Em minha casa foi tudo preso pelo menos uma vez. A qualidade das estadias na cadeia variou muito, com o meu pai a bater o recorde de mais ou menos três anos entre os Fortes de Caxias e Peniche – o de Peniche, consideravelmente mais húmido.
A história que quero contar diz respeito à minha mãe.
A minha mãe foi levada para onde andam agora a construir um condomínio de luxo com vista, ouvi dizer, sobre um marco de suplícios, em dia muito fácil de fixar. Foi no dia em que o Oliveira bateu asas e voou, apesar de na altura a Coca-Cola estar proibida e ninguém ainda ter inventado o Red Bull. A minha mãe trabalhava então numa editora anti-regime, a «Seara Nova», que a ânsia pelo poder (absoluto) do PCP haveria de levar à falência no pós-25 de Abril. Oficialmente, ninguém sabia que o ditador já tinha ido para os anjinhos. Mas a malta não era parva e também tinha informadores. Alguém chegou à «Seara...» com a notícia fresquinha, testemunhada em presença pela equipa que tratava Salazar desde que ele falhara a cadeira. Transposto o cepticismo que o homem parecia eterno, bateram-se palmas e gritou-se Hurra! Hurra! (esta parte do Hurra! Hurra! sou eu agora a inventar). A minha mãe dirigiu-se ao telefone e telefonou ao meu pai (que já não era hóspede em Peniche): «Prepara uma garrafa de champanhe, hoje temos que comemorar!». No meio da excitação, uma colega, quase tropeçando nos fios, arranca-lhe o bocal do ouvido e acrescenta: «Acabaram as filmagens do “Solar das Oliveiras”. À noite há festa!». E pronto, o meu pai correu à Baixa a comprar uma gravata vermelha. Não chegou a haver arraial. Passado pouco mais de meia hora, a «Seara...» é invadida por agentes da polícia política que solicitam – sem grandes faz favor ou por obséquio – que a minha mãe e a amiga os acompanhem à sede. Os nomes coincidiam rigorosamente com as vozes sob escuta, e acabam as duas nas instalações da PIDE ao Chiado. Verdade seja dita que lhes serviram jantar. A minha mãe, sempre desconfiada, recusou educadamente o repasto «não fosse aquilo ter para lá alguma droga!». A amiga, alentejana folgazona que hoje seria catalogada de obesa, comeu e apenas não repetiu porque não quis abusar de tamanha hospitalidade. A minha mãe trejurou um evento sentimental para justificar o champanhe. A amiga disse que sofria de amnésia e que não se lembrava sequer da última vez que tinha ido ao cinema. Entretanto a minha mãe devia estar com uma fome dos diabos, e foi quando deu entrada em cena o sempre impecável subdirector Sacchetti (ainda vivinho da costa, pelo menos na Primavera estava, e com contactos telefónicos à distância de um só clique) que se lhe dirigiu com a costumada eloquência: «A senhora não tem vergonha! Ainda agora saiu de cá o marido e nem isso lhe serviu de lição!». Agit-prop e lições de moral à parte, quem lhes passou a carta de alforria foi ele, não sem antes invocar repetidamente o sagrado nome do falecido, esse «grande homem de quem já sentimos saudades!».
À porta da António Maria Cardoso esperava-as o meu pai, um pequeno saco na mão. Dentro não havia champanhe. Convencido que a madrugada seria longa para a mulher, juntara à pressa algumas mudas de roupa e julgo que uma escova de dentes. Usava a gravata vermelha, o que a minha mãe considerou certamente um repto desnecessário. Depois a amiga disse que nem se comera assim tão mal e foram comemorar na mesma. Isto agora contado tem graça mas na altura imagino.
A história que quero contar diz respeito à minha mãe.
