30/11/08

Continuação das memórias na alcova: da vez em que a minha mãe foi jantar à António Maria Cardoso e conheceu o Sacchetti

Em minha casa foi tudo preso pelo menos uma vez. A qualidade das estadias na cadeia variou muito, com o meu pai a bater o recorde de mais ou menos três anos entre os Fortes de Caxias e Peniche – o de Peniche, consideravelmente mais húmido.
A história que quero contar diz respeito à minha mãe.
A minha mãe foi levada para onde andam agora a construir um condomínio de luxo com vista, ouvi dizer, sobre um marco de suplícios, em dia muito fácil de fixar. Foi no dia em que o Oliveira bateu asas e voou, apesar de na altura a Coca-Cola estar proibida e ninguém ainda ter inventado o Red Bull. A minha mãe trabalhava então numa editora anti-regime, a «Seara Nova», que a ânsia pelo poder (absoluto) do PCP haveria de levar à falência no pós-25 de Abril. Oficialmente, ninguém sabia que o ditador já tinha ido para os anjinhos. Mas a malta não era parva e também tinha informadores. Alguém chegou à «Seara...» com a notícia fresquinha, testemunhada em presença pela equipa que tratava Salazar desde que ele falhara a cadeira. Transposto o cepticismo que o homem parecia eterno, bateram-se palmas e gritou-se Hurra! Hurra! (esta parte do Hurra! Hurra! sou eu agora a inventar). A minha mãe dirigiu-se ao telefone e telefonou ao meu pai (que já não era hóspede em Peniche): «Prepara uma garrafa de champanhe, hoje temos que comemorar!». No meio da excitação, uma colega, quase tropeçando nos fios, arranca-lhe o bocal do ouvido e acrescenta: «Acabaram as filmagens do “Solar das Oliveiras”. À noite há festa!». E pronto, o meu pai correu à Baixa a comprar uma gravata vermelha. Não chegou a haver arraial. Passado pouco mais de meia hora, a «Seara...» é invadida por agentes da polícia política que solicitam – sem grandes faz favor ou por obséquio – que a minha mãe e a amiga os acompanhem à sede. Os nomes coincidiam rigorosamente com as vozes sob escuta, e acabam as duas nas instalações da PIDE ao Chiado. Verdade seja dita que lhes serviram jantar. A minha mãe, sempre desconfiada, recusou educadamente o repasto «não fosse aquilo ter para lá alguma droga!». A amiga, alentejana folgazona que hoje seria catalogada de obesa, comeu e apenas não repetiu porque não quis abusar de tamanha hospitalidade. A minha mãe trejurou um evento sentimental para justificar o champanhe. A amiga disse que sofria de amnésia e que não se lembrava sequer da última vez que tinha ido ao cinema. Entretanto a minha mãe devia estar com uma fome dos diabos, e foi quando deu entrada em cena o sempre impecável subdirector Sacchetti (ainda vivinho da costa, pelo menos na Primavera estava, e com contactos telefónicos à distância de um só clique) que se lhe dirigiu com a costumada eloquência: «A senhora não tem vergonha! Ainda agora saiu de cá o marido e nem isso lhe serviu de lição!». Agit-prop e lições de moral à parte, quem lhes passou a carta de alforria foi ele, não sem antes invocar repetidamente o sagrado nome do falecido, esse «grande homem de quem já sentimos saudades!».
À porta da António Maria Cardoso esperava-as o meu pai, um pequeno saco na mão. Dentro não havia champanhe. Convencido que a madrugada seria longa para a mulher, juntara à pressa algumas mudas de roupa e julgo que uma escova de dentes. Usava a gravata vermelha, o que a minha mãe considerou certamente um repto desnecessário. Depois a amiga disse que nem se comera assim tão mal e foram comemorar na mesma. Isto agora contado tem graça mas na altura imagino.

28/11/08

A prova que um bom escritor também pode ser um idiota

Se me perguntassem por nomes de escritores, Jorge Luis Borges estaria entre os primeiros. Lembro-me, aliás, de abandonar a conferência que ele deu há uns anos na Faculdade de Letras, incomodada até ao vómito com a feira de vaidosos que, tomando a palavra para simular perguntas, esqueciam que tinham pela frente um génio (e eu não sou nada de ver génios a cada esquina...). Lembro-me também de uma entrevista brilhante que lhe foi feita pela Lourdes Féria, salvo erro para o Diário de Lisboa, e lembro-me dela me contar os meandros da conversa.
Lourdes Féria tinha ido a Madrid entrevistar Mick Jagger. Acontece que os Rolling Stones se tinham fechado em copas. Por uma daquelas coincidências que nem a Vila-Matas ocorreria, Lourdes soube que Borges estava hospedado no mesmo hotel do que ela. Foi tentar a sorte e bateu-lhe à porta. E Borges falou. Sobre tudo. Até sobre os Rolling Stones.

Lembrei-me disto a propósito destas declarações de V. S. Naipaul (de quem foi há pouco publicada uma biografia). Disse ele sobre o escritor argentino: Não sou nada como Borges. Acho que Borges é um escritor muito limitado (...). E era cego, claro. Eu não sou cego. Faz uma grande diferença, porque o homem cego vive internamente, enquanto eu sempre vivi com o mundo que vejo, que conheço (o que me recordou uma entrevista que fiz ao Luís Sepúlveda onde o chileno afirmou, do alto da sua mediocridade, que afinal Borges não merecia o Nobel porque escrevia sempre o mesmo livro).
Agora se me encostassem uma pistola à cabeça e me obrigassem a escolher ― ou o mundo sado-masoquista de um ou o imaginário luminoso do outro ― eu sei bem o que escolheria. A Borges, o cego, bastava-lhe ter escrito estes versos. Definitivos.
Yo, que tantos hombres he sido/ no he sido nunca/ aquel en cuyo abrazo desfallecía Matilde Urbach.

27/11/08

Em louvor das modas & bordados: porque há outros assuntos menos fúteis do que a política que também merecem o meu interese

A ex-comunista Miuccia Prada foi absolutamente franca acerca do assunto: Não acredito em pessoas que dizem que roupa não é importante. Perante este quase jacobinismo, e ainda que certos argumentos de autoridade possuam a solidez de uma casca de banana, não resisto a invocar em defesa da signora Prada a arte certeira de Twain: Clothes make the man. Naked people have little or no influence in society.
Pretende o anterior parágrafo introduzir o tema. E o tema é: será a moda um capítulo essencial da ditadura imagética? Para tentar responder, três interrogações prévias en passant. O que é moda? O que é ditadura? O que é imagem?
Segundo a proverbial definição de Jean Cocteau,
la mode, c’est ce qui se démode, o que concorda em absoluto com a máxima de Coco Chanel: A moda passa, o estilo permanece. O que é ditadura? Essa parece fácil. Mais coisa menos coisa, resume-se a um quadro de pensamento único (segundo os seus acólitos tendencialmente ad aeternum…) em que alguém manda e eu obedeço. Imagem? Conceito de contornos menos claros, talvez nos baste entendê-la como a representação visual de um objecto ou de uma ideia.
Chegados aqui, estrebucha um pouco o juízo de que a moda serve a ditadura da imagem. Desde logo, porque aquela é na essência efémera e toda e qualquer ditadura anseia por imitar a Toyota: Vem para Ficar (cito um slogan português de 1969 que gozou de considerável sucesso ― a prova é que até eu me lembro dele). Depois, porque as imagens de moda são cada vez mais plurais; fenómeno que tem, aliás, fácil justificação: se há algo que não casa com a moda é o modelo uniforme, que sucede ser o fardamento dilecto dos ditadores das mais variadas tendências. Ou como colateralmente se escreve em História da Beleza, obra colectiva dirigida por Umberto Eco: Os media já não apresentam um ideal único de beleza. Os meios de comunicação tanto propõem a opulência de Mae West como a graça anoréxica das últimas modelos; a beleza negra de Naomi Campbell e a nórdica de Claudia Schiffer; a mulher fatal e a rapariga frágil ao estilo de Julia Roberts. O nosso viajante do futuro já não poderá diferenciar o ideal estético difundido pelos media. Será obrigado a render-se perante a orgia de tolerância, de sincretismo total, de absoluto e irrefreável politeísmo (…). De onde virá, então, a crença generalizada de que a moda é um factor de opressão?

