Há uma frase de Margaret Atwood de que gosto muito e não resisto a citar: «Interessarmo-nos pela vida privada de um escritor porque gostamos de um livro dele é como interessarmo-nos por gansos porque gostamos de “foie gras”». Zita Seabra, pelo que li, não é, nem nunca foi, discípula de Baco; o interesse que a sua vida desperta relaciona-se não com a nobre arte da culinária mas com a ciência da História. Apesar disso, decidi trazer Atwood à baila, não só porque a frase dela é uma alfinetada bem lúcida no género biográfico, mas também porque me permite sublinhar a expressão «vida privada». Não é disso que trata Foi Assim.
Cartas na mesa. Este livro é daqueles que suscita ódios e aplausos. Sem grande margem de risco, poderíamos garantir um royal flush apostanto em que, à partida, a atitude do leitor a respeito de Foi Assim coincidirá com a atitude do leitor em relação à autora do mesmo. Porque Zita Seabra, para dizê-lo de forma melíflua, é uma mulher polémica.
Do PCP ao PSD, da militância pela legalização do aborto em 1984 à firme oposição ao mesmo no recente referendo, do ateísmo comunista à Igreja católica, das camisas de xadrez proletário aos saias-casaco... tudo isto gera uma certa estupefacção, outros chamar-lhe-iam irritação. A curiosidade vem por arrasto. Mas, perante o fenómeno que, pelo menos editorialmente, este livro representa, não pude deixar de fazer contas.
Estamos em 2007. A URSS dissolve-se em 1991, o muro de Berlim cai em 1989, o Arquipélago de Gulag, de Soljenistsin, chega em 1974, a Tchecoslováquia é invadida em 1968, a Húngria fora-o em 1956, Estaline morre em 1953, Albert Camus escreve O Homem Revoltado em 1952, Arthur Koestler publica O Zero e o Infinito a seguir à II Guerra Mundial, mais ou menos na mesma altura em que Viktor Kravchenko deserta da URSS e escreve I Choose Freedom, etc. etc.
Por cá, o comunismo também não é um mar de rosas. Francisco Paula de Oliveira (Pavel), Júlio Fogaça, J.A. Silva Marques, Francisco Martins Rodrigues, Francisco Augusto Ferreira (Chico da Cuf), Cândida Ventura, Raimundo Narciso, etc., são nomes malditos ofuscadas pelo brilho atribuído a Cunhal. Alguns deles escreveram memórias: Francisco Augusto Ferreira publicou, entre outros, 26 Anos na União Soviética, Notas de Exílio (1975), J.A. Silva Marques, Relatos da Clandestinidade (o PCP Visto por Dentro) (1976), Cândida Ventura, O «Socialismo» que eu vivi (1984), Raimundo Narciso, A.R.A. Acção Revolucionária Armada (A História Secreta do Braço Armado do PCP) (2000). E, chegado apenas agora, Foi Assim, que ainda gera frisson. Vasco Pulido Valente, pouco dado a impressionar-se por dissidências tardias, veio dizer que este era «o livro que faltava para perceber a grande tragédia do comunismo português». Fui ler.
Partimos sem qualquer apriorismo: nem Santo Agostinho, nem Carolina Salgado nos guiaram. Lemos as 443 páginas e, Pulido Valente que nos permita a discordância, não ficámos a perceber mais da «tragédia do comunismo português» do que já percebíamos (ou não percebíamos) antes. Terminámos, porém, com uma dúvida acrescida: a de não entender a relação da autora com o livro que escreveu.
Vamos por partes. Não sendo uma obra-prima de estilo – faltará à ex-comunista o «dom e a capacidade de escrita», sobrando-lhe «tão-só a vontade de escrever» – e eliminada, pois, a questão do como, restam duas perguntas (o «para quê» fica, legitimamente, no foro privado): escrever o quê, e de que ponto de vista?
