Há um provérbio português que diz assim: Mais vale cair em graça que ser engraçado. Ocorre-me a máxima a propósito de um texto de João Bonifácio sobre o último concerto de Leonard Cohen em Portugal. A coisa tem dias mas só recentemente me chamaram a atenção para tão «explosiva» prosa.
Não conheço Bonifácio e do Cohen conheço-lhe apenas a poesia e as canções. Mas sei, isso sei, quando alguém se esforça desesperadamente por ter graça e parecer irreverente. Sei-o, porque há uma notória diferença entre SÊ-LO e parecê-lo.
(...) Tudo o que de mau há na música de Cohen das últimas décadas - os arranjos ao gosto de Julio Iglesias, o funk branco soft porno???, as harmonias de guitarra à Casino do Estoril, os órgãos planantes para dois dedos de Martini em varanda de resort de luxo ao pôr-do-sol - esteve ali demasiado exposto, bem ao gosto dos turistas alemães de classe média alta???.
(...) É que, por detrás daquela voz de charme e da pose de cavalheiro que está ali por acaso???, ele canta: a sida, a crueldade emocional, o sado-masoquismo, o terror, o advento do fascismo, o crack, o sexo anal, o cunilingus enquanto forma de salvação, todas as coisas bonitas de que precisamos quando estamos de férias no Algarve???.
A minha recomendação é que João Bonifácio passe umas boas férias no Allgarve, já agora, deixe de usar tantas vezes o evocativo «judeu» e, sobretudo, não faça tanta questão em ter graça. Porque não tem. A não ser que estejamos a referirmo-nos àquela sua famosa tradução do Ne me quitte pas de Jacques Brel em que Laisse-moi devenir (...) L’ombre de ton chien passou hilariantemente a Deixa-me ser o ombro do teu cão…
29 comentários:
A tradução do «Ne me quitte pas» (salvo erro resultou de uma entrevista feita ao Camané) foi, sem dúvida, um dos momentos mais hilariantes e humilhantes do jornalismo musical português. Qualquer gajo civilizado tinha mudado de profissão... Manuel: Descansa em paz (salvo seja), que a tequilla não te tirou a lucidez.
Boa, afifa-lhes que eles nem a tua indignação merecem
"Qualquer gajo civilizado tinha mudado de profissão..." (rui g)
Já a mim parece que quem mudasse de profissão por causa de coisas dessas teria que passar a vida a engendrar novas artes e ofícios. Já toda a gente errou assim, como muitíssimo bem sabe, só que nem todos o fazem para uma plateia. Aaaahh..., a insuportabilidade de se imaginar a falhar sem buraco onde esconder-se...
ACL:
Já tinha passado a mensagem sobre o texto do Cohen, ao longo do post. A repescagem do ombro do cão parece-me inutil, a menos que considere o tal erro como produto da arrogância do escriba, o que a ajudaria a ilustrar o resto, identificando um padrão. Assim soa a odiozinho de estimação, e lá se vão lógica e retórica, de uma só penada.
Paulo, esta coisa da NET tem destas coisas. As pessoas não se conhecem... Se me conhecesse, saberia que eu não tenho odiozinhos de estimação. Bom, talvez tenha. Vou confessar-lho dois: a Lídia e o Peixoto. Quanto à repescagem do ombro do cão, eu própria, adepta confessa da compaixão como princípio de vida, me pus a pensar se não seria demais. Mas sabe que mais? O texto do João Bonifácio é tão cheio de si, que merecia que alguém lhe lembrasse que não é o deus na terra e que o respeito até pode ser um valor a cultivar. No fundo, a questão é só esta: não há medíocres inocentes.
Quantos aos erros públicos, o ponto, mais uma vez, não é errar, é estatelar-se após se pôr em bicos de pés. O João Bonifácio não foi avaliado por não saber francês. Foi avaliado por não ter achado estranha a frase «o ombro do cão» - mas que porra pode ser o ombro de um cão? - e por a citar depois de dissertar sobre a canção do Brel como se a conhecesse de trás para a frente.
E voltamos ao mesmo...