Vou dar um exemplo. A minha tia Raquel, uma leiga em semiótica que intuitivamente sabia como um vestido pode significar muitas coisas, tinha a opinião que se segue: Quem quer ser bonito deixa-se esfolar! Escusado será dizer que cuidava da aparência com apuro hollywoodesco e que, tão-pouco dada às letras, teria subscrito, voluntária, a desafectação confessa de Clarice Lispector: Podia ser outra. Podia ser um homem. Felizmente nasci mulher. E vaidosa. Prefiro que saia um bom retrato meu no jornal do que os elogios. Seriam, tanto a tia Raquel como a conceituada escritora, fashion victims avant la lettre? Porque é nisso, afinal, que todos estão a pensar quando falam de ditadura da imagem relacionando-a com moda.
Claro que «ditadura da imagem» é tecedura provida de muito mais elasticidade. Tanto pode compreender os manuais escolares (polvilhados de «bonecos») como a anorexia nervosa (disfunção alimentar grave que define um quadro neurótico, e cuja origem tem vindo a ser imputada, com alguma ligeireza, aos modelos em passerelle); tanto abarca as entorses televisivas (a virtualidade do meio a substituir-se ao real) como a manipulação publicitária (produtos fetiche causa de (in)satisfação narcísica), como, como…
Afinal, num mundo saturado de signos que vertiginosamente se auto-reproduzem, gerando um efeito de hiper-realidade, talvez seja difícil, senão mesmo impossível, escaparmos às imagens e às suas representações simbólicas (mas, ainda agora, a crise financeira veio provar que uma hipoteca não deixa de ser uma hipoteca só porque alguém a mascara sob títulos nobiliárquicos como «Structured Investment Vehicles»/SIV). Mal comparado: um vestido comprado numa grande superfície não passa a ser Alber Elbaz só por lembrar vagamente um desenho da Lanvin.

Voltando às fashion victim e à tia. No caso dela, pelo seguinte. A todos os partidários de que a actual ditadura imagética engendra mulheres supliciadas por saltos-agulha funâmbulos, pinças contorcionadas, escovas de rímel cerdosas, escalpes faciais sanguíneos ou jejuns sacrificatórios, apenas vos digo isto: haviam de a ter conhecido! Carradas de limão nos olhos para lhes puxar o brilho. Pastos sebosos na cara. Cabelos engomados a quente. Soutiens armadilhados. Depilação nauseante. Cintas asmáticas. Receitas cabalísticas. Mezinhas encriptadas. Alguém falou n’O Jardim dos Suplícios? Octave Mirbeau não alcançaria sequer o primeiro grau maçónico se tivesse de se medir com a geração das mulheres da filha da minha avó!
Aqui há uns anos, o poeta Herberto Helder contava uma história que era assim: parara a carrinha de livros da Gulbenkian num descampado alentejano, quando uma camponesa se acercou da dita e se pôs a folhear os títulos. Depois de muito folhear, requisitou dois: Pode-se Modificar o Homem?, do biólogo francês Jean Rostand, e Estética, de Hegel. Surpreendido com a preferência, e embora correndo o risco de parecer snob, o livreiro motorizado perguntou-lhe o motivo da escolha. A resposta foi simples. Com o primeiro, pretendia aprender a lidar melhor com o seu homem; com o segundo, a pôr-se mais bonita para ele. Que moral podemos tirar daqui? Por um lado, que os signos, como queria Saussure, estão sujeitos à lei da arbitrariedade, por outro, que mesmo no deserto de Mário Lino as mulheres preferem estar bonitas a feias.
E agora pergunto eu. O que mais as favorece? Por exemplo: produtos de beleza La Mer, maquilhagem Shiseido e roupinha Hermès, ou qualquer um dos referidos itens comprados no supermercado? Se este texto não se dirigisse aos dois sexos, seria chegada a altura de interpelar as leitoras: «Minhas amigas, que não nos contem patranhas! A ditadura não é da moda. A ditadura é do dinheiro.» (ou como disse a Dolly Parton: You’d be surprised how much it costs to look this cheap!) Não fora isto, poucos se importariam em tornar-se fashionistas, pelo menos de vez em quando.
O termo fashion victim tem, e com justeza, conotações pejorativas.Terá sido inventado por Oscar de La Renta para definir alguém que, desprovido de estilo e carisma, se rende acriticamente a todas as tendências, sobretudo àquelas que calcula estarem na mó de cima. A marca é tudo e quanto mais cara melhor, poderia resumir o credo das fashion victims. As quais, se quando se olham ao espelho escutam sempre uma voz pronunciando as palavras mágicas ― Em todo o mundo não existe beleza maior! ―, na realidade não deixam de ser o melhor álibi para o sarcasmo de Wilde: A moda é algo tão intoleravelmente feio que tem de ser mudado todos os seis meses.
Mas agora vou confessar-vos uma coisa. É verdade que na série Sexo na Cidade todo o guarda-roupa estava irrepreensivelmente correcto. Mas quem se lembra de Absolutamente Fabulosas!, talvez possa preferir a extravagância demencial de Edwina Monsoon, apesar de, como alguém escreveu, ela parecer por vezes um batido de Elton John com corneto de morango. O que nos conduz até John Galliano, o designer da Dior que em tempos confessou: Simplicity is a such a bore! Sometimes the real fun is in bad taste. O que, por seu turno, nos remete para uma frase de sinal contrário: Gostava de ter inventado as ‘jeans’. Têm carácter, ‘sex appeal’, simplicidade ― tudo o que desejo para as minhas roupas, Yves Saint Laurent.

O parágrafo anterior reconduz-nos ao ponto de partida. Face a tanta diversidade de estilos, atitudes e tendências, será legítimo falar de uma ditadura? Será legítimo insistir em que a moda escraviza as mulheres (e, de acordo com os números de vendas, cada vez mais homens)? Fará sentido continuar a difamar uma indústria que vive de vender beleza (mesmo que a preços obscenos)?
Não desenho roupas, desenho sonhos, resumiu Ralph Lauren. E, muito antes dele, disse Jean Cocteau: A arte produz coisas feias que, não raras vezes, se tornam bonitas com o tempo. A moda, ao invés, produz coisas bonitas que, com o tempo, se tornam feias. Falhou apenas Cocteau em dois dados do problema. Primeiro, o apelo estético incólume de algumas peças (basta pensar em Cristóbal Balenciaga…), depois, a capacidade da moda para se reinventar a si própria (já vestimos bocas-de-sino, já abominámos bocas-de-sino, e que eu apanhe já outra constipação se, com diferentes alinhavos, não vamos voltar a usá-las!).

