30/10/11

A book a day keeps the doctor away: "Um Mundo Iluminado", Hubert Dreyfus e Sean Dorrance Kelly

Escreveu Susan Neiman em O Mal no Pensamento Moderno que “lamentar a perda absoluta de referências para julgar o certo e o errado devia ser supérfluo um século depois de Nietzsche”. E acrescentou a filósofa norte-americana no mesmo ensaio: “(…) Pode não haver um princípio geral que prove que a tortura e o genocídio são condenáveis, mas isso não nos impede de os considerarmos casos paradigmáticos de mal”.
O livro não se resume ao optimismo que se poderá ler nestas frases; ainda assim gostaríamos de lembrar que tal optimismo foi, ainda há pouco, negado pelos factos: a legitimidade da tortura, por exemplo, a pretexto do 11 de Setembro, voltou a ser defendida (ou, pelo menos, admitida) por gente que, dias antes, não hesitaríamos em considerar civilizada e convidar para casa.
Um Mundo Iluminado, escrito pelos filósofos norte-americanos Hubert Dreyfus e Sean Dorrance Kelly, tem como ponto de partida a multiplicidade e volatilidade dos tempos que correm. A profusão de escolhas (paralisantes). A velocidade com que somos bombardeados por diferentes opiniões. A perda de referentes absolutos e princípios gerais. A deflagração dos pontos de referência, para além de nós próprios.
Em suma, parte do mundo intuito por Nietzsche (que seria hoje o nosso) — não certamente por acaso, O nosso niilismo contemporâneo é o título do primeiro capítulo —, tentando formas de fugir ao desespero que lhe estará associado.
Dito isto, não se tenta aqui qualquer renascimento de Deus — na medida em que poderíamos afirmar que Deus, do ponto de vista da clareza existencial, tornava as coisas mais fáceis, iluminando-as, à imagem do Muro de Berlim que, antes de cair, assinalava (ainda) com (alguma) precisão o lugar dos bons e dos maus.
O tema não é novo. Hubert Dreyfus e Sean Dorrance Kelly tentam, porém, uma aproximação original ao problema (porque de um problema se trata…).
Numa sociedade dessacralizada e secular, onde encontrar sustento que nos alimente o espírito e contrarie a anemia existencial?
As respostas, se as houver, estão nos grandes clássicos da literatura ocidental, garantem os autores. Mas, talvez para que a ideia de “grandes clássicos” não afastasse de imediato metade dos potenciais leitores, Um Mundo Iluminado opta por descolar ancorado a um escritor contemporâneo, David Foster Wallace, que, apesar de franco adepto da ironia, não resistiu à depressão e foi encontrado morto, enforcado, em 2008.
A obra de Wallace, analisada em contraponto com o percurso de Elizabeth Gilbert (autora do best-seller, Comer, Orar, Amar), introduz-nos ao coração do ensaio: “Na perspectiva nietzscheana de Wallace, nós somos os únicos agentes activos do universo, responsáveis por criar, a partir do nada, qualquer noção que possa existir do sagrado e do divino. Gilbert, pelo contrário, adopta uma concepção como a de Lutero da maturidade. Na sua perspectiva, somos destinatários passivos da vontade divina, nada mais do que receptáculos para a graça que ele possa decidir conceder-nos. Não haverá um meio-termo?”
Em busca desse “meio-termo”, somos conduzidos aos mundos de Homero, Dante, Melville, Descartes e Kant, guiados, não por uma visão teleológica da existência, mas por caminhos sinuosos pejados de deuses.
À visão tecnológica, empobrecida e insípida da actualidade, Hubert Dreyfus e Sean Dorrance Kelly contrapõem um mundo politeísta alicerçado na physis e na poiética. Mesmo que, no final, continuemos a desconfiar da sua possibilidade, fartámo-nos de aprender.
Um Mundo Iluminado, Hubert Dreyfus e Sean Dorrance Kelly, 2011, Lua de Papel, trad. de Francisco Gonçalves

