18/11/08

A propósito de andarem por aí uns putos a lançar ovos e outros víveres a representantes do Estado

No meu tempo os estudantes não lançavam produtos comestíveis a ministros e secretários de estado. No meu tempo eram mais eles a levar com suspensões, expulsões e detenções e, sem querer puxar ao sentimento, com cargas da polícia. Eu própria fui suspensa por três dias, pelo desplante de ter sido colado um cartaz à entrada do meu liceu, convocando uma RGA. A escola paralisou por tão pouco e no dia seguinte fui levada à presença do reitor, não sem antes ter desfrutado dos meus fifteen minutes de fama – contados a partir da saída do comboio até à entrada no estabelecimento: «Foi ela! Foi ela! Foi ela!».
O reitor, com Tomás e Salazar (não me lembro do Caetano…) pairando omniscientes pelo austero gabinete, anunciou que ia chamar o meu pai. O meu pai tinha estado preso em Peniche e não simpatizava com nenhum dos retratados. Assim, o insolente à-vontade com que retorqui à autoridade: «Então, chame!» nada transpirava de heróico. O meu pai, quando eu lhe disse: «Fui suspensa!», disse: «Grande filha!». E abraçou-me.
Nem todos os finais se mostravam tão ditosos. Havia quem, devido às suspensões, perdesse o ano por faltas, e havia quem fosse logo para a rua sem castigos intercalares. Também havia prisões. Uma vez foram presos 150 de uma vez só, no Hospital Santa Maria. Eu, com a minha proverbial incapacidade para lidar com a british punctuality, atrasei-me. Quando, ofegante, lá vislumbrei Económicas, para onde fora marcada inicialmente a reunião, verifiquei ser muito tarde para ir a Medicina.
Não fui e não fui dentro, mas recordo muito bem os rapazes de cabelo rapado à escovinha, um corte que lhes fora gentilmente ofertado pelo barbeiro das caves do Governo Civil. As raparigas não denunciavam quaisquer sinais exteriores e muitos dos rapazes optaram por usar gorros na cabeça – estávamos no Inverno de 1973.
Não posso garantir que Bárcia, o nosso bufo exclusivo, tenha sido engavetado na altura. Julgo que sim. Era um sujeito curioso. Magro, alto, de orelhas caracteristicamente afastadas, usava gabardines à pide, indumentária à qual se referia de modo jocoso, sublinhando que parecia mesmo um. A carreira dele teve um final burlesco.
Já depois do 25 de Abril, a mãe contactou ex-colegas dizendo-lhes que, incompreensivelmente, o filho tinha sido detido. Apressámo-nos a acalmá-la, alvitrando que fora o caso de um engano: perante os documentos incriminatórios, que incluíam os nomes da estudantada escarrapachados em relatórios escritos de motu proprio, ainda hoje estou para saber se alguém teve coragem de telefonar à senhora.
Avistámo-lo depois, bastante mais tarde, à saída de um velório na Basílica da Estrela. Num mini a cair de podre, encetou-se uma perseguição ao Bárcia pelas ruas de Campo de Ourique, mas acabámos por lhe perder o rasto ali para os lados do Canas.
Éramos putos. Não lançávamos, industriados por obscuros «adversários da política educativa do Governo», produtos comestíveis a ministros e secretários de estado. Fazíamos outras coisas. E que não se me leve a mal a pergunta: o que fariam em jovens a digníssima ministra da educação e seus inefáveis secretários?