Ao contrário das mulheres do tempo da tia Raquel ― e podem crer que eu não a inventei ―, essas sim, sujeitas ao espartilho da moda (mesmo se o espartilho fora abolido algumas décadas antes, no início do século XX), os consumidores de hoje transitam livremente entre códigos. Para expor a ideia de forma visual, já que uma imagem vale mais de mil palavras (provérbio oriental que até Mao Tsé-tung honrou ao deixar-se fotografar a tomar banho no rio Yang-Tsé em 1966, provando às massas, e aos opositores da Revolução Cultural, que ainda muita água passaria por baixo das pontes até ele abandonar o poder). Que semelhanças se poderão encontrar entre os estilos de Madonna (já em si mesmo plural), Gisele Bündchen, Kate Moss, Agyness Deyn, Jennifer Lopez, Sophia Coppola, Julian Moore, e etc., só para dar uns exemplos? Talvez só a que reverte desta definição da actriz Sophia Loren: O vestido de uma mulher deve ser como uma cerca de arame farpado: serve o propósito mas não tapa a vista.
No actual panorama da moda, tal qual a beleza de que falava Eco, as ofertas são polimórficas e polissémicas. É verdade que não facilitam a vida ao consumidor que, quando pouco seguro, se sentirá perdido: When in doubt wear red, aconselhava Bill Blass, mas já a Ivone Silva subia ao palco e dizia: Com um simples vestido preto eu nunca me comprometo. E a dúvida fica em aberto. Coisa que seria impossível numa ditadura.

26/11/08

Se isto foi tudo por causa de um vulgar assédio sexual na Praça da Alegria imagine-se se eu contasse daquela vez em que gamei matrículas

Ontem, por causa deste post [quero dizer, dos links com que tão generosamente vários blogues agraciaram este post], o meu mui modesto site meter ensandeceu*. Agradecida!
(*não estranhem as datas; o contador está desde sempre 12 horas adiantado)

25/11/08

Recuerdos de uma data histórica: 25 de Novembro? 11 de Março? Who cares?

Queríeis conversa? Então vamos lá.
Lembrei-me deste incidente por causa do histórico 25 de Novembro. E por deferência aos leitores mais novos, concedo um preâmbulo.
Houve o 5 de Outubro, o 28 de Maio, o 25 de Abril, o 11 de Março e o 25 de Novembro. Nas duas primeiras datas ainda não era nascida e tudo o que sei foi de ouvir dizer. Do 25 de Abril já falei e falarei noutra altura. Quanto às que restam, despindo a coisa de atavios, era mais ou menos assim: no 11 de Março os cabrões do PCP não tomaram o poder por pouco; no 25 de Novembro os cabrões dos reaças tomaram o poder e pronto. Apesar das eventuais divergências quanto a este meu apanhado, o que interessa é que, em ambos os dias, as hostes fervilhavam.
A história que vos conto, julgo ter tido lugar no 25 de Novembro mas para o caso tanto faz. Aconteceu (mesmo que tenha acontecido durante o 11 de Março).
O nosso quartel-general, que também o tínhamos, situava-se nas instalações da Faculdade de Ciências, ali à Rua da Escola Politécnica, onde depois se vieram a expor restos de dinossauros e cadáveres chineses. Era um bom quartel-general. Tinha música (na «sonora»), uma cantina, que apesar das baratas e dos ratos podia ser tardiamente assaltada, e era muito central. A mim dava-me bastante jeito porque vinha de Cascais.
Na noite dos acontecimentos, andava por ali um formigueiro de gente. Os camaradas mais experientes mantinham-se em permanente contacto com os camaradas ainda mais experientes (que estariam noutro quartel-general muito mais fora de mão) e a soldadesca aguardava ruidosamente instruções. A dada altura, constituíram-se piquetes que deveriam deslocar-se a pontos estratégicos da cidade em recolha de movimentos suspeitos. Não me perguntem o quê. Era de noite.
Fosse quem fosse o sacana responsável pela distribuição dos lugares, a mim calhou-me a Quarta Esquadra. A Quarta Esquadra, para quem não sabe, fica na Praça da Alegria, um ponto da capital dado a engates e outros ilícitos. Sem avaliar bem o destino que me calhara em sorte (trocara há anos as artérias lisboetas pelo litoral cascalense...), lá fui, intrépida militante, vigiar a PSP.
Chegada ao local (e ainda hoje não me consigo lembrar porque raio o meu piquete era só eu…), sentei-me num banco no jardim, de olho no inimigo. Indiferente ao momento histórico, andava por ali um formigueiro de gente. Nos afazeres do costume. Quanto aos polícias, pareciam calmos, nada havendo a assinalar. Foi então que, ocupando o meu posto de vigia há muito menos de uma hora, comecei a ser abordada pelos regular fellows da praça, apesar da total falta de glam com que nos vestíamos na época: «oh filha, és nova aqui?», «queres um cigarro?», «quanto levas?», «fazes desconto?» e outros vitupérios bastante mais asneados.
Sem saber o que responder aos passantes – e alguns sentavam-se – acabaria por abandonar o meu posto, traindo assim a confiança que em mim haviam depositado os camaradas mais experientes e os mais experientes ainda. Naquela noite, confesso, não estive à altura da revolução.

24/11/08

Qualquer um que tenha lido romances ou visto filmes em número suficiente percebe isto

É importante ver Sócrates ao lado de Medvedev para compreender a natureza de Sócrates. Sócrates é um perigoso prepotente inculto. Ao lado de Medvedev declarou: «A Geórgia é uma página virada» (...). Compreende-se o interesse nacional da paragem técnica de Medvedev e até se compreende que o primeiro-ministro queira ser um bom anfitrião. Mas Sócrates vai sempre mais além. Ele é o dono da História, ou pelo menos está com os donos da História (...). Permite-se falar grosso e dizer, quando Medvedev está ao lado, as coisas fortes que Medvedev gosta de ouvir, para que os fracos saibam o seu lugar (...). Se Sócrates tivesse gás e petróleo seria um Putin. Se Sócrates tivesse um Abramovic em vez de um Oliveira e Costa seria um Putin. Se Sócrates tivesse um país de gente calada e de cerviz vergada como os seus apoiantes socialistas, que de socialistas só têm a lapela fracturante, seria um Salazar reciclado, com jogging e namoradinha.
Publicado aqui a 22 de Novembro.

Aniversário de Herberto Helder (foi ontem)

se do fundo da garganta aos dentes a areia do teu nome,
se riscasse com a abrasadura, se
em cima e em baixo mexido às escuras,
o forno com a mão a ver se ela podia
que uma púrpura em flor fosse até ao coração,
unhas e tudo,
que estremecesse, não por dito mas sabido
contra ti, e por artes
antigas trazer o ar, fazer uma
iluminação:
mudar o mundo para que o nome coubesse,
vivaz, tocado, fértil,
houvesse um dom inseparável, música, verbo:
se eu pudesse, se a terra
se atrasasse,
se pudesse em amarga língua portuguesa com o teu nome em qualquer
parte,
para eu mesmo riscar contra ti,
raiar contra ti,
sob
serapilheiras de sangue

23/11/08

I beg your pardon?

Palavras do primeiro-ministro José Sócrates (e que eu continue agarrada aos kleenex pelo menos até aos Reis se isto não for verdade).
O referido, citado pela LUSA, garantiu ontem em Valongo que os portugueses começam a ver os bons resultados da reforma efectuada na saúde e que tanta incompreensão e obstáculos teve de enfrentar.
Esta urgência básica que hoje visitamos, que abre com os mais modernos sistemas de triagem, equipamentos técnicos e quadros, só existe porque nós realizámos uma reforma das urgências no nosso país, afirmou enquanto inaugurava a ampliação do Hospital Nossa Senhora da Conceição. E acrescentou que o novo serviço ficava antes de mais a dever-se a um governo que não se deixou intimidar pelo que se dizia e prossegue uma via reformista de mudança.
Isto foi dito ontem.
Entretanto, no passado dia 13 de Novembro, havia sido divulgado em Bruxelas um estudo realizado pela Health Consumer Powerhouse que colocava Portugal na cauda da Europa em termos de cuidados de saúde. Em 31 países analisados, Portugal ficava-se pelo 26º lugar, apenas à frente da Roménia, Bulgária, Croácia, Macedónia e Letónia, com a agravante de em 2007 ter ainda assim conseguido a 19ª posicão e em 2006 a 16ª.
Conclusão: ou os tipos da Health Consumer Powerhouse são uma cambada de aldrabões ou isto numa semana foi tudo corrido a viagra.