Porque me citaste (linkaste) gostava de dizer umas quantas coisas:
1 - (declaração de interesses) sou amigo do João Bonifácio;
2 - honestamente, não acho que (no texto completo do "Público") o JB diga coisa muito diferente do que eu digo; pode preferir-se um estilo ao outro, achar-se que ele abusa da piadola mas, no essencial, tudo isso me parece secundário;
3 - a história do "ombro do cão" foi, de facto, um pequeno desastre que o há-de perseguir para sempre... e é pena, porque tanto ele como o Camané (que embarcou, sem dar por nada, no disparate - e ele, mais do que ninguém, deveria conhecer o sentido exacto das palavras que canta) são bons de mais para terem de ser eternamente atazanados com isso;
4 - o JB é inteligente, escreve muito bem e, sim, é arrogante quanto baste: tudo qualidades que aprecio; claro que, por isso, inevitavelmente, à primeira (ou segunda ou terceira... minúsculas ou gigantescas, se todos procurarmos bem no CV, há sempre umas quantas) argolada, não falta quem esteja danadinho para se lhe atirar ao artelho (isto não é dirigido especialmente a ti, Leopardo);
5 - dito isto, não deixa de me intrigar esse rosário de "comentários eliminados pelo autor".
Os comentários eram meus João. Eram efeito de tequilla barata e como fugiam completamente ao tema - eram apenas filosofia geral - resolvi apagar (passado o efeito tequillero).
Não volto a fazer "spam" em caixas de comentários.
João, esclareça-se:
1. Não conheço o João Bonifácio
2. Não tenho nada contra a arrogância qb., nem sequer contra a arrogância tout court; como quase tudo, depende
3. Tenho uma certa dificuldade em lidar com essa expressão «escrever bem» mas posso perceber
3. Detesto piadolas, confesso
4. Dirás, sobre o concerto, mais ou menos o mesmo - com a diferença de que, no teu caso, não estamos a ler um texto «armado ao pingarelho», expressão que é muito diferente, já agora acrescente-se, de se ser arrogante
5. Confesso que começo a ficar farta da praga das graçolas
6. Pode-se ser desrespeitador à-vontade, sendo apenas preciso ter cabedal para isso
7. Os comentários apagados ficaram esclarecidos pelo Manuel. (Já agora, espero que fosse uma boa tequila)
Também eu sou amiga do João Bonifácio e gosto dele como de pouca gente, o que não me impede de não ter gostado puto de n coisas q ele escreveu nesse texto, a maioria delas já por ti assinaladas a bold no post. Nem é pelas graçolas porque eu gosto de graçolas, é por serem desinspiradas e não estarem blindadas a ambiguidades inconvenientes. De resto, o que ele escreve sobre o que aconteceu e sobre o nível do concerto é correcto e eu concordo. Concordo porque estive lá, vi, ouvi e é impossível não lamentarmos que aquela experiência divina não fosse íntegra.
O ombro. O ombro vai aparecer muitas vezes quando se quiser falar mal do que o JB escreve (justa e injustamente). É a diferença entre ter um CV actualizado quase diariamente perante todos, a arriscar a reputação e o ego e ser tesoureiro da fazenda pública.
A tequilla era boa até, da amarela. Já não bebia tequilla há um ano, foi para matar saudades, mas depois pus-me a ouvir e a ver a Nara Leão e fiquei deprimido.
Por falar em Nara leão, vejam este video com muita atenção:
http://www.youtube.com/watch?v=6Ok8rUHj16U&feature=related
(lá estou eu a fazer spam outra vez)
"Os comentários eram meus João"
Ok.
"Tenho uma certa dificuldade em lidar com essa expressão «escrever bem» mas posso perceber"
Eu sei... lol
Pelo que me toca - e subscrevo o que a menina alice disse -, assunto esclarecido.
A culpa é sempre dos tesoureiros da fazenda pública. Ou, em versão menos burilada, de contabilistas ou empregados bancários.
(Será também por isso que o Bonifácio está sempre a dizer que o Cohen é judeu? Alguém que explique, por favor)
A culpa é sempre dos tesoureiros da fazenda pública. Ou, em versão menos burilada, de contabilistas ou empregados bancários.
Explique-se, anónimo, explique-se, sff
«É a diferença entre ter um CV actualizado quase diariamente perante todos, a arriscar a reputação e o ego e ser tesoureiro da fazenda pública.»
Não sou tesoureiro da fazenda pública (ainda bem), mas sou funcionário público e posso-lhe garantir, menina-alice, que no trabalho que faço arrisco muito mais a minha reputação do que o João Bonifácio. Não tenho é tanta plateia.
João Lisboa:
Não acho que o João Bonifácio escreva assim tão bem, mas é apenas a minha opinião. Quanto a ser uma pessoa inteligente, acho que isso nunca foi posto em causa. Agora posso-lhe garantir que há uma diferença abissal entre o que o João escreve e a prosa do JB. Sempre considerei o JB uma espécie de Nuno Markl um bocadinho melhor e com a vantagem de ter bom gosto (musical, obviamente). No entanto, já começo a sentir-me culpado por tê-lo condenado por causa de um texto que escreveu sobre o Toumani Diabaté, mas são coisas que dificilmente se voltarão a repetir.