17/11/08

Podem-me chamar reaccionária mas eu gostei muito de ir à escola

Fui uma privilegiada e não vou pedir desculpa por isso. A partir dos cinco anos frequentei um colégio particular, ali para os lados de Belém. Conhecido pela "Escola do Senhor Gomes", na realidade, se a memória não me falha, chamava-se Externato do Rio Seco. Quanto ao Senhor Gomes, era um reformado da Marinha com ideias arejadas sobre educação. Para a época.
Apesar do colégio ser feminino e usarmos todas batas de folhos, a música e a ginástica eram obrigatórias, assim como as descidas ao laboratório, a partir da terceira classe, e as visitas de estudo, que incluíam invariavelmente os Jerónimos e os jardins da frente. Era vê-lo, já velho mas rijo de carnes, a mandar parar as viaturas para que deixassem passar as meninas! E as meninas lá passavam em filas de duas a duas e mãos obrigatoriamente dadas, em direcção à Fonte Luminosa que mudava de cor e era uma das atracções da pátria.
No colégio ― que hoje julgo albergar um condomínio ― , então uma casa senhorial com amplas cavalariças, adaptadas a salão de ginástica em dias de frio e chuva, e edifício principal, com pátio e entrada no alto de uma pequena escadaria de pedra, transformado num espaço despido de paredes onde se alojavam as quatro classes em open space, havia carteiras individuais de madeira com tampo inclinado para manter as costas direitas, tinteiro embutido e ranhura para colocar a caneta. Que era de aparo.
Só na quarta classe se permitia o uso de tinta permanente e as Bic já andava eu no liceu. Aprendíamos a escrever copiando abecedários góticos transparentes e a partir do segundo ano dar mais de três erros num ditado seria o correspondente, nos dias de hoje, a um diagnóstico precoce de dislexia (isto não foi assim há tanto tempo; os que me conhecem sabem que não sou do tempo da Guerra – refiro-me à segunda, evidentemente).
No laboratório, que ficava na cave do edifício principal e era um sítio cheio de mistérios e tubos de ensaio retorcidos onde o ar era escuro e cheirava a pó, lembro-me de ter aprendido a classificar as folhas segundo o respectivo recorte. Nunca mais me esqueci, vá-se la lá saber porquê, das lanceoladas.
Havia festas nas datas do costume. Decorriam numa sala com palco e cortina a sério na casa do director (lateral às cavalariças por cujo portão largo nós entravámos para o colégio) e constavam sempre de uma demonstração de canto coral acompanhado ao piano por uma senhora saída directamente de um filme já na altura muito antigo (eu como era da terceira voz desafinada e não conseguia atinar com o canon ficava sempre na fila de trás, em silêncio religioso, recompensada depois com a recitação individual de uma poesia – e ainda hoje me lembro da Balada da Neve por causa disso…), e de uma peça de teatro que normalmente me corria mal – ou porque o anjinho entrava em cena com uma das asas abalroadas ou porque os remendos no rabo das calças do pobrezinho apareciam a servir de joelheiras. Os pais das crianças riam muito e eu engasgava-me nas deixas.
Nunca levei reguadas. Minto. Houve uma altura em que levava reguadas regularmente, mas era eu própria quem as aplicava. Explico. O Senhor Gomes, que tinha umas ideias avançadas para a época (mesmo que não acreditem...), pusera em prática um exercício de memória. Reproduzia no quadro um desenho com vários elementos, deixava que o observássemos durante alguns minutos, apagava-o e depois mandava-nos executá-lo de cor. A professora da quarta classe, que não a minha, era a encarregue de zelar pelos resultados. Perversa e autoritária (qualidades transversais aos mais variados tipos de pedagogo...), aplicava uma reguada a quem falhasse no teste. A mim faltava-me sempre qualquer coisa. Talvez por isso, a dada altura desistiu de me bater. Apontava-me a régua com a cabeça, eu dirigia-me à secretária dela e desferia com o vigor, que era nulo, o invariável castigo. Até que houve um dia em que o Senhor Gomes acabou com aquilo.
Há anos que não pensava nele. E não é pelo que estarão a pensar.

