Eles não se entendem. Há um alemão que prevê furacões, há um português que prevê seca. E nunca a meteorologia foi tão mediática. O aquecimento global tornou-se conversa de café, apesar de haver cada vez menos cafés onde se converse. Embora seja um post gigantesco, vou transcrever o texto que escrevi para o jornal Expresso e que foi publicado este fim-de-semana. Traz entrevista com James Lovelock, o cientista que nos aconselha a fugir o mais depressa possível para o Norte. Não do país, mas do planeta. Segue o artigo:
No final de 2006, James Lovelock afirmava à revista «Veja»: «Até ao fim do século XXI, é provável que cerca de 80 por cento da população humana desapareça. Os restantes 20 por cento irão viver no Árctico e em alguns, poucos, oásis de outros continentes, onde as temperaturas forem mais baixas e houver um pouco de chuva». A citação vem assinada por um homem de ciência que não faz futurologia nem tem conversas com Deus. Ainda assim, o retrato que traça da evolução próxima da Terra (A Vingança de Gaia, Gradiva, 2007) está longe de nos garantir o sono dos justos. Poderá ele estar enganado? Afinal, ao contrário das religiões, errar é próprio da ciência: «Na ciência não existem certezas, apenas possibilidades. Penso, porém, que a probabilidade de catástrofe climática é tão grande que não nos podemos atrever a ignorá-la», concluiu na entrevista, via e-mail, que acedeu dar ao Expresso. São palavras sensatas que, em certa medida, nos confortam da histeria politicamente correcta levada ao rubro pela jornalista Ellen Goodman nas páginas do «Boston Globe»: «Let's just say that global warming deniers are now on a par with Holocaust deniers, though one denies the past and the other denies the present and future»
De súbito, sem cerimónia e sem que nos apercebessemos, o aquecimento global puxou da cadeira e sentou-se à nossa mesa. Como tema de conversa, ultrapassou a biodiversidade, a fome em África, a guerra no Iraque, a pedófilia, a vida íntima de Cristo ou qualquer outro assunto da agenda global. A preocupação com o estado do tempo, tradicionalmente uma esquisitice britânica, conquistou o público de todos os continentes, da Europa à Austrália, passando pelos EUA, e aí apesar de Bush mas certamente graças a Al Gore e ao seu oscarizado Uma Verdade Inconveniente, filme que se manteve nos tops de bilheteira, mesmo depois das contas de electricidade do antigo candidato à Casa Branca terem sido tornadas públicas pelo «Tennessee Center for Policy Research»: mensalmente, um gasto de energia 20 vezes superior ao de que qualquer outro lar americano.
Lovelock não é um político. Em A Vingança de Gaia não se mostra excessivamente entusiasmado com o Tratado de Quioto e, à nossa pergunta sobre a corrida aos créditos de carbono (possibilidade oferecida às indústrias ou países mais poluidores para continuarem a emitir GEE negociando créditos alheios), o cientista respondeu num tom «blasé» pouco abonatório para os homens da governação: «Não se deve culpar as empresas por quererem realizar lucros quando os governos são suficientemente idiotas para oferecem subsídios». Os subsídios a que se refere dizem respeito a dois ítens que fazem as delícias dos Verdes e sobre os quais se mostra particularmente crítico: «Não duvido do valor das energias renováveis e a verdade é que utilizámos largamente a energia hidráulica muito antes de terem começado as preocupações ambientais, e o mesmo seria verdade para a energia das marés se optássemos pela sua utilização. São económicas e não necessitam de subsídios. Já a energia eólica e os biocombustíveis, considero-as pouco económicas e eficazes, sendo propostas em grande parte como gestos políticos. Além de sujeitas a subsídios, o que geralmente permite concluir que se trata de um empreendimento com falhas, ambientalmente são mais nocivas do que benéficas». Sabendo-se que, até 2010, Portugal vai investir (segundo estudo da Espírito Santo Research) 6,4 mil milhões de euros em energias renováveis, 69,4 por cento dos quais nas eólicas, percebe-se melhor por que é que o criador de Gaia, não sendo um político, pode ser, por vezes, tão incómodo.