22/11/08

Enquanto o país se assombra com um Loureiro e uma Oliveira eu dou continuidade às memórias na alcova, derivado ao raio de uma gripe ou lá o que seja

A mim não foi um qualquer quem me recrutou. Não senhor. O rapaz (na altura) havia de palmilhar uma via ascensional que, não o tendo conduzido a Fátima, o levou ao Santo Sepulcro. E para quê falar com Nossa Senhora quando se pode falar com Deus? Foi o que eu pensei. Estive uns anos sem saber dele. Até que soube. Estava bastante mais gordo. De resto estava igual.
Vou-vos, então, contar. Na altura ele não dirigia jornal coisíssima nenhuma. Era tão estudante como eu. Um dia chegou ao pé de mim e disse-me: «Temos que falar!». O tom era imperativo e conspirativo. Revelava que havia coisa. A certa altura chamou-me «camarada!» e eu senti que o momento era solene: «Camarada! Pensamos que chegou a altura de entrares para a UEC (ml). Não tens de responder já».
Aqueles que me lêem e se lembram d’ A Vida de Brian (Are you the Judean People's Front? Fuck off! What? Judean People's Front. We're the People's Front of Judea! Judean People's Front. Cawk. etc.) talvez consigam perceber.
Um: que o grande inimigo da União dos Estudantes Comunistas (marxistas-leninistas) era a União dos Estudantes Comunistas. Dois: que uma jovem ser convidada a entrar na União dos Estudantes Comunistas (marxistas-leninistas) seria o equivalente, na actualidade, a uma jovem ser convidada a entrar numa telenovela da SIC. Como protagonista. Devem-me ter tremido as pernas. Se não logo, depois. Já perceberão porquê. Respondi gaguejando que sim. E mais tarde combinou-se um encontro. Clandestino, como soía.
Não é preciso ter lido a Zita para saber que tais encontros envolviam preliminares kamasutrianos. Havia uma senha, como nos spy games, e havia, sobretudo, «o percurso». O percurso era um preâmbulo peripatético ao encontro, durante o qual todos os militantes tinham de atestar que a distância mais curta entre dois pontos nunca era uma linha recta. Por exemplo: eu estava no Cais do Sodré e queria ir para a Graça. Certo e certinho que havia de passar pelas Avenidas Novas com desvio pela Calçada da Estrela.
Abreviando, apanhámos o 28. Que estava longe de ser uma atracção turística e, como era uso então, seguia de portas abertas. Combinámos. Ali por perto da Calçada de São Vicente, quando a velocidade se encurta e o eléctrico faz corpo com o casario, pularíamos em andamento, no intuito de galgar umas escadas de que esqueci o nome. Aquiesci e lá montámos o dito, no meu caso tomada pela ânsia de ― imitando o voo do meu angariador ―mergulhar de cabeça no mundo dos ungidos.
E mergulhei literalmente de cabeça. Porque apesar do sim! sim! voluntarioso com que anuíra às instruções, a verdade é que nunca saltara de eléctrico. Quando finalmente cheguei, coxa, ao termo das escadas, o rapaz que muito mais tarde viria a ser, to say the least, um afamado e anafado director de jornal deu ― sem esconder a contrariedade ― por cancelado o encontro.
A coisa não começava bem e havia de terminar pior.

21/11/08

Sim eu sei que o Conan O'Brien não é a Manuela Ferreira Leite mas ainda assim tem piada

Now that Barack Obama has been elected president, producers in Hollywood say they think America is ready for a black James Bond and a black Wonder Woman. Isn't that cool? Yeah, hell, America may even be ready for a black Michael Jackson - (Conan O'Brien)

20/11/08

Dois poemas com sexo e escusam de se pôr com ideias

Poema de sete faces
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás das mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meus Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
Carlos Drummond de Andrade


Com Licença Poética
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado para mulher,
essa espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição para homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
Adélia Prado

19/11/08

Automedicação

Portugal ultrapassa – na velocidade dos disparates – o gigantesco acelerador de partículas sediado na Confederação Helvética. Se Eça e Ramalho fossem vivos, a biblioteca de Pacheco Pereira (mesmo somada à do Graça Moura) seria insuficiente para conter os números d' As Farpas.
Ainda não refeitos do encarniçamento da ministra da educação e ultrapassada a distracção de Constâncio, levamos com o dá e tira do «Magalhães» às crianças, ouvimos Ferreira Leite tentar ter piada em público e acabamos a confirmar que o iluminado Teixeira dos Santos é o pior ministro das finanças da UE.
Meus amigos, eu ando doente e confesso-vos que isto não ajuda nada! Vale-me a leitura, em jeito de anti-histamínico.

«I.
Myra atravessou os carris desconjuntados em direcção ao mar.
Cresciam ervas e tojo e havia chorões apodrecidos nas juntas e as traves e ferros estavam negros das marés vivas sujas de crude. Corria contra o vento, procurando saltar as arestas de cascalho e os cacos de vidro, pulando alto a entreter o frio e o seu desgosto.
O céu estava baixo e muito escuro. Havia estrias roxas e vermelhas na distância mais clareada do horizonte e pareciam, céu e mar, uma única onda a levantar-se para cobrir a terra. Myra tirou os sapatos e as meias rotas e ficou parada a ver aquele assombro. Se corresse por ali adentro ninguém daria com ela nunca mais, nem no país dali, nem em nenhum outro.
Assoou-se à bainha da saia e limpou o resto da cara à manga do casaco esburacado que a mãe lhe fazia usar em casa e que dizia que viera de lá. Myra lembrou-se da neve em cima dos telhados de ouro e loiça. E os blinis que não tinham nome nesta terra. Ao princípio nada tinha nome. E a avó, com ela pela mão à porta das igrejas, o cheiro de mil velas, a estender-lhe a mão, a esconder-lhe a mão. Tanto medo. […]»
Maria Velho da Costa, Myra, 2008, Assírio & Alvim (o começo...)

Eu também mas é mais ao contrário e nem lhe perguntava nada

Da série embirrações assumidas
«Cada vez que participo num programa de televisão em directo, tenho vontade de me levantar e de, a completo despropósito, dar uma estalada no apresentador. [...] Fazem-me perguntas: quando começou a escrever?, porque escreve?, quais são os autores que mais o influenciaram? Eu respondo devagar, e, por detrás de cada palavra, sinto vontade de levantar-me, ter a completa percepção de todos os meus movimentos e dar-lhes uma estalada.»
encontrado no blog do josé luís peixoto, espaço que prometo passar a visitar com regularidade a partir de agora. assim me dê deus saúde e paciência.