16/11/08

Diário de um Mau Ano

Diário de um Mau Ano abre com o ensaio «Sobre as Origens do Estado» e só depois, lá para o fim da página, demarcada por um pontilhado, nos apercebemos de uma outra mancha de texto, mais pequena, que começa assim: O primeiro relance que dela tive ocorreu na lavandaria.
Os dois textos vão correndo (literalmente) paralelos, até que, chegados à página 34, de dois planos passa-se a três, introduzindo-se aí uma nova narrativa que dá voz a uma mulher: Quando passo por ele, com o cesto da roupa suja, tenho o cuidado de rebolar o traseiro, o meu delicioso traseiro, envolvido na ganga justa.
Pode parecer confuso, mas trata-se, tão-só, de uma estratégia de composição que o leitor contornará, se preferir (talvez não tenha, pelo menos à primeira, outra possibilidade…), lendo cada narrativa autonomamente (William Faulkner ensaiara uma experiência semelhante intercalando as páginas das novelas Palmeiras Bravas e Rio Velho, e o próprio Coetzee já tentara construções menos ortodoxas, por exemplo, em No Coração desta Terra).
A estrutura e os protagonistas expõem-se sem dificuldade. Um velho escritor solitário retirado na Austrália é convidado, por um editor alemão, a pronunciar-se, tanto melhor se de forma controversa, sobre os temas que entender, incluindo aquilo que considera ir de mal a pior no mundo; existe Anya, a jovem australiana de origem filipina que ele avista na lavandaria, e que acabará por aceitar ser sua secretária (lembramo-nos de Roth, naturalmente), e há ainda Alan, o ambicioso gestor de contas e companheiro dela, o cínico de serviço que, dados os seus poucos escrúpulos, serve de contraditório aos valores morais do escritor. Temos assim, num primeiro plano, os ensaios (Coetzee, indiscutivelmente himself), num segundo plano, a relação entre Anya e o velho romancista narrada pelo próprio e, finalmente, a mesma realidade vista pelo olhos de Anya.
Os temas ensaísticos são abordados, também eles, de maneiras distintas. Num primeiro momento, organizado sob o título «Opiniões Fortes», expõem-se assuntos tão diversos como o Estado segundo Hobbes, a liberdade individual, o racismo, a Al-Qaeda, Tony Blair, Harold Pinter e o filósofo grego Zenão, a política na Austrália, a esquerda e a direita, o criacionismo, os direitos dos animais, a pedofília, etc. Mais à frente, no «Segundo Diário», a reflexão torna-se mais pessoal e debruça-se sobre o pai, a morte, o erotismo, os clássicos, a música ou o envelhecimento, para acabar com um texto sobre Dostoievski e a ética da literatura. Ao longo destes dois registos, a escrita vai ganhando tonalidades mais sombrias, ao mesmo tempo que, nas outras duas narrativas (a do escritor e a de Anya) o encontro entre os dois se aproxima do final. E no final, mais perto da morte, é já só Anya que fala, o escritor silenciado, mesmo no texto cuja autoria não é dela, e que termina com a transcrição de uma carta sua ao Señor C, o nome pelo qual sempre tratara o seu patrão temporário.
Escrito e construído como uma partitura musical, Diário de Um Mau Ano vai entrelaçando os seus vários níveis, sobretudo através dos comentários de Anya às reflexões do escritor, numa espécie de contraponto esperançoso ao desencanto que adivinhamos de Coetzee (e que a personagem de Alan parece existir para confirmar). Com grande mestria, o Nobel sul-africano mostra-se mais uma vez capaz de nos dar a ouvir diferentes timbres de voz e, se alguma desafinada, a dele: “Precisa-se: Guru idoso. Deve ter uma vida inteira de experiência, palavras sábias para todas as ocasiões. Condição de preferência uma longa barba branca.” Porque não hei-de tentar a minha sorte? (…). Não me tornei propriamente uma celebridade como romancista; vejamos se me celebrizam como guru».
Dispensado o guru e concordando-se ou não com (todas) as «ideias fortes» expressas em Diário de Um Mau Ano, certo é que se trata de um romance que merece celebração (apesar de manchado aqui ou ali por uma revisão menos cuidada – Dicionário das Ideias Feitas de Flaubert não se chama Dicionário das Ideias Recebidas, só para dar um exemplo).
Diário de Um Mau Ano, J.M.Coetzee, 2008, Dom Quixote