29/10/11

À espera dos bárbaros

Cavafy, o grego, não conheceu Kadhafi, o líbio. Este, chefe de Estado entre 1969 e 2011, foi assassinado a 20 de Outubro último.
A sua morte foi registada em directo; a não ser que — à semelhança de No Palácio do Fim de Martin Amis — Senad el Sadýk el Ureybi — o rebelde líbio que disse perante as câmaras não lhe agradar “a ideia de ele ser capturado vivo” e daí ter-lhe dado dois tiros, “um na cabeça, outro no peito” — se tenha enganado no alvo e atingido tão-só um sósia.
Não vi o vídeo e para o caso tanto faz. Não vi, como não vi o da criança chinesa atropelada, do enforcamento de Saddam ou da decapitação de Daniel Pearl. Em jovem assisti, por militância cultural, a 120 Dias de Sodoma de Pier Paolo Pasoloni. Enouhg is enough.
Leio agora que foram divulgadas mais imagens dos últimos momentos do alucinado, que apenas acrescentam crueldade à crueldade. Entretanto, o Ocidente festejou a queda do ditador — um “líder carismático”, nas palavras de José Sócrates (convidado de honra do 41º aniversário da revolução líbia), que ainda em finais de 2007 acampava no Forte de São Julião da Barra, era recebido com pompa pelo governo português e até dava “aulas” sobre os “Problemas da Sociedade Contemporânea” na reitoria da Universidade Clássica de Lisboa.
Não se pense, porém, que a hipocrisia foi exclusivo da “diplomacia económica” de Sócrates/Amado.
Aznar,González, Prodi, Berlusconi, Sarkozy, Putin, Barroso, Lula, Chávez, Fidel, Condoleezza Rice, Obama… nenhum faltou ao beija-mão. A alguns narizes, o smell do petróleo cheira melhor que o nº 5 da Chanel.
A indiferença com que reagiram à ignomínia do assassínio do homem diz bem do novo paradigma que assinala o caminho do declínio: em vez das públicas virtudes, Estado de Direito e tal, acção directa, no caso, versão kiss, kiss, bang, bang.
É o regresso ao Far West, mas sem bons — só feios e maus.
Citando Cavafy, o poeta que não conheceu Kadhafi: “E agora, que vai ser de nós sem os Bárbaros? Essa gente, mesmo assim, era uma solução”.

28/10/11

Arbeit macht frei

Vai uma bierrrrr?

Para abrir o apetite: "dispensar pessoal é alternativa"; "Não há espaço para as pessoas que não queiram trabalhar, para a não produtividade, no Portugal de hoje"; "[o aumento de meia-hora de trabalho diário] É uma medida excelente para aumentar a produtividade. Se peca, é por ser pouco"

We'll Always Have Billy Wilder [e que se lixe o orçamento]


AVANTI (o início)

25/10/11

Este post tem que ver com o anterior e o caraças se eu não hei-de [tentar] perceber esta treta...

(...) Pensem em países como o Reino Unido, Japão e os EUA que têm grandes dívidas e défices e, no entanto, continuam a pedir emprestado a baixas taxas de juro. Qual é o seu segredo? A resposta, em parte, reside no facto de terem moeda própria e de os investidores financeiros saberem que, num aperto, estes países podem financiar os seus défices criando mais moeda. Se o Banco Central Europeu garantisse da mesma forma as dívidas europeias a crise seria muitíssimo aliviada.

Isso não causaria inflação? Provavelmente não … a criação de moeda numa economia deprimida não é inflacionista. Mais ainda, na realidade a Europa precisa de uma inflação um pouco mais alta. Uma taxa de inflação demasiado baixa condenaria a Europa do sul a anos de deflação esmagadora, na prática garantindo desemprego elevado por muito tempo e uma cadeia de falências.

Mas, segundo nos dizem, este tipo de política é inaceitável. O estatuto que criou o Banco Central Europeu supostamente proíbe este tipo de manobra, embora não custe a crer que alguns advogados inteligentes arranjariam uma forma de contornar isso. O problema de fundo é que o euro foi desenhado para combater a última guerra. É uma Linha Maginot feita para impedir a repetição dos anos setenta, o que é pior que inútil quando o verdadeiro perigo está na repetição dos anos trinta.

E, como disse, este desenrolar dos acontecimentos é trágico.

A história da Europa do pós-guerra é profundamente instrutiva. Sobre as ruínas da guerra, os Europeus construíram um sistema de paz e democracia, e ao mesmo tempo construíram sociedades que, embora imperfeitas – e há alguma que não o seja? – são possivelmente as mais decentes da história humana.

