou um pouco disfarçado. No fundo, não se transformou tanto. Transformou-se em relação, por exemplo, a preconceito contra imigrantes, filhos de imigrantes. Isso existia. Hoje em dia ninguém põe restrições no Brasil a um sujeito com sobrenome italiano ou a uma família árabe estabelecida. Na minha juventude, era comum referir-se filho ou neto de italiano como carcamango, os sírios-libaneses como turcos, de modo depreciativo. Os casamentos, vamos dizer, entre famílias tradicionais e filhos de emigrantes, como aparece no livro, eram mal vistos. Isso hoje não existe mais… Em relação aos emigrantes brancos. Em relação aos pretos e aos mulatos ainda existe. Há uma pesquisa, disse-me no outro dia o pessoal da Universidade de São Paulo, que é muito interessante. A pergunta é: você tem algum tipo de preconceito rácico, de classe, de sexo e tal? Não! 97%, não! Você conhece alguém próximo que tenha preconceito? 99 %, sim! (risos)
Alguém está a mentir! A conta não dá. Mas é isso mesmo. Esse velho fala como um velho de 100 anos, pensa como um velho de 100 anos e eu procurei entrar na cabeça dele.
E ele já se foi embora? Porque em Paraty disse que o velho continuava por aqui feito fantasma. Que ter partido a sua perna há pouco tempo, talvez tivesse resultado de um empurrão dele. Eu, na verdade, quebrei a perna jogando futebol. De qualquer forma, estou despedindo ele hoje (risos). Com você. Espero que o leve para Portugal e eu me pretendo dedicar a outras coisas.
Por falar de Portugal, e antes de me ir embora com o Eulálio. Tem algum contacto com o que lá se produz culturalmente? Há hoje uma penetração maior da cultura portuguesa no Brasil do que há 10 anos. Os cantores portugueses eram uma raridade. Conhecia-se a Amália Rodrigues e o Carlos do Carmo. A partir dos Madre de Deus, talvez por causa do filme do Wim Wenders, passou a haver um interesse que não existia antes. Na literatura há o José Saramago, o Lobo Antunes. No cinema, o Manoel de Oliveira…
O Manoel de Oliveira é o nosso Niemeyer… É isso aí (risos).
Há mais ou menos uma década morava na mesma rua do Raúl Solnado. Costumava cruzar-me com ele num restaurante óptimo que lá havia. Penso que só lhe dirigi a palavra uma vez, quando ele disse qualquer coisa a propósito do PCP ter vindo elogiar a Amália na altura em que ela morreu. Achei que ele tinha razão. Uma noite coincidimos no jantar. Já tarde, fiquei sem cigarros para a sobremesa. Da minha mesa eu via a mesa dele e, sobretudo, via o maço de tabaco pousado ao lado da travessa. Fumadora inveterada, não resisti. Fui lá e pedi-lhe um cigarro. Estendeu-me amavelmente o maço e eu agradeci. Voltei para o lugar e passei ao café. Já ia no segundo quando Solnado se levantou para sair. Ao passar junto a mim, levou a mão ao bolso, tirou três cigarros e deixou-os ficar. Por vezes é preciso muito pouco para identificarmos uma 'alma melhor'.
É final de percurso. Ficam ali junto ao jardim, vazios e silenciosos, e o motorista, na espera, encosta por vezes a cabeça sobre o volante. Outras vezes anda cá por fora, mãos pensativas nos bolsos, zelando pelos pneus. Já assisti a um ou outro pontapé. À luz do fim do dia a cena torna-se absurdamente nostálgica e sem que eu saiba explicar porquê deixa-me sempre triste. Parece um quadro do Hooper. Hoje de manhã, foi só depois da cadela ter cumprido aquela parte do ‘vamos lá escavar um bocadinho à procura da Maddie’ que o vi sair detrás da árvore, aos pulinhos, ainda ajeitando as calças demasiado subidas. Não sei se corou porque, com grande sentido das conveniências, a cadela puxou-me na direcção oposta. Recomeçou a brincar com a trela e voltámos felizes para casa, exorcizado o Hooper.