18/11/08

A propósito de andarem por aí uns putos a lançar ovos e outros víveres a representantes do Estado

No meu tempo os estudantes não lançavam produtos comestíveis a ministros e secretários de estado. No meu tempo eram mais eles a levar com suspensões, expulsões e detenções e, sem querer puxar ao sentimento, com cargas da polícia. Eu própria fui suspensa por três dias, pelo desplante de ter sido colado um cartaz à entrada do meu liceu, convocando uma RGA. A escola paralisou por tão pouco e no dia seguinte fui levada à presença do reitor, não sem antes ter desfrutado dos meus fifteen minutes de fama – contados a partir da saída do comboio até à entrada no estabelecimento: «Foi ela! Foi ela! Foi ela!».
O reitor, com Tomás e Salazar (não me lembro do Caetano…) pairando omniscientes pelo austero gabinete, anunciou que ia chamar o meu pai. O meu pai tinha estado preso em Peniche e não simpatizava com nenhum dos retratados. Assim, o insolente à-vontade com que retorqui à autoridade: «Então, chame!» nada transpirava de heróico. O meu pai, quando eu lhe disse: «Fui suspensa!», disse: «Grande filha!». E abraçou-me.
Nem todos os finais se mostravam tão ditosos. Havia quem, devido às suspensões, perdesse o ano por faltas, e havia quem fosse logo para a rua sem castigos intercalares. Também havia prisões. Uma vez foram presos 150 de uma vez só, no Hospital Santa Maria. Eu, com a minha proverbial incapacidade para lidar com a british punctuality, atrasei-me. Quando, ofegante, lá vislumbrei Económicas, para onde fora marcada inicialmente a reunião, verifiquei ser muito tarde para ir a Medicina.
Não fui e não fui dentro, mas recordo muito bem os rapazes de cabelo rapado à escovinha, um corte que lhes fora gentilmente ofertado pelo barbeiro das caves do Governo Civil. As raparigas não denunciavam quaisquer sinais exteriores e muitos dos rapazes optaram por usar gorros na cabeça – estávamos no Inverno de 1973.
Não posso garantir que Bárcia, o nosso bufo exclusivo, tenha sido engavetado na altura. Julgo que sim. Era um sujeito curioso. Magro, alto, de orelhas caracteristicamente afastadas, usava gabardines à pide, indumentária à qual se referia de modo jocoso, sublinhando que parecia mesmo um. A carreira dele teve um final burlesco.
Já depois do 25 de Abril, a mãe contactou ex-colegas dizendo-lhes que, incompreensivelmente, o filho tinha sido detido. Apressámo-nos a acalmá-la, alvitrando que fora o caso de um engano: perante os documentos incriminatórios, que incluíam os nomes da estudantada escarrapachados em relatórios escritos de motu proprio, ainda hoje estou para saber se alguém teve coragem de telefonar à senhora.
Avistámo-lo depois, bastante mais tarde, à saída de um velório na Basílica da Estrela. Num mini a cair de podre, encetou-se uma perseguição ao Bárcia pelas ruas de Campo de Ourique, mas acabámos por lhe perder o rasto ali para os lados do Canas.
Éramos putos. Não lançávamos, industriados por obscuros «adversários da política educativa do Governo», produtos comestíveis a ministros e secretários de estado. Fazíamos outras coisas. E que não se me leve a mal a pergunta: o que fariam em jovens a digníssima ministra da educação e seus inefáveis secretários?

17/11/08

Podem-me chamar reaccionária mas eu gostei muito de ir à escola

Fui uma privilegiada e não vou pedir desculpa por isso. A partir dos cinco anos frequentei um colégio particular, ali para os lados de Belém. Conhecido pela "Escola do Senhor Gomes", na realidade, se a memória não me falha, chamava-se Externato do Rio Seco. Quanto ao Senhor Gomes, era um reformado da Marinha com ideias arejadas sobre educação. Para a época.
Apesar do colégio ser feminino e usarmos todas batas de folhos, a música e a ginástica eram obrigatórias, assim como as descidas ao laboratório, a partir da terceira classe, e as visitas de estudo, que incluíam invariavelmente os Jerónimos e os jardins da frente. Era vê-lo, já velho mas rijo de carnes, a mandar parar as viaturas para que deixassem passar as meninas! E as meninas lá passavam em filas de duas a duas e mãos obrigatoriamente dadas, em direcção à Fonte Luminosa que mudava de cor e era uma das atracções da pátria.
No colégio ― que hoje julgo albergar um condomínio ― , então uma casa senhorial com amplas cavalariças, adaptadas a salão de ginástica em dias de frio e chuva, e edifício principal, com pátio e entrada no alto de uma pequena escadaria de pedra, transformado num espaço despido de paredes onde se alojavam as quatro classes em open space, havia carteiras individuais de madeira com tampo inclinado para manter as costas direitas, tinteiro embutido e ranhura para colocar a caneta. Que era de aparo.
Só na quarta classe se permitia o uso de tinta permanente e as Bic já andava eu no liceu. Aprendíamos a escrever copiando abecedários góticos transparentes e a partir do segundo ano dar mais de três erros num ditado seria o correspondente, nos dias de hoje, a um diagnóstico precoce de dislexia (isto não foi assim há tanto tempo; os que me conhecem sabem que não sou do tempo da Guerra – refiro-me à segunda, evidentemente).
No laboratório, que ficava na cave do edifício principal e era um sítio cheio de mistérios e tubos de ensaio retorcidos onde o ar era escuro e cheirava a pó, lembro-me de ter aprendido a classificar as folhas segundo o respectivo recorte. Nunca mais me esqueci, vá-se la lá saber porquê, das lanceoladas.
Havia festas nas datas do costume. Decorriam numa sala com palco e cortina a sério na casa do director (lateral às cavalariças por cujo portão largo nós entravámos para o colégio) e constavam sempre de uma demonstração de canto coral acompanhado ao piano por uma senhora saída directamente de um filme já na altura muito antigo (eu como era da terceira voz desafinada e não conseguia atinar com o canon ficava sempre na fila de trás, em silêncio religioso, recompensada depois com a recitação individual de uma poesia – e ainda hoje me lembro da Balada da Neve por causa disso…), e de uma peça de teatro que normalmente me corria mal – ou porque o anjinho entrava em cena com uma das asas abalroadas ou porque os remendos no rabo das calças do pobrezinho apareciam a servir de joelheiras. Os pais das crianças riam muito e eu engasgava-me nas deixas.
Nunca levei reguadas. Minto. Houve uma altura em que levava reguadas regularmente, mas era eu própria quem as aplicava. Explico. O Senhor Gomes, que tinha umas ideias avançadas para a época (mesmo que não acreditem...), pusera em prática um exercício de memória. Reproduzia no quadro um desenho com vários elementos, deixava que o observássemos durante alguns minutos, apagava-o e depois mandava-nos executá-lo de cor. A professora da quarta classe, que não a minha, era a encarregue de zelar pelos resultados. Perversa e autoritária (qualidades transversais aos mais variados tipos de pedagogo...), aplicava uma reguada a quem falhasse no teste. A mim faltava-me sempre qualquer coisa. Talvez por isso, a dada altura desistiu de me bater. Apontava-me a régua com a cabeça, eu dirigia-me à secretária dela e desferia com o vigor, que era nulo, o invariável castigo. Até que houve um dia em que o Senhor Gomes acabou com aquilo.
Há anos que não pensava nele. E não é pelo que estarão a pensar.