14/11/08

A book a day keeps the doctor away

A crítica está para a arte como o bufo está para o soldado; e o que se segue não é, naturalmente, uma crítica. A primeira proposição roubei-a grosseiramente a Gustave Flaubert (1821-1880) ― «On fait de la critique quand on ne peut pas faire de l'art, de même qu'on se met mouchard quand on ne peut pas être soldat» ―, a segunda serve de justificação a esta curta nota: porque acaba de ser reeditado A Educação Sentimental, um daqueles livros obrigatórios se fosse o caso de embarcarmos para uma ilha.
Assinado pelo maníaco do «mot juste», dessa obra diria Eça de Queiroz: «Na Educação Sentimental, [Flaubert] concebe esta ideia de génio: pintar numa larga acção a fraqueza dos caracteres contemporâneos amolecidos pelo romantismo, pelo vago dissolvente das concepções filosóficas, pela falta de um princípio seguro que, penetrando a totalidade das consciências, dirija as acções; e explicar por esta efeminação das almas todas as instabilidades da nossa vida social, a desorganização do mundo moral, a indiferença e o egoísmo das naturezas, a decadência das classes médias, a dificuldade de governar a democracia...». É uma leitura de época que se mantém justíssima.
Num registo que oscila entre o lirismo e a mais pura paródia, com a paixão do jovem Frédéric Moreau por Madame Arnoux (reedição do próprio amor do jovem Flaubert por Élisa Foucault) a servir de pano de fundo a um retrato ultra-realista da época, A Educação Sentimental trata não só das ilusões amorosas, mas também das ilusões políticas. Deixando aquele lastro de desencanto intemporal que Flaubert sempre soube subtrair a todo o sentimentalismo.
A Educação Sentimental, Gustave Flaubert, Relógio D’Água, 2008, trad. de João Costa [o romance pode ser lido no original a partir daqui]

13/11/08

E ninguém os interna...

Escusado será dizer que se isto fosse no tempo do Teatro de Revista daria origem a várias piadas brejeiras.
É um documento notável e maravilhoso. De acordo com uma directiva da Comissão Europeia, espécies hortícolas e frutícolas, como damascos, espargos, beringelas, feijões, couve-de-bruxelas, cenouras, couve-flor, cerejas, pepinos, alhos, repolhos, melões, cebolas, ou espinafres poderão passar, finalmente, ser vendidos em formatos «deformados». Já outras espécies, malévolas, irregulares e desobedientes, como maçãs, kiwis, alfaces, pêssegos, morangos e tomates terão de se apresentar com os tamanhos que a comissão define no gabinete. Segundo a comissária da agricultura «esta decisão marca o início de uma nova era para os pepinos curvos e as cenouras nodosas». Os nossos quintais rejubilam, eufóricos, ao verem que Bruxelas continua a meter os legumes na ordem. E os cidadãos festejam por não lhes alterarem o calibre dos tomates.
Chamo ainda a atenção para esta notícia: «O Banco Alimentar de Luta contra a Fome esteve impedido este ano de distribuir frutas e legumes a quem recorre aos seus serviços para poder comer porque não está autorizado a distribuir frutas e legumes que não cumpram os parâmetros de tamanho e cor impostos pela União Europeia.»
Informação recebida por e-mail. Obrigada Francisco.

12/11/08

Amy Winehouse: Who the Fuck Is Marco Perego?


Amy Winehouse, Teach me tonight


Amy Winehouse, Back To Black

No último Rock in Rio de Lisboa, a minha filha mais velha abandonou o concerto de Amy Winehouse, segundo ela porque «aquela gente toda a assistir ao vivo a uma pessoa a desfazer-se em palco era um espectáculo insuportável». Hoje chegou a casa baralhada por esta notícia que dá conta de uma escultura da artista morta no meio de um banho de sangue. Ou seja, há por aí muito parasita medíocre que confunde arte com antropofagia.

11/11/08

O caso Joana Varela: porque um despedimento é um despedimento mesmo quando se dá em ambiente sofisticado e com vista para o jardim