Nasceu no mesmo dia e no mesmo mês do que eu (e do que uma das personagens de "Bullet Park"): será isso uma curiosidade que só a mim interessará. Assinalo-a, naturalmente, porque o norte-americano John Cheever (1912-1982) foi um mestre. Tivesse sido ele um escritor medíocre e evitaria o assunto.
"Bullet Park", considerada uma das suas obras mais conseguidas, mistura com brilhantismo lirismo e ambiente noir, experimentalismo e técnica realista. Ao longo das quase 200 páginas do romance, Cheever consegue a proeza de tanto nos lembrar a delicadeza de Chekhov como a crueldade de Patricia Highsmith; o sensualismo de John Updike e o rigor minimal de Edward Hopper. Precisamente Updike, de quem foi amigo, classificá-lo-ia como o maior estilista da sua geração. Brilhante na narrativa curta (obrigatória a leitura dos seus "Contos Completos", cujo Volume I foi traduzido já este ano pela Sextante), Cheever mantém em "Bullet Park" o mesmo gosto pelos mistérios inesperados dos subúrbios, dos quais foi retratista exímio. Elliot Nailles e Paul Hammer (note-se a brincadeira entre a sonoridade de nailles, similar a pregos, e hammer, de martelo) são as personagens condutoras da acção. Conhecem-se em Bullet Park, e o segundo não é exactamente o que parece.
A vida monótona de Bullet, que quase lembra a de uma aldeia, com homens casados a viajarem diariamente de comboio para o trabalho, esperando-os no lar donas de casa, tranquilas umas, outras desesperadas, será abalada pela chegada de Hammer. Não de imediato. Só na Parte II nos aproximaremos mesmo da tragédia, que será anunciada ao leitor sem grandes cerimónias. Vidas duplas (a bissexualidade de Cheever podia ser agora invocada, mas as explicações biográficas pouco mais são do que precárias e pretensiosas), crises existenciais, comportamentos fora das regras, tudo isto sob um fundo de normalidade burguesa que pode tornar-se explosiva. Embora a contenção defina o tom. Porque mesmo a maior violência é descrita com uma mansidão que lembra, de facto, aqueles tempos evocados por Cheever no prefácio a "Contos Completos", em que "quase toda a gente usava chapéu". Cheever não é, porém, um moralista. É só que, terá ele percebido, a condição humana ultrapassa em muito a filosofia sonhada por Horácio. Nada de novo, portanto. Apenas um enorme talento pictórico, um humor corrosivo e moderno, uma imaginação atenta ao real e uma preocupação extrema com a "palavra justa". Ou seja, muito bom.
A resposta foi-me apontada aqui. E, vai daí, segui o link. O link, tal estrada de Damasco, conduzia-me à Iluminação. Quero eu dizer, a um post de Carlos Santos no SIMplex que, por sua vez, era uma reprodução de um post de Valupi, no Aspirina B. Para não vos maçar demasiado, passo a resumir: contas feitas, 58,9% dos eleitores não irá votar PS mas sim noutros partidos. Que, por isto ou por aquilo, são todos maus. Os outros partidos. Ao negarem-se a votar na modernidade socrática, esses 58,9% de eleitores provam habitar «algures no espaço cósmico, bem longe da gravidade terráquea». Nota da autora deste post: os abstencionistas não são considerados mas supõe-se que também flutuem na exosfera. A parte que abalou porém e completamente os fundamentos do meu Ser, como se fora atingida, em simultâneo, pelos 22 raios da Fraternidade Branca (seja lá isso o que for) vinha a seguir, à laia de conclusão: «E se esta é a clarividência que revelam em matérias políticas, como será noutras áreas da sua vida pessoal e nossa existência colectiva?»
E eu, quase a desistir da vida pessoal e da nossa existência colectiva nem se fala, senti-me repentinamente invadida por um vaga de esperança, um frémito retemperador, uma substância de vida que nem a Laurinda Alves nos seus dias mais profundos.
Embora, paisagisticamente, ache a Suíça o país mais chato do mundo e não seja apreciadora de charutos é só o que me apraz dizer [a ilustração é da Bela e o Monstro, claro]
Nota: Como bem refere João Lisboa num comentário a este post, em rigor, Felgueiras levou com 3 suspensos [esta infomação consta no link da Bela]. Referia-me eu, porém, ao seu último julgamento do qual saiu ilibada. O que, mantendo a toada futebolística, significará que Isaltino, mesmo metendo 3, estava fora de jogo. Não conta para o resultado.