Contudo, esta conquista está ameaçada porque a elite europeia, na sua arrogância, trancou o Continente num sistema monetário que recriou o espartilho do padrão-ouro e este – tal como o padrão-ouro nos anos trinta – tornou-se uma armadilha mortal.

Pode ser que os líderes europeus acabem por apresentar um plano de resgate verdadeiramente credível. Desejo isso, mas não acredito nisso.

A verdade amarga é que, cada vez mais, o sistema do euro parece estar condenado. E a verdade ainda mais amarga é que, tendo em conta a forma como este sistema se tem comportado, a Europa poderia melhorar a sua situação se ele acabasse o mais depressa possível.
Paul Krugman, lido AQUI

A famigerada dívida pública explicada às crianças ou para responder à minha filha mais nova: se há falta de dinheiro por que não fabricam mais?


Visto aqui

23/10/11

América

A voz do dono ou de como o Luís M. Jorge topa o Ricardo Salgado

As notícias são tantas e tamanhas que o efeito é estonteante. Subsídios? Viste-los. Aumentos salariais? Queria-los. Direitos adquiridos? Esquece-los. Impostos? Paga-los. Estado social? Bye, bye, Maria Alice.
Resumindo, é que éramos muito pobres: emprestaram-nos dinheiro e o dinheiro, puff!
Numa primeira fase, em betão e monumentos; depois em betão e monumentos + novas tecnologias (Magalhães – de fazerem inveja a Steve Jobs –; painéis solares – adaptados a céu nublado, chuva e até à “noite muito escura” de Caeiro).
A agricultura (que era o que era) foi-se, a indústria (que era o que era) kaputt; as pescas, idem. Passámos do Algarve ao Allgarve; de Jardim à Beira-Mar Plantado à Europe's West Coast. No entretanto, baixou-se o analfabetismo, a mortalidade infantil e legalizou-se o casamento gay. Citando Sholem Aleichem, “Podia ter sido pior; e não se pense no melhor que para isso não há limites”.
Dizem-nos agora que falimos. Sempre abominei a ditadura do “nós” (“estamos com fome, não estamos?”; “estamos com frio, não estamos?”; “vamos tomar um banhinho, não vamos?”…) mas se é para ser usado, seja: “We are not amused” (Victoria dixit).
Conta-se n' As Farpas que a solução para os problemas de Portugal do Partido Reformista se resumia ao polissílabo, economias. A história repete-se, como afiançava o outro.
A palavra é papagueada de manhã à noite e madrugada fora. Como a mãe ubíqua de Woody Allen em Histórias de Nova Iorque, desenha-se no céu de Portugal e ilhas adjacentes (Madeira, inclusive).
O efeito é devastador. Os portugueses, excepto os contabilistas, já não saem de casa. No outro dia, porém, um cidadão de nome Luís M. Jorge arriscou pôr o pé na rua. Foi, então, que viu Ricardo Salgado a entrar no edifício onde decorria o Conselho de Ministros! Corajosamente denunciou a coisa no blogue Vida Breve: “Um Governo que recebe a família Espírito Santo enquanto discute o Orçamento de Estado é um Governo que reconhece, tão bem como o anterior, a voz do dono. E se eu puder chatear, que remédio”.
So be it.

21/10/11

Enquanto isso, na Grécia, mais austeridade aprovada pelos socialistas no poder...

Foto DAQUI
Notícia AQUI

Cisma venezuelano?

"Quero dar Graças a Deus e por isso a promessa ao Santo Cristo de La Grita, o mais antigo dos cristos. Vim apresentar-me ao chefe, ao comandante dos comandantes, a Cristo Redentor. Eu, um cristão cada dia mais cristão"

"O cristianismo verdadeiro é a doutrina da paz e do amor e não há outra"

"O socialismo é o caminho de Cristo".

"Desde do ponto de vista da ciência política e da realidade social, o socialismo é o caminho de Cristo".

DAQUI

20/10/11

Muammar Khadafi: kiss, kiss, bang, bang ou "o strip-tease do nosso humanismo"*










Primeiro foi o Bin Laden. Agora o Muammar Khadafi. Capturá-los, tá quieto. Julgá-los, daria muito trabalho...
Pessoalmente, acho o mundo menos poluído. Mas, por favor, não se armem em virgens.