Fui há uns dias surpreendida pela notícia. Joana Varela, directora da Colóquio Letras, revista editada pela Gulbenkian desde 1971 (e disponível online desde Maio), foi dispensada do cargo de directora e convidada a participar num futuro Conselho Editorial. Considerando o «convite» uma despromoção, não aceitou.
Depois de 25 anos a trabalhar na Fundação foi ameaçada com um processo disciplinar.
«[...] fui convidada ontem a mais uma despromoção pelo administrador Marçal Grilo, [...] antigo ministro da Educação [...] a pertencer a um futuro Conselho Editorial de uma futura revista da Fundação, a dirigir certamente por alguém mais do seu agrado e menos incómodo. [...] Não aceitei a “oferta” do ex-ministro da educação e fui convidada a sair do seu gabinete, depois de ser ameaçada com um processo disciplinar.»
Depois da ameaça, seguiu-se o processo propriamente dito:
«No dia 6 de Novembro de 2008, a Administração da Fundação Calouste Gulbenkian tomou conhecimento que, nesse mesmo dia, a Sra. Dra. Joana Morais Varela, Directora da Revista Colóquio Letras, enviou uma comunicação a todos os trabalhadores da Fundação, ao próprio Conselho de Administração e aos colaboradores externos e consultores da Instituição.
Essa comunicação contém diversas afirmações e expressões de carácter injurioso, dirigidas aos diferentes membros da Administração [...] Dado que este comportamento representa uma grave infracção disciplinar, a Administração da Fundação não pode permitir que o mesmo deixe de ter as inevitáveis consequências, sendo assim forçada a determinar a abertura do competente processo disciplinar [...] com vista à aplicação da sanção que se mostrar adequada e na qual desde já se declara incluir-se o despedimento com justa causa.
Para instrutor do processo é nomeado o Sr. Dr. Pedro Furtado Martins, advogado [...]
[...] A circunstância de a infracção disciplinar ter sido praticada de modo reiterado [...] aliada ao facto de não ter sido materialmente possível elaborar de imediato a nota de culpa, justificam ainda que, desde já, se determine, nos termos e para os efeitos do artigo 417.º do Código do Trabalho, a suspensão preventiva da Sra. Dra. Joana Morais Varela, sem perda de retribuição e das demais condições inerentes ao exercício das suas funções.»
Agora a coisa corre e Joana Varela poderá, ou não, vir a ser despedida: a Fundação Gulbenkian já perdeu.

08/11/08

Da série já comecámos a votar nas plantas: «Magalhães» ou do que acontece à política quando entregue a vendedores de banha da cobra

Fico indignado com a estória do «Magalhães» ser «totalmente concebido e produzido em Portugal», como dizia o nosso Primeiro Ministro (PM) na recente Cimeira Ibero-Americana. Sinceramente não percebo esta atitude. Não faz nenhum sentido. Não promove Portugal, não ajuda na atitude que temos de adoptar para melhorar a competitividade e a produtividade e não resolve nada relativo à nossa imagem externa.
O «Magalhães» é um CLASSMATE da Intel. Basta ver o site, na secção de vídeos, para ver a versão da Tailândia, Nigéria e Brasil.
Talvez o «Magalhães» seja um bom negócio,
algo que até justificasse o envolvimento do governo para trazer a produção para Portugal. Porque não? Talvez isso seja interessante, não sei se é. Poderia envolver a indústria de moldes e dos plásticos, anunciando uma parceria com a Intel para co-produzir um computador para o mercado estudantil. E até poderia envolver a indústria nacional do software, para produzir conteúdos em português, etc. E aí o PM dizia que, no quadro da política governativa para a educação, queriam introduzir um PC portátil no 1º ciclo e decidiram fazer uma parceria com a Intel, que envolvia a indústria nacional na produção da caixa e assim conseguiria um produto que interessava ao país e até poderia ser exportado. Ok! Discordo da estória do portátil no 1º ciclo (ver «Livros e Magalhães»). Mas é o governo que tem de governar, foi eleito para isso. É uma opção que terão de justificar, mas é legítimo que a tomem.
Mas para quê inventar e esconder a verdade? De que vale? Para que serve? Ou melhor, a quem serve?
O «Magalhães» é uma cópia. O vídeo seguinte mostra a evolução do ClassMate, onde se pode ver a versão que agora o nosso PM diz ser «totalmente concebida em Portugal», e que decidiram chamar «Magalhães»:



Também se faz o crash-test neste vídeo. Mas no «Magalhães», segundo o nosso PM, o crash-test foi feito pelo «Presidente Chavez».

Para completar vejam esta apresentação PowerPoint feita pelo responsável do Plano Tecnológico numa conferência organizada pela União Europeia: «Portugal as a living LAB», diz ele..., onde o «Magalhães» já não é totalmente concebido em Portugal, mas antes «Made in Portugal based on the Intel ClassMate platform». Ok, está mais próximo da verdade, mas também era o que faltava dizer aquilo do «totalmente concebido em Portugal» numa conferência europeia (o que diz tudo sobre o respeito que o PM demonstrou pelos nossos parceiros ibero-americanos). Mas isso não é um laboratório, senhor coordenador. É uma fábrica onde se monta uma coisa que já existia: não está errado, mas é o que é. Portanto, queria dizer: Portugal as a living factory (chinese like?)...
Irritam-me estas coisas. Portugal tem coisas muito interessantes, que resultam de projectos em consórcio entre instituições de I&D e empresas, ou de I&D feito em empresas, ou de spin-offs universitárias, etc. Coisas relevantes, que mostram a nossa capacidade de inovar e ter sucesso. É nisso que tem de ser colocado o nosso esforço de promoção, para que mais empresas apostem em I&D, para que apareçam mais empresas resultantes de I&D feito em Universidades e centros de investigação, para que o país surja de uma vez por todas como um país que é capaz de se reinventar e ter sucesso com base justamente na capacidade dos seus cidadãos. Em colaboração (em rede) com o mundo, porque nada se faz isolado.
Como exemplo de algo verdadeiramente concebido em Portugal, com inteligência portuguesa, que dá cartas no competitivo mundo das comunicações para PME, vejam a EdgeBox da Critical-Links:



A Critical Links é uma spin-off da Critical Software, uma empresa portuguesa, nascida em Coimbra, e hoje um player mundial em várias áreas onde o conhecimento e a capacidade de inovação são a mais preciosa vantagem competitiva no mercado global.
Um produto que «está à frente», como diz João Carreira (CEO da Critical-Links e um dos co-fundadores da Critical-Software), e que a própria Intel (que concebeu o Classmate, denominado «Magalhães» em Portugal) classificou como «história de sucesso».
A EdgeBox é só um exemplo. Podia falar de centenas de empresas e produtos, esses sim «concebidos em Portugal» para o mundo.
Portugal tem de apostar na indústria baseada no conhecimento, na capacidade de adicionar valor aos produtos que aqui fazemos, na capacidade de criar novos produtos, na capacidade de gerir melhor, organizar melhor... São esses bons exemplos que devemos promover. Para que se multipliquem. Os trabalhadores portugueses quando colocados em ambientes mais organizados, produzem mais e são elogiados. É necessário que o façam também em Portugal. Só assim seremos competitivos e seremos capazes da revolução tranquila que constitui a aposta na inteligência.
É nisso que temos de colocar o nosso foco. Eu diria que o nosso futuro depende disso.
Post de J. Norberto Pires, professor de Engenharia Mecânica da Universidade de Coimbra e CEO da Coimbra Inovação, gamado daqui (os sublinhados são meus).

06/11/08

Obras-primas

William S. Burroughs dizia que a linguagem é um vírus vindo do espaço; para uma católica como Flannery O’Connor seria certamente um «vírus» vindo de Deus. E assim a lemos, mesmo que não nos toque a fé: indiscutível é que ela escreve em estado de graça.
O Céu É dos Violentos é um livro perfeito. Segundo e último de uma bibliografia curta e precocemente interrompida aos 39 anos – quando a escritora morre na sequência de lúpus –, foi editado pela primeira vez em 1960. Anterior, apenas o romance Sangue Sábio (1955), a que se somam as colectâneas de contos Um Bom Homem É Difícil de Encontrar (1955) e, editado já postumamente, Tudo o que Sobe Deve Convergir (1965).
«E desde os dias de João, o Baptista, até agora, o reino dos céus sofre violência, e os violentos o tomam à força»: a citação, retirada de Mateus 11:12, subjaz ao título e introduz-nos na atmosfera do texto, que começa com uma morte natural e termina com um incêndio redentor: porque o que nos destrói será também o que nos pode salvar.
Francis Tarwater, o protagonista, é um órfão de 14 anos que vive isolado do mundo com o tio-avô Mason Tarwater. Este, um fanático religioso, raptara-o ainda criança de casa do tio Rayber, homem de cultura secular e racionalista, na esperança de fazer dele um profeta. Quando Mason morre, logo na primeira linha do primeiro capítulo, o jovem decide partir para a cidade à procura do tio, que, entretanto, se tornara pai de uma criança deficiente mental, Bishop, cujo baptismo é uma obsessão para Francis.
Soterrado pelo peso das profecias com que o velho Mason lhe enchera a cabeça e o coração, o órfão dispõe-se a enfrentá-las e, negando-as, a libertar-se e autonomizar-se; contudo, ironicamente, cada passo em frente no sentido da libertação como que se transforma na ratificação do destino a que deseja fugir. Entre a histeria religiosa de Mason e a descrença atávica de Rayber, escolherá trilhar o caminho mais duro, o da água e do fogo, ambos os elementos implicando morte – a de um inocente e a do seu passado.
Brilhante na construção, que nos deixa suspensos no desenrolar da trama; incisivo no retrato das personagens, que se desnudam à nossa frente oferecendo-se como que em movimento sacrificial; virtuoso na linguagem, cuja carnalidade nos obriga a olhar de frente, tanto o real como o seu mistério, O Céu É dos Violentos é uma obra-prima que nos chega dos lados de Faulkner e Poe. Ou seja, não é literatura para copinhos de leite.

