17/11/08

Podem-me chamar reaccionária mas eu gostei muito de ir à escola

Fui uma privilegiada e não vou pedir desculpa por isso. A partir dos cinco anos frequentei um colégio particular, ali para os lados de Belém. Conhecido pela "Escola do Senhor Gomes", na realidade, se a memória não me falha, chamava-se Externato do Rio Seco. Quanto ao Senhor Gomes, era um reformado da Marinha com ideias arejadas sobre educação. Para a época.
Apesar do colégio ser feminino e usarmos todas batas de folhos, a música e a ginástica eram obrigatórias, assim como as descidas ao laboratório, a partir da terceira classe, e as visitas de estudo, que incluíam invariavelmente os Jerónimos e os jardins da frente. Era vê-lo, já velho mas rijo de carnes, a mandar parar as viaturas para que deixassem passar as meninas! E as meninas lá passavam em filas de duas a duas e mãos obrigatoriamente dadas, em direcção à Fonte Luminosa que mudava de cor e era uma das atracções da pátria.
No colégio ― que hoje julgo albergar um condomínio ― , então uma casa senhorial com amplas cavalariças, adaptadas a salão de ginástica em dias de frio e chuva, e edifício principal, com pátio e entrada no alto de uma pequena escadaria de pedra, transformado num espaço despido de paredes onde se alojavam as quatro classes em open space, havia carteiras individuais de madeira com tampo inclinado para manter as costas direitas, tinteiro embutido e ranhura para colocar a caneta. Que era de aparo.
Só na quarta classe se permitia o uso de tinta permanente e as Bic já andava eu no liceu. Aprendíamos a escrever copiando abecedários góticos transparentes e a partir do segundo ano dar mais de três erros num ditado seria o correspondente, nos dias de hoje, a um diagnóstico precoce de dislexia (isto não foi assim há tanto tempo; os que me conhecem sabem que não sou do tempo da Guerra – refiro-me à segunda, evidentemente).
No laboratório, que ficava na cave do edifício principal e era um sítio cheio de mistérios e tubos de ensaio retorcidos onde o ar era escuro e cheirava a pó, lembro-me de ter aprendido a classificar as folhas segundo o respectivo recorte. Nunca mais me esqueci, vá-se la lá saber porquê, das lanceoladas.
Havia festas nas datas do costume. Decorriam numa sala com palco e cortina a sério na casa do director (lateral às cavalariças por cujo portão largo nós entravámos para o colégio) e constavam sempre de uma demonstração de canto coral acompanhado ao piano por uma senhora saída directamente de um filme já na altura muito antigo (eu como era da terceira voz desafinada e não conseguia atinar com o canon ficava sempre na fila de trás, em silêncio religioso, recompensada depois com a recitação individual de uma poesia – e ainda hoje me lembro da Balada da Neve por causa disso…), e de uma peça de teatro que normalmente me corria mal – ou porque o anjinho entrava em cena com uma das asas abalroadas ou porque os remendos no rabo das calças do pobrezinho apareciam a servir de joelheiras. Os pais das crianças riam muito e eu engasgava-me nas deixas.
Nunca levei reguadas. Minto. Houve uma altura em que levava reguadas regularmente, mas era eu própria quem as aplicava. Explico. O Senhor Gomes, que tinha umas ideias avançadas para a época (mesmo que não acreditem...), pusera em prática um exercício de memória. Reproduzia no quadro um desenho com vários elementos, deixava que o observássemos durante alguns minutos, apagava-o e depois mandava-nos executá-lo de cor. A professora da quarta classe, que não a minha, era a encarregue de zelar pelos resultados. Perversa e autoritária (qualidades transversais aos mais variados tipos de pedagogo...), aplicava uma reguada a quem falhasse no teste. A mim faltava-me sempre qualquer coisa. Talvez por isso, a dada altura desistiu de me bater. Apontava-me a régua com a cabeça, eu dirigia-me à secretária dela e desferia com o vigor, que era nulo, o invariável castigo. Até que houve um dia em que o Senhor Gomes acabou com aquilo.
Há anos que não pensava nele. E não é pelo que estarão a pensar.

23 comentários:

Armando Rocheteau disse...

Há anos que não pensava nele. E não é pelo que estarão a pensar. Já agora em que estaremos a pensar?

Anónimo disse...

A única coisa em que estava a pensar, era no gozo do texto que escreveste e voltarei a ler depois do pequeno-almoço.
É que parece mal teclar com a boca cheia... ;)

Ana Cristina Leonardo disse...