Eu não sou fã do João Bónifácio. Aliás, já aqui escrevi irritada contra um texto dele. Dito isto, acrescento que sou absolutamente fã desta máxima batida do Voltaire: «Não concordo com uma única palavra do que diz, mas defenderei até à morte o seu direito de dizê-la». Vem isto a propósito do imenso sururu que se criou por causa de um texto de JB publicado no Público sobre o Super Bock Super Rock.
[...] Joaquim Vieira, esclarece que: 1) "não (lhe) parece curial que o jornal envie para criticar um espectáculo quem a priori assume a sua aversão aos artistas. Não é crível que um crítico com tal parti pris consiga manter o mesmo tipo de abordagem e distanciamento que terá perante intérpretes que aprecia ou lhe sejam indiferentes. Tal aitude prejudica a igualdade de tratamento que o 'Público' deverá dar a todos os intervenientes nos eventos que cobre, como jornal cujo estatuto editorial defende o recurso aos 'indispensáveis mecanismos de objectividade'. Tradução: "não apreciar" um artista é igual a "ter-lhe aversão"; quando "não se aprecia um artista" (isto é, quando se lhe "tem aversão"), o "distanciamento", o "tipo de abordagem", a "igualdade de tratamento" e os "indispensáveis mecanismos (???) de objectividade" ficam comprometidos; mas, quando "se aprecia" (ou se lhe é... "indiferente"), a "objectividade" fica salvaguardada.
Daqui decorre que:
a) para o trabalho crítico de cobertura de um festival - com muitas bandas e músicos de variados estilos e géneros, todos susceptíveis de gerar graus diversos de "aversão", "apreciação" ou "indiferença" -, o "Público" deverá mobilizar um exército de críticos seleccionados banda a banda, de acordo com uma declaração de afinidades estéticas previamente preenchida e entregue ao editor;
b) para a crítica ao concerto/disco/DVD de uma única banda ou músico (presume-se que o mesmo se aplique ao cinema, teatro, dança, literatura, artes plásticas...), os críticos deverão ser, preferencialmente, recrutados nos seus clubes de fãs e, para que tudo corra bem, mediante a aprovação dos próprios artistas (e, já agora, dos respectivos agentes e promotores dos concertos/festivais);
c) o trabalho crítico passa, de aqui em diante, a ser encarado como um "exercício de objectividade". 2) "O 'Público' que ambiciona claramente ter uma função federadora em relação à população portuguesa, deveria cuidar de não alienar os diversos grupos sociais com considerações gratuitas ou de mau gosto, eventualmente ofensivas. A responsabilidade não é de J.B., mas de um editor que deveria ter feito a leitura prévia do texto e chamar-lhe a atenção para uma passagem mais desprimorosa para os adeptos de um clube. Na esmagadora maioria dos casos, o redactor cai em si, muda o que tiver de ser mudado e o texto cumpre na mesma a sua função". Tradução: "função federadora" - vender mais do que os miseráveis números actuais que o Belmiro, não tarda nada, fecha a torneira; "não alienar os diversos grupos sociais" - na gebalhada da bola, não se toca nem com uma flor que os gajos passam-se! É piar fininho e deixar-se de fantasias (para a política, haverá normas a expor posteriormente); "a responsabilidade não é de J.B. mas... de um clube" - os jornalistas/críticos são uns tontos que não medem o perigoso alcance do que escrevem e tem de haver quem os meta na ordem; "Na esmagadora maioria dos casos, o redactor cai em si, muda o que tiver de ser mudado" - na esmagadora maioria dos casos, o redactor recorda-se que tem a prestação da casa para pagar, que não lhe dá jeito nenhum perder o emprego, mete o rabo entre as pernas e obedece ao chefe; "o texto cumpre na mesma a sua função" - o texto "enche o buraco" na página que estava previsto sem aborrecer ninguém. Nota: na página anterior à do Provedor, no mesmo espaço do "editorial" em que, há dias, apresentara desculpas públicas ao Belenenses pelas "ofensas" de João Bonifácio, Nuno Pacheco insurge-se indignadamente contra os limites à liberdade de informação impostos por Hugo Chávez, na Venezuela.