05/11/08

The game is over

Barack Obama (n.1961), é o 44º presidente dos EUA. Entra em funções a 20 de Janeiro de 2009. Até lá continuamos a levar com o Bush júnior.

04/11/08

Obama versus McCain: resultados a sério só lá mais pela madrugada

Entretanto, se clicar aqui, prometem-nos notícias ao minuto.

Eu percebo que seja mais fácil impingir «Magalhães» a info-ignorantes do que supervisionar bancos geridos por sofisticados cérebros, mas...


«(...) neste charco actual onde se vive, surge agora esse paradigmático "boy" do regime, de nome Victor Constâncio, impunemente e com o maior dos atrevimentos, a lavar as mãos enquanto autoridade de supervisão bancária da situação de bancarrota a que chegou o BPN. Este galhardo funcionário do Banco de Portugal, adornado de títulos académicos mas com um péssimo desempenho profissional no seu trabalho de supervisor, deveria tirar as ilações do seu (mau) trabalho, que é pago à custa dos contribuintes, e demitir-se. A sua avaliação de desempenho é manifestamente negativa.»
Roubado com todo o respeito aqui.

03/11/08

A propósito da excelência dos nossos políticos: em Portugal já começámos a votar nas plantas

1. O líder do PS e primeiro-ministro José Sócrates durante uma sessão de demonstração da Bimby ― perdão, Magalhães ― em San Salvador: «Os meus assessores usam diariamente o Magalhães e não precisam de mais nada».
2. A líder do PSD e, presume-se, candidata a primeiro-ministro Manuela Ferreira Leite sobre as obras públicas e o combate ao desemprego: «(...) de Cabo Verde [e] da Ucrânia, isso ajudam. Ao desemprego de Portugal, duvido»
3. O humorista Lewis Black sobre as qualidades evolutivas dos políticos: «In my lifetime, we've gone from Eisenhower to George W. Bush. We've gone from John F. Kennedy to Al Gore. If this is evolution, I believe that in twelve years, we'll be voting for plants»
Ou seja, sou mesmo eu.

02/11/08

O embaixador João Hall Themido é um tonto, para usar uma expressão diplomática

Publica o Expresso deste fim-de-semana um artigo sobre o livro do embaixador João Hall Themido, acabado de editar pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros; João Hall Themido é aí descrito como um «dos diplomatas portugueses com maior currículo» e Uma Autobiografia Disfarçada como tendo sido esgalhado num «registo crítico, mas também humorado».
Segue-se depois a transcrição de alguns excertos, um dos quais evoca Aristides Sousa Mendes, o cônsul português em Bordéus que, desobedecendo a Salazar, salvou a vida a milhares de refugiados judeus cujo destino, não tivesse ele arriscado a carreira nesse gesto, teria sido a câmara de gás.
Passo a citar o Expresso: um «dos capítulos, porventura o mais polémico [e sublinho eu o advérbio porventura], chama-se "A mitificação de Aristides de Sousa Mendes". O embaixador acusa o cônsul de "actuação irregular". "De forma totalmente irrealista, fala-se em 30 mil" o número de vistos "concedidos em apenas alguns poucos dias pelo cônsul e seus familiares, de forma cega, no consulado e até nos cafés da vizinhança". Themido sublinha "a necessidade de manter disciplina nos serviços que de forma directa ou indirecta pudessem, com a sua actuação, afectar o estatuto de neutralidade" do país. Para o embaixador, Aristides foi um "mito criado por judeus e pelas forças democráticas saídas do 25 de Abril". E mais à frente: "quando a família" do cônsul, "grupos judaicos e forças da esquerda ressuscitaram o assunto, procurei saber mais sobre o ocorrido". Observa que Aristides apenas "pertencia à carreira consular, considerada carreira menor em relação à carreira diplomática". Por outro lado, o processo disciplinar ao cônsul em Bordéus "foi o último de vários de que foi alvo ao longo da carreira, quase sempre por abandono do posto ou concussão". Nota que a maioria dos processos "desapareceu misteriosamente" do MNE e que o de Bordéus está "incompleto". Assim, considera "incompreensível criticar" o Ministério, "incluindo o ministro, por ter aplicado a lei nas circunstâncias da época"».
Deixando de lado o «fala-se em 30 mil», «forma cega», «neutralidade», «circunstâncias», «carreira menor» e etc., concluo que para este senhor quando se trata de escolher entre salvar uma(s) vida(s) ou a «disciplina dos serviços» e a sua regularidade, não há nunca que hesitar: opte-se pelas últimas! Perante tão miserável juízo é natural que a loucura compassiva de Aristides Sousa Mendes lhe seja incompreensível. Porque é preciso possuir alguma nobreza em si para entender um gesto nobre.
A Hall Themido assentar-lhe-á antes como uma luva a frase com que define a princesa Diana de Gales: «Escondido por detrás de um sorriso estereotipado, pareceu estar uma pessoa fria e sem interesse». A mim nem me parece, tenho a certeza.