16/11/08

Diário de um Mau Ano

Diário de um Mau Ano abre com o ensaio «Sobre as Origens do Estado» e só depois, lá para o fim da página, demarcada por um pontilhado, nos apercebemos de uma outra mancha de texto, mais pequena, que começa assim: O primeiro relance que dela tive ocorreu na lavandaria.
Os dois textos vão correndo (literalmente) paralelos, até que, chegados à página 34, de dois planos passa-se a três, introduzindo-se aí uma nova narrativa que dá voz a uma mulher: Quando passo por ele, com o cesto da roupa suja, tenho o cuidado de rebolar o traseiro, o meu delicioso traseiro, envolvido na ganga justa.
Pode parecer confuso, mas trata-se, tão-só, de uma estratégia de composição que o leitor contornará, se preferir (talvez não tenha, pelo menos à primeira, outra possibilidade…), lendo cada narrativa autonomamente (William Faulkner ensaiara uma experiência semelhante intercalando as páginas das novelas Palmeiras Bravas e Rio Velho, e o próprio Coetzee já tentara construções menos ortodoxas, por exemplo, em No Coração desta Terra).
A estrutura e os protagonistas expõem-se sem dificuldade. Um velho escritor solitário retirado na Austrália é convidado, por um editor alemão, a pronunciar-se, tanto melhor se de forma controversa, sobre os temas que entender, incluindo aquilo que considera ir de mal a pior no mundo; existe Anya, a jovem australiana de origem filipina que ele avista na lavandaria, e que acabará por aceitar ser sua secretária (lembramo-nos de Roth, naturalmente), e há ainda Alan, o ambicioso gestor de contas e companheiro dela, o cínico de serviço que, dados os seus poucos escrúpulos, serve de contraditório aos valores morais do escritor. Temos assim, num primeiro plano, os ensaios (Coetzee, indiscutivelmente himself), num segundo plano, a relação entre Anya e o velho romancista narrada pelo próprio e, finalmente, a mesma realidade vista pelo olhos de Anya.
Os temas ensaísticos são abordados, também eles, de maneiras distintas. Num primeiro momento, organizado sob o título «Opiniões Fortes», expõem-se assuntos tão diversos como o Estado segundo Hobbes, a liberdade individual, o racismo, a Al-Qaeda, Tony Blair, Harold Pinter e o filósofo grego Zenão, a política na Austrália, a esquerda e a direita, o criacionismo, os direitos dos animais, a pedofília, etc. Mais à frente, no «Segundo Diário», a reflexão torna-se mais pessoal e debruça-se sobre o pai, a morte, o erotismo, os clássicos, a música ou o envelhecimento, para acabar com um texto sobre Dostoievski e a ética da literatura. Ao longo destes dois registos, a escrita vai ganhando tonalidades mais sombrias, ao mesmo tempo que, nas outras duas narrativas (a do escritor e a de Anya) o encontro entre os dois se aproxima do final. E no final, mais perto da morte, é já só Anya que fala, o escritor silenciado, mesmo no texto cuja autoria não é dela, e que termina com a transcrição de uma carta sua ao Señor C, o nome pelo qual sempre tratara o seu patrão temporário.
Escrito e construído como uma partitura musical, Diário de Um Mau Ano vai entrelaçando os seus vários níveis, sobretudo através dos comentários de Anya às reflexões do escritor, numa espécie de contraponto esperançoso ao desencanto que adivinhamos de Coetzee (e que a personagem de Alan parece existir para confirmar). Com grande mestria, o Nobel sul-africano mostra-se mais uma vez capaz de nos dar a ouvir diferentes timbres de voz e, se alguma desafinada, a dele: “Precisa-se: Guru idoso. Deve ter uma vida inteira de experiência, palavras sábias para todas as ocasiões. Condição de preferência uma longa barba branca.” Porque não hei-de tentar a minha sorte? (…). Não me tornei propriamente uma celebridade como romancista; vejamos se me celebrizam como guru».
Dispensado o guru e concordando-se ou não com (todas) as «ideias fortes» expressas em Diário de Um Mau Ano, certo é que se trata de um romance que merece celebração (apesar de manchado aqui ou ali por uma revisão menos cuidada – Dicionário das Ideias Feitas de Flaubert não se chama Dicionário das Ideias Recebidas, só para dar um exemplo).
Diário de Um Mau Ano, J.M.Coetzee, 2008, Dom Quixote

14/11/08

A book a day keeps the doctor away

A crítica está para a arte como o bufo está para o soldado; e o que se segue não é, naturalmente, uma crítica. A primeira proposição roubei-a grosseiramente a Gustave Flaubert (1821-1880) ― «On fait de la critique quand on ne peut pas faire de l'art, de même qu'on se met mouchard quand on ne peut pas être soldat» ―, a segunda serve de justificação a esta curta nota: porque acaba de ser reeditado A Educação Sentimental, um daqueles livros obrigatórios se fosse o caso de embarcarmos para uma ilha.
Assinado pelo maníaco do «mot juste», dessa obra diria Eça de Queiroz: «Na Educação Sentimental, [Flaubert] concebe esta ideia de génio: pintar numa larga acção a fraqueza dos caracteres contemporâneos amolecidos pelo romantismo, pelo vago dissolvente das concepções filosóficas, pela falta de um princípio seguro que, penetrando a totalidade das consciências, dirija as acções; e explicar por esta efeminação das almas todas as instabilidades da nossa vida social, a desorganização do mundo moral, a indiferença e o egoísmo das naturezas, a decadência das classes médias, a dificuldade de governar a democracia...». É uma leitura de época que se mantém justíssima.
Num registo que oscila entre o lirismo e a mais pura paródia, com a paixão do jovem Frédéric Moreau por Madame Arnoux (reedição do próprio amor do jovem Flaubert por Élisa Foucault) a servir de pano de fundo a um retrato ultra-realista da época, A Educação Sentimental trata não só das ilusões amorosas, mas também das ilusões políticas. Deixando aquele lastro de desencanto intemporal que Flaubert sempre soube subtrair a todo o sentimentalismo.
A Educação Sentimental, Gustave Flaubert, Relógio D’Água, 2008, trad. de João Costa [o romance pode ser lido no original a partir daqui]

13/11/08

E ninguém os interna...

Escusado será dizer que se isto fosse no tempo do Teatro de Revista daria origem a várias piadas brejeiras.
É um documento notável e maravilhoso. De acordo com uma directiva da Comissão Europeia, espécies hortícolas e frutícolas, como damascos, espargos, beringelas, feijões, couve-de-bruxelas, cenouras, couve-flor, cerejas, pepinos, alhos, repolhos, melões, cebolas, ou espinafres poderão passar, finalmente, ser vendidos em formatos «deformados». Já outras espécies, malévolas, irregulares e desobedientes, como maçãs, kiwis, alfaces, pêssegos, morangos e tomates terão de se apresentar com os tamanhos que a comissão define no gabinete. Segundo a comissária da agricultura «esta decisão marca o início de uma nova era para os pepinos curvos e as cenouras nodosas». Os nossos quintais rejubilam, eufóricos, ao verem que Bruxelas continua a meter os legumes na ordem. E os cidadãos festejam por não lhes alterarem o calibre dos tomates.
Chamo ainda a atenção para esta notícia: «O Banco Alimentar de Luta contra a Fome esteve impedido este ano de distribuir frutas e legumes a quem recorre aos seus serviços para poder comer porque não está autorizado a distribuir frutas e legumes que não cumpram os parâmetros de tamanho e cor impostos pela União Europeia.»
Informação recebida por e-mail. Obrigada Francisco.

12/11/08

Amy Winehouse: Who the Fuck Is Marco Perego?


Amy Winehouse, Teach me tonight


Amy Winehouse, Back To Black

No último Rock in Rio de Lisboa, a minha filha mais velha abandonou o concerto de Amy Winehouse, segundo ela porque «aquela gente toda a assistir ao vivo a uma pessoa a desfazer-se em palco era um espectáculo insuportável». Hoje chegou a casa baralhada por esta notícia que dá conta de uma escultura da artista morta no meio de um banho de sangue. Ou seja, há por aí muito parasita medíocre que confunde arte com antropofagia.