Decidiu a autora organizar a autobiografia respeitando a ordem cronológica e começando pelo princípio. E o princípio vem antes do PCP. Assim, o relato inicia-se pela infância e prossegue: juventude, militância, clandestinidade, pós-25 de Abril e a explusão em 1989, só com um voto contra: o de si própria. Termina aí. Mas o problema é que nada do que conta até essa data (a não ser alguns, muito escassos, episódios) é novo: os métodos do PCP, as lutas durante o Estado Novo, a organização piramidal, as casas clandestinas, as «companheiras», a actuação no pós-25 de Abril, o peso de Álvaro Cunhal, as vias de passagem ao socialismo, as infiltrações no aparelho de Estado, tudo isso está hoje documentado e constitui matéria de estudo. É verdade que alguns factos vêm gerando polémica: Raimundo Narciso nega ter estado em casa da ex-camarada; Nuno Ramos de Almeida vem defender o nome do pai, Pedro Ramos de Almeida; o «Serviço Cívico Estudantil» divide opiniões... Nada de bombástico...
E a frustação instala-se à medida que avançamos. A linguagem e os clichés de época aliados à fórmula descritiva (uma espécie de história do PCP contada às crianças, com sublinhados e repetições que chegam a ser penosos), a que se acrescenta a falta de reflexão sobre os acontecimentos (e, muito menos, sobre a actuação da autora, que se limita a repetir, à exaustão, que era assim...), tornam Foi Assim num livro menor, cujo sucesso mediático se justificará por todas as razões, menos pela sua qualidade intrínseca.
Sublinhe-se: a questão não é Zita Seabra ter ou não ter escrito um acto de contrição. A questão nem sequer é nunca percebermos porque não entrega o cartão após o assassinato da amiga Sita Valles pelo MPLA. A questão está em que nada neste livro nos explica – nunca – a sua actuação particular como militante. E se nem todos eles seguiriam o modelo de Georgette (a temível controleira dos primórdios), porque o terá escolhido ela?
Apesar do «olhar pessoal» referido no preâmbulo, poucas vezes a vemos incidi-lo sobre si. Gasta, porém, demasiado tempo a referir nomes de quem não resistiu às torturas da PIDE ou teve comportamentos menos exemplares na dedicação à causa. E há reflexões de um primarismo inaceitável, como aquela em que, referindo-se ao «relacionamento difícil com as mulheres» de Cunhal, remata: «Os psicanalistas diriam certamente que isso vinha da relação conflituosa que ele teve com a mãe – que, como é sabido [eu não sabia, mas pronto] e ele mo relatou diversas vezes, nunca visitou o filho na cadeia durante todos os anos em que esteve preso.»
Para concluir. Contas feitas, continuará Zita Seabra convencida de ter estado no sítio certo à hora certa? Porque, se por um lado, escreve: «Que ninguém diga que ignorava: os comunistas portugueses sempre souberam de tudo», logo acrescenta: «Mas não me julgue, porque não tem autoridade moral ou ética para o fazer, aquele que não lutou pela liberdade em Portugal (...)». Arthur Koestler disse uma coisa só muito vagamente parecida. Estava-se, porém, nos anos 40, antes do Muro de Berlim e de tudo o resto que, afinal, se sabia.
Cartas na mesa. Este livro é daqueles que suscita ódios e aplausos. Sem grande margem de risco, poderíamos garantir um royal flush apostanto em que, à partida, a atitude do leitor a respeito de Foi Assim coincidirá com a atitude do leitor em relação à autora do mesmo. Porque Zita Seabra, para dizê-lo de forma melíflua, é uma mulher polémica.
Do PCP ao PSD, da militância pela legalização do aborto em 1984 à firme oposição ao mesmo no recente referendo, do ateísmo comunista à Igreja católica, das camisas de xadrez proletário aos saias-casaco... tudo isto gera uma certa estupefacção, outros chamar-lhe-iam irritação. A curiosidade vem por arrasto. Mas, perante o fenómeno que, pelo menos editorialmente, este livro representa, não pude deixar de fazer contas.