*Jean-Paul Sartre in Prefácio a Os Condenados da Terra de Franz Fanon [e eu nem sou fã do existencialismo]

A Arca de Noé

Um deputado do PSD chamado Pedro Saraiva veio ontem dizer na Assembleia da República que a alternativa à crise era adoptar-se “a visão da águia, a energia de um dragão, a força do leão e a postura briosa da formiga". Aqui há uns tempos, Cavaco Silva falara do sorriso das vacas.

É impressão minha, ou estamos entregues aos bichos?

18/10/11

O novo orçamento é de nos deixar os cabelos em pé...

Imagem [e ideia] roubada AQUI

Se eu fosse professora mandava o José Luís Peixoto ir pentear macacos

"(...) Basta um esforço mínimo da memória, basta um plim pequenino de gratidão para nos apercebermos do quanto devemos aos professores. Devemos-lhes muito daquilo que somos, devemos-lhes muito de tudo. Há algo de definitivo e eterno nessa missão, nesse verbo que é transmitido de geração em geração, ensinado. Com as suas pastas de professores, os seus blazers, os seus Ford Fiesta com cadeirinha para os filhos no banco de trás, os professores de hoje são iguais de ontem. O acto que praticam é igual ao que foi exercido por outros professores, com outros penteados, que existiram há séculos ou há décadas. (...) DAQUI

Pastas de professores?! Blazers?! FordFiesta? Cadeirinhas para os filhos no banco de trás?! PENTEADOS!!!
Isto sim, é a decadência.

Está ao nível dos painéis solares nocturnos mas para pior — falamos do Programa Nacional de Elevado Potencial Hidroeléctrico

Quase três vezes o défice de Portugal é quanto o Estado vai pagar à EDP e à Iberdrola, as concessionárias das futuras barragens na bacia do Douro, durante os próximos 70 anos.
Um “desastre económico, social e ambiental”, que é como define uma dezena de grupos ecologistas e locais que enviaram à ‘troika’ um estudo que demonstra por que é que o “Programa Nacional de Barragens de Elevado Potencial Hidroeléctrico (PNBEPH) deveria ser imediatamente suspenso e revogado”.
As concessionárias das futuras barragens vão produzir “metade da energia prevista” no plano, com o dobro do investimento pedido, mediante o pagamento anual de um subsídio do Estado de 49 milhões de euros e ainda de 20 mil euros por megawatt produzido, assegurado pela lei da “Garantia de Potência”, que o ex-ministro Mira Amaral apelidou de “escandalosa” e recomendou “acabar, sob pena de ficar inviabilizada qualquer recuperação económica do país”.
“Isto é uma fraude sobre o Estado e sobre os cidadãos portugueses”, resume João Joanaz de Melo, presidente do GEOTA, um dos signatários da missiva à ‘troika’ e autores do estudo, que aguarda a sensatez vinda de fora para salvar o país.
“Positivo é o facto de ainda ninguém ter desmentido a nossa exposição, a ‘troika’ já ter começado a questionar o Governo sobre as barragens e o actual Ministério da Economia e o do Ambiente terem-nos dito que estão preocupados com este assunto e que estão a estudar o problema”, revelou a mesma fonte, apontando que “é preciso que a opinião pública reaja e faça parar as barragens, como aconteceu com Foz Coa”.
O défice nacional era de 6.687 milhões de euros, em Agosto passado. Durante as concessões das barragens, um total de 16 mil milhões de euros serão pagos às empresas de electricidade, que produzirão apenas 0,5% da energia consumida em Portugal, representam só 2% do potencial de energia que poderia ser obtida através de um programa de eficiência energética e respondem por 3% do aumento das necessidades energéticas do país.
“Se fossem feitos investimentos para obter uma eficiência energética equivalente ao que as novas barragens vão produzir, as contas de electricidade baixariam 10%. Mas, se fossem feitos investimentos com vista a obter o potencial máximo de eficiência energética, as contas dos consumidores baixariam 30%”, explica o estudo enviado à ‘troika’. Os investimentos em causa, na versão mais intensiva e dispendiosa, rondariam os 410 milhões de euros e teriam retorno em menos de três anos.
Além dos efeitos económicos, as barragens têm demonstrados prejuízos para o património natural e cultural e para a economia da região. “Ao contrário do que diz a propaganda oficial, as barragens geralmente não geram desenvolvimento local. Criam empregos na construção, mas muito menos do que noutros tipo de investimento, e apenas temporariamente. Por exemplo, projectos de eficiência energética ou de renovação urbana beneficiam toda a economia (famílias, Estado e instituições privadas, pequenas e grandes empresas) e geram cerca do dobro de empregos por milhão de euros investidos, em comparação com barragens ou outras grandes obras públicas”, argumentam.
"A quem é que aproveita o crime?”, questiona Joanaz de Melo. “Estas decisões não foram tomadas no interesse público, mas é do interesse público parar o programa nacional de barragens. Temos de parar este desastre”, concluiu.
A Comissão Europeia alertou o Governo português para os “sérios impactos ambientais”, no caso dos estudos efectuados no âmbito das barragens do Baixo Vouga e de Foz Tua, que “violam a legislação europeia, incluindo a Directiva dos Habitats e a Directiva da Qualidade da Água”. O Governo invocou o interesse nacional para anular a lei comunitária.
O parecer do Instituto Marítimo-Portuário, invocando ameaças reais à navegabilidade do Douro, andou “desaparecido” no estudo de impacto ambiental, pelo que, segundo Manuela Cunha, do Partido Os Verdes, “não ficaram acauteladas responsabilidades e ficou a EDP isenta de pagar as obras que venham a ser necessárias para garantir a navegabilidade”.
Mais informação AQUI