11/11/08

O caso Joana Varela: porque um despedimento é um despedimento mesmo quando se dá em ambiente sofisticado e com vista para o jardim

Fui há uns dias surpreendida pela notícia. Joana Varela, directora da Colóquio Letras, revista editada pela Gulbenkian desde 1971 (e disponível online desde Maio), foi dispensada do cargo de directora e convidada a participar num futuro Conselho Editorial. Considerando o «convite» uma despromoção, não aceitou.
Depois de 25 anos a trabalhar na Fundação foi ameaçada com um processo disciplinar.
«[...] fui convidada ontem a mais uma despromoção pelo administrador Marçal Grilo, [...] antigo ministro da Educação [...] a pertencer a um futuro Conselho Editorial de uma futura revista da Fundação, a dirigir certamente por alguém mais do seu agrado e menos incómodo. [...] Não aceitei a “oferta” do ex-ministro da educação e fui convidada a sair do seu gabinete, depois de ser ameaçada com um processo disciplinar.»
Depois da ameaça, seguiu-se o processo propriamente dito:
«No dia 6 de Novembro de 2008, a Administração da Fundação Calouste Gulbenkian tomou conhecimento que, nesse mesmo dia, a Sra. Dra. Joana Morais Varela, Directora da Revista Colóquio Letras, enviou uma comunicação a todos os trabalhadores da Fundação, ao próprio Conselho de Administração e aos colaboradores externos e consultores da Instituição.
Essa comunicação contém diversas afirmações e expressões de carácter injurioso, dirigidas aos diferentes membros da Administração [...] Dado que este comportamento representa uma grave infracção disciplinar, a Administração da Fundação não pode permitir que o mesmo deixe de ter as inevitáveis consequências, sendo assim forçada a determinar a abertura do competente processo disciplinar [...] com vista à aplicação da sanção que se mostrar adequada e na qual desde já se declara incluir-se o despedimento com justa causa.
Para instrutor do processo é nomeado o Sr. Dr. Pedro Furtado Martins, advogado [...]
[...] A circunstância de a infracção disciplinar ter sido praticada de modo reiterado [...] aliada ao facto de não ter sido materialmente possível elaborar de imediato a nota de culpa, justificam ainda que, desde já, se determine, nos termos e para os efeitos do artigo 417.º do Código do Trabalho, a suspensão preventiva da Sra. Dra. Joana Morais Varela, sem perda de retribuição e das demais condições inerentes ao exercício das suas funções.»
Agora a coisa corre e Joana Varela poderá, ou não, vir a ser despedida: a Fundação Gulbenkian já perdeu.

08/11/08

Da série já comecámos a votar nas plantas: «Magalhães» ou do que acontece à política quando entregue a vendedores de banha da cobra

Fico indignado com a estória do «Magalhães» ser «totalmente concebido e produzido em Portugal», como dizia o nosso Primeiro Ministro (PM) na recente Cimeira Ibero-Americana. Sinceramente não percebo esta atitude. Não faz nenhum sentido. Não promove Portugal, não ajuda na atitude que temos de adoptar para melhorar a competitividade e a produtividade e não resolve nada relativo à nossa imagem externa.
O «Magalhães» é um CLASSMATE da Intel. Basta ver o site, na secção de vídeos, para ver a versão da Tailândia, Nigéria e Brasil.
Talvez o «Magalhães» seja um bom negócio,
algo que até justificasse o envolvimento do governo para trazer a produção para Portugal. Porque não? Talvez isso seja interessante, não sei se é. Poderia envolver a indústria de moldes e dos plásticos, anunciando uma parceria com a Intel para co-produzir um computador para o mercado estudantil. E até poderia envolver a indústria nacional do software, para produzir conteúdos em português, etc. E aí o PM dizia que, no quadro da política governativa para a educação, queriam introduzir um PC portátil no 1º ciclo e decidiram fazer uma parceria com a Intel, que envolvia a indústria nacional na produção da caixa e assim conseguiria um produto que interessava ao país e até poderia ser exportado. Ok! Discordo da estória do portátil no 1º ciclo (ver «Livros e Magalhães»). Mas é o governo que tem de governar, foi eleito para isso. É uma opção que terão de justificar, mas é legítimo que a tomem.
Mas para quê inventar e esconder a verdade? De que vale? Para que serve? Ou melhor, a quem serve?
O «Magalhães» é uma cópia. O vídeo seguinte mostra a evolução do ClassMate, onde se pode ver a versão que agora o nosso PM diz ser «totalmente concebida em Portugal», e que decidiram chamar «Magalhães»:



Também se faz o crash-test neste vídeo. Mas no «Magalhães», segundo o nosso PM, o crash-test foi feito pelo «Presidente Chavez».

Para completar vejam esta apresentação PowerPoint feita pelo responsável do Plano Tecnológico numa conferência organizada pela União Europeia: «Portugal as a living LAB», diz ele..., onde o «Magalhães» já não é totalmente concebido em Portugal, mas antes «Made in Portugal based on the Intel ClassMate platform». Ok, está mais próximo da verdade, mas também era o que faltava dizer aquilo do «totalmente concebido em Portugal» numa conferência europeia (o que diz tudo sobre o respeito que o PM demonstrou pelos nossos parceiros ibero-americanos). Mas isso não é um laboratório, senhor coordenador. É uma fábrica onde se monta uma coisa que já existia: não está errado, mas é o que é. Portanto, queria dizer: Portugal as a living factory (chinese like?)...
Irritam-me estas coisas. Portugal tem coisas muito interessantes, que resultam de projectos em consórcio entre instituições de I&D e empresas, ou de I&D feito em empresas, ou de spin-offs universitárias, etc. Coisas relevantes, que mostram a nossa capacidade de inovar e ter sucesso. É nisso que tem de ser colocado o nosso esforço de promoção, para que mais empresas apostem em I&D, para que apareçam mais empresas resultantes de I&D feito em Universidades e centros de investigação, para que o país surja de uma vez por todas como um país que é capaz de se reinventar e ter sucesso com base justamente na capacidade dos seus cidadãos. Em colaboração (em rede) com o mundo, porque nada se faz isolado.
Como exemplo de algo verdadeiramente concebido em Portugal, com inteligência portuguesa, que dá cartas no competitivo mundo das comunicações para PME, vejam a EdgeBox da Critical-Links:



A Critical Links é uma spin-off da Critical Software, uma empresa portuguesa, nascida em Coimbra, e hoje um player mundial em várias áreas onde o conhecimento e a capacidade de inovação são a mais preciosa vantagem competitiva no mercado global.
Um produto que «está à frente», como diz João Carreira (CEO da Critical-Links e um dos co-fundadores da Critical-Software), e que a própria Intel (que concebeu o Classmate, denominado «Magalhães» em Portugal) classificou como «história de sucesso».
A EdgeBox é só um exemplo. Podia falar de centenas de empresas e produtos, esses sim «concebidos em Portugal» para o mundo.
Portugal tem de apostar na indústria baseada no conhecimento, na capacidade de adicionar valor aos produtos que aqui fazemos, na capacidade de criar novos produtos, na capacidade de gerir melhor, organizar melhor... São esses bons exemplos que devemos promover. Para que se multipliquem. Os trabalhadores portugueses quando colocados em ambientes mais organizados, produzem mais e são elogiados. É necessário que o façam também em Portugal. Só assim seremos competitivos e seremos capazes da revolução tranquila que constitui a aposta na inteligência.
É nisso que temos de colocar o nosso foco. Eu diria que o nosso futuro depende disso.
Post de J. Norberto Pires, professor de Engenharia Mecânica da Universidade de Coimbra e CEO da Coimbra Inovação, gamado daqui (os sublinhados são meus).