Prolífero e polémico também. Nascido em 1919, tem formação em química, medicina e biofísica. Inventor encartado, ganharia visibilidade quando, na década de 70, lança, com a bióloga Lynn Margulis, a hipótese de Gaia, uma visão da Terra que, metaforicamente, a propõe à imagem e semelhança de um organismo vivo. Gaia, nome sugerido a Lovelock pelo escritor William Golding durante um passeio dos dois pelo campo inglês, transformar-se-ia numa bandeira «New Age», embora o cientista, bem positivo, nunca tivesse pisado tais pântanos. O facto é que se viu criticado pelos seus pares: «Os críticos de Gaia foram, de início, principalmente cientistas especializados em disciplinas como a biologia e a geologia e eram muito ruidosos. Os cientistas especializados em clima acolheram bem Gaia e continuam a fazê-lo. Como não sou uma pessoa insensível, foi-me difícil aguentar as críticas e estas duraram mais de 20 anos», confessou na entrevista ao Expresso.
O corte radical com os Verdes (que já tinha sido ensaido na polémica que os opôs a Lovelock a propósito dos CFC) dá-se quando, para surpresa de muitos, o homem a quem a revista «New Scientist» atribuíra o título de «Ghandi da Ciência» aparece a defender o nuclear como única alternativa real aos actuais problemas energéticos. Quando lhe perguntamos «Mas, e então Chernobyl?», a resposta chega rápida: «Se nos últimos 40 anos a indústria aeronáutica tivesse tido dois acidentes, um causando a perda de 75 vidas e o outro apenas três, acha que a consideraríamos pouco segura e teríamos medo de voar? Aparentemente não, porque houve milhares de acidentes mortais e mesmo assim continuamos a andar de avião. Portanto, porquê pegar só nos acidentes negativos em 40 anos de energia nuclear? A maioria das histórias contadas pelos lobbies dos Verdes sobre energia nuclear são disparates, histórias semelhantes às que nos impingiam no século XIX sobre o diabo e os lobisomens. A última contagem das agências das Nações Unidas sobre Chernobyl afirmava que houve 75 mortos entre os trabalhadores da central e as equipas de limpeza. E foi tudo. Veja o sítio UNSCEAR na web». A sugestão fica dada.
Todos estes e outros assuntos estão devidamente explanados em A Vingança de Gaia, um livro não aconselhado a pessoas sensíveis. Energias alternativas, agricultura biológica, desenvolvimento sustentado, todos os conceitos que nos habituámos a pôr na lista dos bons da fita são passados a pente fino. Por e-mail, Lovelock reafirma o que escreveu: «A teoria de Gaia é interdisciplinar e vê a Terra passando agora do estado frio que os geólogos denominam «casa de gelo» (icehouse) para um estado de calor a que chamam «estufa» (greenhouse). Uma vez iniciado, o movimento é irreversível – aquilo que fizemos foi desencadeá-lo. Não só o movimento é efectivamente irreversível como, mesmo que o pudéssemos contrariar, a inércia das reacções humanas impediria qualquer acção útil em menos de 30 anos. Acha que podemos esperar que a China, a Índia e os EUA deixem de queimar carvão nesse prazo de tempo? É por isso que digo que precisamos de retirar de forma ordeira para as regiões mais frescas do Norte, onde os alimentos possam continuar a ser cultivados».
Mas, e o se o aquecimento global for um mito, como alguns cépticos insistem em defender? Pusemos a questão: «O climatologista Richard Lindsen tem sido uma das vozes mais críticas, falando mesmo de perseguição aos cientistas que discordam da “visão alarmista do aquecimento global por acção humana”. Dada a posição de cientista independente que sempre fez questão de manter ao longo da sua carreira, com as subquentes vantagens e desvantagens de tal estatuto, a presente unanimidade climática não lhe causa nenhuma estranheza?». Lovelock respondeu: «Apenas uma pequena minoria de cientistas duvida de que somos a principal causa do aquecimento global. Richard Lindsen é um cientista respeitado e pode, como eu nos primeiros tempos de Gaia, ter razão. O que há de maravilhoso na ciência é que a natureza é o árbitro final.». Ora aí está uma resposta que as Ellen Goodman deste mundo nunca nos conseguiriam dar.