
Epifania que se desenrola sem alarde sob o olhar pasmado e interrogativo do pequeno Tukie, a criança que une as narrativas, símbolo de uma inocência que se deixa fascinar — e consigo nos fascina — pelas mutações inesperadas que tomam conta do seu universo: javalis que riem, águias que podiam ser bombas, gatos que ressuscitam, lebres que enganam tolos, texugos que parecem cães…
“O Sorriso Enigmático do Javali” é um livro que nos recorda a frase de Sagan, “somos filhos das estrelas”, reconciliando-nos com uma natureza cada vez mais distante, mas que pulsa ainda na “Herdade do Convento” onde Tukie tem a felicidade de poder viver com o pai, a mãe e uma irmã bebé.
Narrativa em redondo, na qual cada episódio se fecha num anticlímax que dá lugar a outro, o mais recente livro de António Manuel Venda soube furtar-se com inteligência às fantasias de efeito fácil e às pedagogias de fácil efeito (um reparo: seriam dispensáveis as incursões políticas cujas mensagens, na minha opinião, apenas poluem o texto). O livro vai-se desenrolando como se nada acontecesse — a acção é sem efeitos especiais, com excepção, talvez, do deputado a quem faltava um bocado de cabeça — e, ainda assim, permite-nos descobrir um mundo febril e imprevisível que se agita sob a aparente calma. A escrita de António Manuel Venda acompanha-o sem alarde, usando-a o escritor com recato e parcimónia, sem nunca se pôr em bicos de pés, o que com certeza afugentaria os elementos que compõem o livro, a exigirem silêncio e discrição.
O Sorriso Enigmático do Javali, António Manuel Venda, Quetzal, 2010
2 comentários:
Sou fã do António Manuel Venda (o ir apresentar o livro é apenas uma casualidade).
Belo texto!
cumplicidades algarvias?
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