Rocheteau, frankly, I dont give a dam!
Fallorca, come lá os cereais sossegado e obrigada!

-pirata-vermelho- disse...

Saudosismo bacoco e blasfémias inaceitáveis!
Ai de si se um daqueles crâneos das 'ciências da enducação' a ouve...

Anónimo disse...

Reaccionária.

António

Anónimo disse...

A escola é a catequese do Estado. As personagens do Faulkner ou do Luis Buñuel não iam à escola...

Anónimo disse...

Esqueci-me do Huckleberry Finn...

Ana Cristina Leonardo disse...

-pirata-vermelho-, cada um tem as memórias que pode
António, estava a ver que ninguém usava a palavra
Manuel, suponho que para saberes isso aprendeste a ler nalgum sítio antes de conseguires ler o Faulkner. Poupa-me lá ao bê-a-bá do niilismo

Armando Rocheteau disse...

Leonardo, com toda a franqueza, limitei-me a brincar com uma frase tua!
Eu não gostei de ir à escola. Em contrapartida os meus filhos gostam. E então?

Ana Cristina Leonardo disse...

rocheteau, e então? nem percebo a pergunta.

Anónimo disse...

eu tb gostei.
e caga na opnião dos outros.

João Lisboa disse...

Claro que ir à escola era (e deveria continuar a ser) muito bom. A Dona Helena da primária (oops!... agora, não se pode dizer "primária", é "1º ciclo") era uma víbora e puxava-nos as orelhas, o Liceu Camões era coutada facha do piorio mas nunca me ouvirão dizer que as pobres criancinhas sairam de lá traumatizadas e marcadas para toda a vida. Mas ouvem-me dizer que - de um modo geral - aprendi muito e bem.

Bastava só ter retirado o bolor facho. O resto podia ter ficado praticamente tudo. Umas pinceladazitas de "modernidade" qb e a obra ainda hoje poderia estar de pé e pronta a habitar.

F disse...

Eu gostei muito de ir à escola. Faziam-nos sentir responsáveis. Confiavam em nós. Havia lugar para as nossas iniciativas.
Foi em Inglaterra nos anos 60.
Também não peço desculpa por sentir que fui uma privilegiada.

Anónimo disse...

Remato, posso?, com o hino do jardim-escola. Ah, sim, também fui um privilegiado, andei no dito numa terra de analfabetos e analfabrutos:
Afinadinhos?
«Na nossa escola haja alegria / sejamos sempre bons companheiros / que sempre seja o nosso dia / sermos bonzitos e verdadeiros».

Anónimo disse...

"suponho que para saberes isso aprendeste a ler nalgum sítio antes de conseguires ler o Faulkner."

Mas o niilismo também aprendi na Escola...

Ana Cristina Leonardo disse...

candida, sigo a sua opinião.
joão, também me parece.
f., sorte a sua!
fallorca, invejo-te, a mim não me deixavam cantar.
manuel, de que queixas, então?

Anónimo disse...

De nada. A minha professora primária foi a melhor introdução que tive ao divino Marquês e ao Sacher-Masoch...Não fiquei traumatizado. E adorava os colegas e o recreio. Oh pá, os colegas, que saudades.

Ana Cristina Leonardo disse...

pronto, manuel, não gostaste de ir à escola. já podias ter dito.

F disse...

Devo dizer que também havia o reverso da medalha. Quem se portasse mal levava com uma sapatilha que tinha marcado na sola (a giz) as palavras "FOR YOU". Assim o desgraçado(a) exibia, nos calções (saia), a sua vergonha pela escola toda. Sorte a minha porque era uma menina bem comportada :)

-pirata-vermelho- disse...

Da escola descrita à escola referida por 'f' vai um mundo de lavagem do pensamento; in englishamerican... notes-se.

bookworm disse...

a partir do segundo ano dar mais de três erros num ditado seria o correspondente, nos dias de hoje, a um diagnóstico precoce de dislexia

e haverá algum motivo que me esteja a escapar para que as criancinhas não aprendam a escrever correctamente? é que eu ainda me lembro perfeitamente da única vez que tive mais do que tive quatro erros num ditado - e foi à conta de acentos mal colocados - e da vergonhaça que senti por tamanho desaire.

Cristina Gomes da Silva disse...

Nas sociedades ditas desenvolvidas, ocidentais, hipernutridas, etc..., a escola é mais ou menos como "A mulher do lado" de Truffaut: nem contigo, nem sem ti. As melhoras, ACL.

Ana Cristina Leonardo disse...

obrigada, cristina