29/08/09

Eu traduzi, Luísa Meireles, jornalista do Expresso, leu e gostou ("Dizer que é um grande romance é pouco. É imperdível", diz ela.)

Há livros que são assim: poemas. Lêem-se de um fôlego, mas depois há que saboreá-los devagar. Aquilo que fica é a linguagem de um poeta. Tal como a deste, Hubert Haddad, francês de pai tunisino e mãe de origem argelina. O seu segundo nome esconde, porém, uma outra identidade, melhor, uma alteridade: Abraham, judeu berbere, como quem diz, árabe.
Palestina é um romance com o tom de uma tragédia clássica. Belo, comovente, dorido e perturbador como só a poesia consegue. Parte de uma ficção, uma ideia louca, talvez apenas possível nas terras que dão o nome ao livro. Um jovem soldado israelita, Cham, é ferido num atentado e perde a memória. É recolhido por uma família palestiniana, pacifista, uma mãe cega e uma filha dilacerada pelas memórias, Falastin (Palestina, em árabe), que o trata e por quem ele se apaixona. Acaba por assumir a identidade do filho/irmão desaparecido, Nassim, e, por essa via, a da causa palestiniana. Até que Cham acorda, de novo, dentro de si e... não cabe aqui contar toda a história, que mereceu em 2008 o Prémio dos Cinco Continentes da Francofonia.
O romance, percebe-se, é uma obra sobre identidades. E só talvez um autor tão complexo como Haddad o pudesse narrar com a simplicidade dos poetas. Identidades construídas sobre a realidade do dia-a-dia que o autor reconstrói: as humilhações, as violências, a arbitrariedade gratuita de quem pode e manda e que torna a vida dos palestinianos num inferno, sem deixar de ser o pesadelo israelita. Não é por acaso que o autor faz um major israelita dizer que "muçulmanos e judeus só conseguem estar de acordo a respeito dos mitos". O livro, porém, não é um panfleto, longe disso. O ódio está lá, o tempo todo: "O ódio é uma prisão", diz Falastin, citando os rabinos. "Sê antes o maldito do que aquele que amaldiçoa." Mas também o amor: "Amar não é morrer?", pergunta ainda uma outra vez. Não é a Palestina isso mesmo? Uma terra sem paz, de amores e ódios?
Por ser narrado do ponto de vista de um 'estranho', perpassam ali as diferentes sensibilidades palestinianas, do pacifismo à revolta e ao martírio. Mas também dos israelitas, porque neste livro nada é linear, nada é como se espera. E quando se vira, sofregamente, a última página, é a emoção que explode: "O silêncio cumpre-se. Já nenhuma alma vive."

Palestina, Hubert Haddad, 2009, Quetzal

5 comentários:

Cristina Gomes da Silva disse...

Ó ACL, não consigo dar vazão a tanta sugestão de boa leitura. Ainda por cima tenho as férias a acabar. Mas, obrigada na mesma, lá vai aumentando a pilha de livros que já começou a invadir o armário da roupa. :)

Ana Cristina Leonardo disse...

Já agora, aconselho vivamente as 1080 páginas d' A Segunda Guerra (risos, apesar do tema ser sério...)

Anónimo disse...

Ana Cristina: tenho de rezar dois padres-nossos e três avés-marias. Li há duas semanas Palestina, de Hubert Haddad, numas curtas férias em Salvador da Bahia, entre uma mãe-de–santa e a Igreja do Bonfim, e, desatento, não vi o nome do tradutor, no caso a tradutora. Imperdoável.

tomas vasques disse...

Ana Cristina: tenho de rezar dois padres-nossos e três avés-marias. Li há duas semanas Palestina, de Hubert Haddad, numas curtas férias em Salvador da Bahia, entre uma mãe-de–santa e a Igreja do Bonfim, e, desatento, não vi o nome do tradutor, no caso a tradutora. Imperdoável.

Ana Cristina Leonardo disse...

Tomás, está perdoado e dispensado das rezas