A minha mãe foi levada para onde andam agora a construir um condomínio de luxo com vista, ouvi dizer, sobre um marco de suplícios, em dia muito fácil de fixar. Foi no dia em que o Oliveira bateu asas e voou, apesar de na altura a Coca-Cola estar proibida e ninguém ainda ter inventado o Red Bull. A minha mãe trabalhava então numa editora anti-regime, a «Seara Nova», que a ânsia pelo poder (absoluto) do PCP haveria de levar à falência no pós-25 de Abril. Oficialmente, ninguém sabia que o ditador já tinha ido para os anjinhos. Mas a malta não era parva e também tinha informadores. Alguém chegou à «Seara...» com a notícia fresquinha, testemunhada em presença pela equipa que tratava Salazar desde que ele falhara a cadeira. Transposto o cepticismo que o homem parecia eterno, bateram-se palmas e gritou-se Hurra! Hurra! (esta parte do Hurra! Hurra! sou eu agora a inventar). A minha mãe dirigiu-se ao telefone e telefonou ao meu pai (que já não era hóspede em Peniche): «Prepara uma garrafa de champanhe, hoje temos que comemorar!». No meio da excitação, uma colega, quase tropeçando nos fios, arranca-lhe o bocal do ouvido e acrescenta: «Acabaram as filmagens do “Solar das Oliveiras”. À noite há festa!». E pronto, o meu pai correu à Baixa a comprar uma gravata vermelha. Não chegou a haver arraial. Passado pouco mais de meia hora, a «Seara...» é invadida por agentes da polícia política que solicitam – sem grandes faz favor ou por obséquio – que a minha mãe e a amiga os acompanhem à sede. Os nomes coincidiam rigorosamente com as vozes sob escuta, e acabam as duas nas instalações da PIDE ao Chiado. Verdade seja dita que lhes serviram jantar. A minha mãe, sempre desconfiada, recusou educadamente o repasto «não fosse aquilo ter para lá alguma droga!». A amiga, alentejana folgazona que hoje seria catalogada de obesa, comeu e apenas não repetiu porque não quis abusar de tamanha hospitalidade. A minha mãe trejurou um evento sentimental para justificar o champanhe. A amiga disse que sofria de amnésia e que não se lembrava sequer da última vez que tinha ido ao cinema. Entretanto a minha mãe devia estar com uma fome dos diabos, e foi quando deu entrada em cena o sempre impecável subdirector Sacchetti (ainda vivinho da costa, pelo menos na Primavera estava, e com contactos telefónicos à distância de um só clique) que se lhe dirigiu com a costumada eloquência: «A senhora não tem vergonha! Ainda agora saiu de cá o marido e nem isso lhe serviu de lição!». Agit-prop e lições de moral à parte, quem lhes passou a carta de alforria foi ele, não sem antes invocar repetidamente o sagrado nome do falecido, esse «grande homem de quem já sentimos saudades!».
À porta da António Maria Cardoso esperava-as o meu pai, um pequeno saco na mão. Dentro não havia champanhe. Convencido que a madrugada seria longa para a mulher, juntara à pressa algumas mudas de roupa e julgo que uma escova de dentes. Usava a gravata vermelha, o que a minha mãe considerou certamente um repto desnecessário. Depois a amiga disse que nem se comera assim tão mal e foram comemorar na mesma. Isto agora contado tem graça mas na altura imagino.
10 comentários:
Mas é bom que se continue a contar e a relembrar, sempre, estas histórias e outras como estas pois a memória é muito curta.
poema benito:
http://www.johncoulthart.com/feuilleton/2008/11/30/november/
Adorei a tua história, ou da tua mãe, mas essencialmente o modo como a contaste.
Hoje tudo isto dá vontade de rir... é um facto, mas a que preço?
Quantos não tiveram a mesma sorte e nem filhos deixaram para nos contar as histórias dos pais?
Adorei, adorei.
Vou voltar mais vezes para ler as tuas histórias.
Jinhos
Tem graça porque conta com graça.
Evoca-se em tom galhofeiro
mas
na altura, havia - o medo...! que é coisa que, no momento, apaga a graça
e qu'a gente, de momento, esquece ou nem sabe.
Gostei imenso deste seu texto, da história e também da sua expressividade! Felizes os que têm histórias de vida para contar! Significa que viveram mesmo! :)
Tu estás é em Grande forma, e ainda por cima na alcova. Marafada ;)
F, vou continuar a recordar
Tite, muito obrigada pela visita
-pirata-vermelho, era mesmo para ter graça (eu quando estou nervosa dá-me para rir...)
Milu, eu é que gostei de a ver por cá, agora veja lá se não desaparece de novo
Fallorca, ainda publico as memórias (micronarrativas na alcova de uma ex-militante da extrema-esquerda); as micronarrativas estão na moda e na alcova dá logo outro interesse à coisa
«...as micronarrativas estão na moda e na alcova dá logo outro interesse à coisa...»
Assim é que é falar, ou escrever: nada como a coisa ser interessante, independentemente do interesse da própria coisa
kant não diria melhor
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