31/10/08

Eu sei que uma senhora não fala de dinheiro, mas por uma vez...

Veio o digníssimo presidente da Associação Nacional das Pequenas e Médias Empresas, Augusto Morais de sua graça, pronunciar-se sobre a subida anunciada do salário mínimo em 24 euros mensais (esclareço: é de 426 euros, será de 450). Considerando a medida incomportável para os sócios da ANPMES, o augusto-cassandra-presidente profetiza que o aumento do salário minímo terá como resultado... o aumento do número de beneficiários do fundo de desemprego. E porquê? Porque Augusto Morais, himself, irá dar instruções precisas aos seus correligionários para que, no entretanto, não renovem os contratos de trabalho a termo.
Face a tão expedita solução, 3 palavrinhas apenas (e sim, eu sei que uma senhora não fala de dinheiro...):
1. Quanto será que aufere mensalmente o dito Senhor Augusto?
2. Como é que, despedindo os trabalhadores, os sócios da ANPMES vão conseguir manter as empresas? (Passam os próprios a trabalhadores? Mas nesse caso quem lhes paga o novo salário mínimo se, enquanto sócios da ANPMES, eles são contra o novo salário mínimo?)
3. Um gajo que não tem 24 euros no bolso para aumentar um empregado não deveria desistir da carreira de empresário e tentar antes o fundo de desemprego?

28/10/08

José Cardoso Pires (2-10-1925/26-10-1998)

«(...) O largo. (Aqui me apareceu pela primeira vez o Engenheiro, anunciado por dois cães.) O largo:
Visto da janela onde me encontro, é um terreiro nu, todo valas e pó. Grande de mais para a aldeia – é facto, grande de mais. E inútil, dir-se-á. Pois, também isso. Inútil, sem sentido, porque raramente alguém o procura apesar de estar onde está, à beira da estrada e em pleno coração da comunidade. Tal como um prado de cardos, mostra-se agressivo, só domável ao tempo; e se não pica repele, servindo-se das covas, dos regos das chuvas ou da poeirada dos estios. Um largo, aquilo a que verdadeiramente se chama largo, terra batida, tem de ser calcado por alguma coisa, pés humanos, trânsito, o que for, ao passo que este aqui, salvo nas horas da missa, é percorrido unicamente pelo espectro do enorme paredão de granito que se levanta nas traseiras da sacristia. Diariamente, ano após ano, século após século, essa muralha, mal o sol se firma, envia a sua sombra para o terreiro, arrastando uma outra, a da igreja. Leva-a envolvida, viaja com ela pelo deserto de buracos e de pó, cobre o chão, arrefece-o, e ao meio-dia recolhe-se, expulsa pelo sol a pino. Mas a tarde é dela. À tarde a sombra recomeça a invasão, crescendo à medida que a luz enfraquece. Tão escura, observe-se, tão carregada de hora para hora, que parece uma mensagem antecipada da noite; ou, se preferirem, uma insinuação de trevas posta a circular pela muralha em pleno dia para tornar o largo mais só, deixando-o entregue aos vermes que o minam. (...)»
José Cardoso Pires, O Delfim, 1968