Estamos em 2007. A URSS dissolve-se em 1991, o muro de Berlim cai em 1989, o Arquipélago de Gulag, de Soljenistsin, chega em 1974, a Tchecoslováquia é invadida em 1968, a Húngria fora-o em 1956, Estaline morre em 1953, Albert Camus escreve O Homem Revoltado em 1952, Arthur Koestler publica O Zero e o Infinito a seguir à II Guerra Mundial, mais ou menos na mesma altura em que Viktor Kravchenko deserta da URSS e escreve I Choose Freedom, etc. etc.
Por cá, o comunismo também não é um mar de rosas. Francisco Paula de Oliveira (Pavel), Júlio Fogaça, J.A. Silva Marques, Francisco Martins Rodrigues, Francisco Augusto Ferreira (Chico da Cuf), Cândida Ventura, Raimundo Narciso, etc., são nomes malditos ofuscadas pelo brilho atribuído a Cunhal. Alguns deles escreveram memórias: Francisco Augusto Ferreira publicou, entre outros, 26 Anos na União Soviética, Notas de Exílio (1975), J.A. Silva Marques, Relatos da Clandestinidade (o PCP Visto por Dentro) (1976), Cândida Ventura, O «Socialismo» que eu vivi (1984), Raimundo Narciso, A.R.A. Acção Revolucionária Armada (A História Secreta do Braço Armado do PCP) (2000). E, chegado apenas agora, Foi Assim, que ainda gera frisson. Vasco Pulido Valente, pouco dado a impressionar-se por dissidências tardias, veio dizer que este era «o livro que faltava para perceber a grande tragédia do comunismo português». Fui ler.
Partimos sem qualquer apriorismo: nem Santo Agostinho, nem Carolina Salgado nos guiaram. Lemos as 443 páginas e, Pulido Valente que nos permita a discordância, não ficámos a perceber mais da «tragédia do comunismo português» do que já percebíamos (ou não percebíamos) antes. Terminámos, porém, com uma dúvida acrescida: a de não entender a relação da autora com o livro que escreveu.
Vamos por partes. Não sendo uma obra-prima de estilo – faltará à ex-comunista o «dom e a capacidade de escrita», sobrando-lhe «tão-só a vontade de escrever» – e eliminada, pois, a questão do como, restam duas perguntas (o «para quê» fica, legitimamente, no foro privado): escrever o quê, e de que ponto de vista?
Decidiu a autora organizar a autobiografia respeitando a ordem cronológica e começando pelo princípio. E o princípio vem antes do PCP. Assim, o relato inicia-se pela infância e prossegue: juventude, militância, clandestinidade, pós-25 de Abril e a explusão em 1989, só com um voto contra: o de si própria. Termina aí. Mas o problema é que nada do que conta até essa data (a não ser alguns, muito escassos, episódios) é novo: os métodos do PCP, as lutas durante o Estado Novo, a organização piramidal, as casas clandestinas, as «companheiras», a actuação no pós-25 de Abril, o peso de Álvaro Cunhal, as vias de passagem ao socialismo, as infiltrações no aparelho de Estado, tudo isso está hoje documentado e constitui matéria de estudo. É verdade que alguns factos vêm gerando polémica: Raimundo Narciso nega ter estado em casa da ex-camarada; Nuno Ramos de Almeida vem defender o nome do pai, Pedro Ramos de Almeida; o «Serviço Cívico Estudantil» divide opiniões... Nada de bombástico...
E a frustação instala-se à medida que avançamos. A linguagem e os clichés de época aliados à fórmula descritiva (uma espécie de história do PCP contada às crianças, com sublinhados e repetições que chegam a ser penosos), a que se acrescenta a falta de reflexão sobre os acontecimentos (e, muito menos, sobre a actuação da autora, que se limita a repetir, à exaustão, que era assim...), tornam Foi Assim num livro menor, cujo sucesso mediático se justificará por todas as razões, menos pela sua qualidade intrínseca.