P.S. Dar a cara por um amigo só lhe enobrece o carácter.
"Sempre considerei o JB uma espécie de Nuno Markl um bocadinho melhor e com a vantagem de ter bom gosto (musical, obviamente)"
Isso é tremendamente injusto. E acredite que não o digo por ser amigo dele.
"Não sou tesoureiro da fazenda pública (ainda bem), mas sou funcionário público e posso-lhe garantir, menina-alice, que no trabalho que faço arrisco muito mais a minha reputação do que o João Bonifácio. Não tenho é tanta plateia."
Sem ironias e prenhe de ignorância e curiosidade, rui: o único cargo que me ocorreria onde arriscava tão intrepidamente a reputação, seria o de director-geral das finanças. Mas esse tem muito mais plateia que o JB.
E essa do "bom gosto" é mil vezes mais perigosa que a do "escreve bem".
«Isso é tremendamente injusto. E acredite que não o digo por ser amigo dele.»
Acredito que sim. Mas o que o JB escreve soa-me a demasiado forçado para parecer original e diferente. Dou-lhe como exemplos as críticas que publicou no último Ípsilon sobre o Al Green e o Beck (dois artistas de quem gosto). «Temos os mesmos orgãos Hammond a crepitar nas costas da voz de Green» ou «os mesmos metais com cheiro a pecado» parecem-me opções francamente infelizes para descrever algo tão óbvio. Mas suponho que tudo isto vai ser corrigido com o tempo (julgo que o JB ainda está muito verde nestas coisas da escrita musical). De qualquer modo apaguei o meu post sobre ele, porque, aí sim, estava a ser injusto e de uma forma tremenda com alguém que nem sequer conheço. E, como já disse, até gosto das opções musicais dele. Foi, por exemplo, o único crítico que já escreveu a elogiar o óptimo disco da Aimee Mann.
«rui: o único cargo que me ocorreria onde arriscava tão intrepidamente a reputação, seria o de director-geral das finanças. Mas esse tem muito mais plateia que o JB.
E essa do "bom gosto" é mil vezes mais perigosa que a do "escreve bem".»
Por acaso, nas finanças há mais quem arrisque coiro e cabelo desde que esteja disposto a trabalhar a sério. E quem, ao analisar indevidamente um processo de execução na sua fase final, ou seja na fase da venda, ponha em risco a vida de pessoas e isso parece-me bem mais sério do que escrever uns artigos no jornal. E também já é altura de dizer que o único crítico português de música popular com categoria para escrever em qualquer lugar do mundo é o JL. O resto, salvo uma ou duas excepções, escreve para umas 400 ou 500 pessoas, para alimentar o ego e pouco mais. Tenho quase a certeza que nem 5% dos leitores do Público lê a crítica musical.
Quanto à questão do bom gosto: deixa de ser perigosa quando falo de um ponto de vista estritamente pessoal. Bom gosto generalizado é que não.
P.S. Agora só falta perguntar-me como é que um tipo que trabalha nas finanças tem um blog onde escreve sobre música.
Os comentários deste blogue são a prova de que as conversas são mesmo como as cerejas.
Infelizmente, a conversa foi parar às finanças, um tema que me faz sentir sempre na pele de Josef K. e, meus amigos, isso é algo que eu não desejo nem aos meus (poucos) odiozinhos de estimação.
Quanto à questão do bom gosto, permitam-me citar, não George Steiner mas John Galliano: «Simplicity is a such a bore! Sometimes the real fun is in bad taste».
Não sei se vem a propósito, mas eu simplesmente adoro esta frase.
Mas que engraçado é traduzir «l'ombre de ton chien» por «sombra do teu cão» e se assim foi dado à estampa talvez se devesse também falar da total indiferença com que o erro, divertidíssimo mas grave e crasso para a reputação de quem o assina e o publica, passar pelos pingos da chuva como se nada fora. Que belos jornais temos! Que bons revisores, que extraordinários e atentos editores! Para além de um autor chamado Bonifácio, já a graça começa aqui, que dizem ser arrogante como é característica de quem dá de si, afroixa e pronto, a andar Violeta. A questão é de ignorância pura e dura e mesmo assim a armar ao pingarelho, claro. Eis Portugal no seu pior. Pequenino, choldra intelectual tudo encostadinho no quentinho da declaração de interesses e nós com isso? Tenham juízo que sois suficientemente crescidos e feios.
Joaquim Brando
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