06/11/08

Obras-primas

William S. Burroughs dizia que a linguagem é um vírus vindo do espaço; para uma católica como Flannery O’Connor seria certamente um «vírus» vindo de Deus. E assim a lemos, mesmo que não nos toque a fé: indiscutível é que ela escreve em estado de graça.
O Céu É dos Violentos é um livro perfeito. Segundo e último de uma bibliografia curta e precocemente interrompida aos 39 anos – quando a escritora morre na sequência de lúpus –, foi editado pela primeira vez em 1960. Anterior, apenas o romance Sangue Sábio (1955), a que se somam as colectâneas de contos Um Bom Homem É Difícil de Encontrar (1955) e, editado já postumamente, Tudo o que Sobe Deve Convergir (1965).
«E desde os dias de João, o Baptista, até agora, o reino dos céus sofre violência, e os violentos o tomam à força»: a citação, retirada de Mateus 11:12, subjaz ao título e introduz-nos na atmosfera do texto, que começa com uma morte natural e termina com um incêndio redentor: porque o que nos destrói será também o que nos pode salvar.
Francis Tarwater, o protagonista, é um órfão de 14 anos que vive isolado do mundo com o tio-avô Mason Tarwater. Este, um fanático religioso, raptara-o ainda criança de casa do tio Rayber, homem de cultura secular e racionalista, na esperança de fazer dele um profeta. Quando Mason morre, logo na primeira linha do primeiro capítulo, o jovem decide partir para a cidade à procura do tio, que, entretanto, se tornara pai de uma criança deficiente mental, Bishop, cujo baptismo é uma obsessão para Francis.
Soterrado pelo peso das profecias com que o velho Mason lhe enchera a cabeça e o coração, o órfão dispõe-se a enfrentá-las e, negando-as, a libertar-se e autonomizar-se; contudo, ironicamente, cada passo em frente no sentido da libertação como que se transforma na ratificação do destino a que deseja fugir. Entre a histeria religiosa de Mason e a descrença atávica de Rayber, escolherá trilhar o caminho mais duro, o da água e do fogo, ambos os elementos implicando morte – a de um inocente e a do seu passado.
Brilhante na construção, que nos deixa suspensos no desenrolar da trama; incisivo no retrato das personagens, que se desnudam à nossa frente oferecendo-se como que em movimento sacrificial; virtuoso na linguagem, cuja carnalidade nos obriga a olhar de frente, tanto o real como o seu mistério, O Céu É dos Violentos é uma obra-prima que nos chega dos lados de Faulkner e Poe. Ou seja, não é literatura para copinhos de leite.

05/11/08

The game is over

Barack Obama (n.1961), é o 44º presidente dos EUA. Entra em funções a 20 de Janeiro de 2009. Até lá continuamos a levar com o Bush júnior.

04/11/08

Obama versus McCain: resultados a sério só lá mais pela madrugada

Entretanto, se clicar aqui, prometem-nos notícias ao minuto.

Eu percebo que seja mais fácil impingir «Magalhães» a info-ignorantes do que supervisionar bancos geridos por sofisticados cérebros, mas...


«(...) neste charco actual onde se vive, surge agora esse paradigmático "boy" do regime, de nome Victor Constâncio, impunemente e com o maior dos atrevimentos, a lavar as mãos enquanto autoridade de supervisão bancária da situação de bancarrota a que chegou o BPN. Este galhardo funcionário do Banco de Portugal, adornado de títulos académicos mas com um péssimo desempenho profissional no seu trabalho de supervisor, deveria tirar as ilações do seu (mau) trabalho, que é pago à custa dos contribuintes, e demitir-se. A sua avaliação de desempenho é manifestamente negativa.»
Roubado com todo o respeito aqui.

03/11/08

A propósito da excelência dos nossos políticos: em Portugal já começámos a votar nas plantas

1. O líder do PS e primeiro-ministro José Sócrates durante uma sessão de demonstração da Bimby ― perdão, Magalhães ― em San Salvador: «Os meus assessores usam diariamente o Magalhães e não precisam de mais nada».
2. A líder do PSD e, presume-se, candidata a primeiro-ministro Manuela Ferreira Leite sobre as obras públicas e o combate ao desemprego: «(...) de Cabo Verde [e] da Ucrânia, isso ajudam. Ao desemprego de Portugal, duvido»
3. O humorista Lewis Black sobre as qualidades evolutivas dos políticos: «In my lifetime, we've gone from Eisenhower to George W. Bush. We've gone from John F. Kennedy to Al Gore. If this is evolution, I believe that in twelve years, we'll be voting for plants»
Ou seja, sou mesmo eu.

02/11/08

O embaixador João Hall Themido é um tonto, para usar uma expressão diplomática

Publica o Expresso deste fim-de-semana um artigo sobre o livro do embaixador João Hall Themido, acabado de editar pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros; João Hall Themido é aí descrito como um «dos diplomatas portugueses com maior currículo» e Uma Autobiografia Disfarçada como tendo sido esgalhado num «registo crítico, mas também humorado».
Segue-se depois a transcrição de alguns excertos, um dos quais evoca Aristides Sousa Mendes, o cônsul português em Bordéus que, desobedecendo a Salazar, salvou a vida a milhares de refugiados judeus cujo destino, não tivesse ele arriscado a carreira nesse gesto, teria sido a câmara de gás.
Passo a citar o Expresso: um «dos capítulos, porventura o mais polémico [e sublinho eu o advérbio porventura], chama-se "A mitificação de Aristides de Sousa Mendes". O embaixador acusa o cônsul de "actuação irregular". "De forma totalmente irrealista, fala-se em 30 mil" o número de vistos "concedidos em apenas alguns poucos dias pelo cônsul e seus familiares, de forma cega, no consulado e até nos cafés da vizinhança". Themido sublinha "a necessidade de manter disciplina nos serviços que de forma directa ou indirecta pudessem, com a sua actuação, afectar o estatuto de neutralidade" do país. Para o embaixador, Aristides foi um "mito criado por judeus e pelas forças democráticas saídas do 25 de Abril". E mais à frente: "quando a família" do cônsul, "grupos judaicos e forças da esquerda ressuscitaram o assunto, procurei saber mais sobre o ocorrido". Observa que Aristides apenas "pertencia à carreira consular, considerada carreira menor em relação à carreira diplomática". Por outro lado, o processo disciplinar ao cônsul em Bordéus "foi o último de vários de que foi alvo ao longo da carreira, quase sempre por abandono do posto ou concussão". Nota que a maioria dos processos "desapareceu misteriosamente" do MNE e que o de Bordéus está "incompleto". Assim, considera "incompreensível criticar" o Ministério, "incluindo o ministro, por ter aplicado a lei nas circunstâncias da época"».
Deixando de lado o «fala-se em 30 mil», «forma cega», «neutralidade», «circunstâncias», «carreira menor» e etc., concluo que para este senhor quando se trata de escolher entre salvar uma(s) vida(s) ou a «disciplina dos serviços» e a sua regularidade, não há nunca que hesitar: opte-se pelas últimas! Perante tão miserável juízo é natural que a loucura compassiva de Aristides Sousa Mendes lhe seja incompreensível. Porque é preciso possuir alguma nobreza em si para entender um gesto nobre.
A Hall Themido assentar-lhe-á antes como uma luva a frase com que define a princesa Diana de Gales: «Escondido por detrás de um sorriso estereotipado, pareceu estar uma pessoa fria e sem interesse». A mim nem me parece, tenho a certeza.