Sublinhe-se: a questão não é Zita Seabra ter ou não ter escrito um acto de contrição. A questão nem sequer é nunca percebermos porque não entrega o cartão após o assassinato da amiga Sita Valles pelo MPLA. A questão está em que nada neste livro nos explica – nunca – a sua actuação particular como militante. E se nem todos eles seguiriam o modelo de Georgette (a temível controleira dos primórdios), porque o terá escolhido ela?
Apesar do «olhar pessoal» referido no preâmbulo, poucas vezes a vemos incidi-lo sobre si. Gasta, porém, demasiado tempo a referir nomes de quem não resistiu às torturas da PIDE ou teve comportamentos menos exemplares na dedicação à causa. E há reflexões de um primarismo inaceitável, como aquela em que, referindo-se ao «relacionamento difícil com as mulheres» de Cunhal, remata: «Os psicanalistas diriam certamente que isso vinha da relação conflituosa que ele teve com a mãe – que, como é sabido [eu não sabia, mas pronto] e ele mo relatou diversas vezes, nunca visitou o filho na cadeia durante todos os anos em que esteve preso.»
Para concluir. Contas feitas, continuará Zita Seabra convencida de ter estado no sítio certo à hora certa? Porque, se por um lado, escreve: «Que ninguém diga que ignorava: os comunistas portugueses sempre souberam de tudo», logo acrescenta: «Mas não me julgue, porque não tem autoridade moral ou ética para o fazer, aquele que não lutou pela liberdade em Portugal (...)». Arthur Koestler disse uma coisa só muito vagamente parecida. Estava-se, porém, nos anos 40, antes do Muro de Berlim e de tudo o resto que, afinal, se sabia.
7 comentários:
"poderíamos garantir um royal flush apostanto em que" gralha.
Brilhante texto Cristina. Não sei é como tiveste paciência de passar das primeiras 5 páginas de tão medíocre livro.
the horror! "brilhante" é um adjectivo do prof. martelo (além de ser um derivado da brilhantina).
Muito bom ou excelente é que é.
Conheci Zita Seabra.
Comprei o livro mas ainda não tive tempo de o ler. Dei apenas uma vista do olhos sobre algumas passagens que me podiam dizer respeito.
No pouco que li do livro encontrei logo erros ou imprecisões (factuais).
Chega a ser estranho que uma mulher como Zita cometa tais erros.
Olá, Ana Cristina. Só há relativamente pouco tempo percebi que o nickname era um link. Julgava que o azul era uma questão estética. Mas afinal na Net nada se perde...
Quando vi a Zita Seabra encetar a, obrigatória, campanha publicitária para promover o livro, pensei que deveria ter-se chamado "Foi Assado". Se eu fosse de ler livros, optaria este Verão, pelo "Código Da Vinci". Acho-o outra obra-prima olvidada.
Apesar dos aparentes (sobre)saltos quânticos de Zita Seabra, as pessoas não mudam assim tanto. Ela continua a ser o que era - uma pessoa que se veste mal pra burro.
muito bom. obrigada pela recensão alargada. e o título do post parece uma paródia ao título do livro...
"Minha cabeça estremece contra todo o esquecimento"
Os processos dos PC's foram bem descritos por Koestler.
A santificação do líder e demais mitologias bem desmontados no tema de "O traidor e do herói", tocado na literatura por Borges, no cinema por Bertolucci e na banda desenhada por Pratt.
Sobre Zita muito bem escreve a Ana Cristina.
Não li o livro, não tenciono ler. O seu artigo diz-me o suficiente e questiona o essencial: a paisagem é-me ampla e familiar.
Conheci os processos, conheci o processo da dita, conheci vários e variados. Muitos «processos» me desagradaram - mesmo relativamente a quem não me era simpático. Mas também conheci gente humilde, heróica, inenarrável, que me merecem lealdade e silêncio. Sou uma leitora muito atenta e apreciadora da obra do JPP que considero a mais isenta.
(Para o caso de já não se lembrar, Manuela Nascimento)
[Atão sonegou as bolas de Berlim???? - SUA FEIA!]
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