17/10/11

Moral e Religião

Sou do tempo em que eram muitas as famílias a fruir de um pobrezinho de estimação.
Não lá em casa, porque o pater familias, antifascista convicto, inimigo da caridadezinha e fã incondicional de Victor Hugo, preferia incentivar à revolta os miseráveis que nos batiam à porta, recordando que a culpa era de Salazar e do regime, frase que desde cedo me pareceu cair em saco roto, no caso em barriga vazia, intuindo precocemente que fome e insurreição nem sempre andam de mãos dadas.
Na mesma época, tinha aulas de Religião e Moral e, apesar do ateísmo dominante no círculo familiar (ou quiçá por isso), nunca sonhei com incêndios. Recordo dois episódios.
O primeiro teve que ver com a minha perplexidade ante o mistério da Santíssima Trindade. A professora tentou esclarecer a coisa falando de três fósforos acesos que, reunidos, geravam uma só chama, continuando, porém, a ser três, mas só mais tarde percebi que a minha dúvida fizera correr rios de tinta muito antes de eu ser nascida: “(…) a pouca filosofia que existia na Europa sofreu uma viragem depressivamente teológica, centrando-se em disputas tais como se Deus era uma Pessoa em Três ou Três Pessoas Numa, a natureza exacta da Substância do Espírito Santo e quantos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete (no caso improvável de desejarem realmente fazê-o)”, Jim Hankinson, O Especialista Instantâneo em Filosofia.
O segundo episódio é o que me traz. Era opinião maioritária na turma que as esmolas deviam destinar-se prioritariamente a artigos de primeira necessidade. A mestra da cadeira, contrariando o reaccionarismo precoce das alunas, argumentou, então, que os meninos pobres também tinham direito a rebuçados.
A ideia será cândida, mas foi essa mulher cujo nome não recordo que me veio à cabeça quando na esplanada do café vi o miúdo, 20 anos (?), 11 da manhã, corpo franzino, casaco desportivo puído e fecho estragado, os braços sobre a mesa amparando a cabeça deitada (abandonada a leitura das ofertas de emprego do jornal), um raio de sol que lhe aquecia a nuca, uma cerveja vazia à frente. E a cerveja era a única coisa que o tornava humano.

16/10/11

Que raio de democracia é esta que treme à vista de um ovo?

"A marcha partiu do Marquês de Pombal rumo a São Bento. Mas um ovo atirado contra a escadaria da Assembleia da República originou um situação de tensão entre os manifestantes quando a polícia foi deter a pessoa que terá feito o arremesso."
Lido AQUI

14/10/11

Eu hoje acordei escatológica: permita Deus que toda o leite com chocolate que beberem, o vão cagar depois ao cemitério já de olhos bem fechados

Enquanto o partido dos imbecis que contribuiu activamente para a nossa falência se mostra, tal virgem pudica, indignado com as medidas do governo, Louçã e Passos trocam galhardetes sobre o... leite com chocolate.
É que nem com as pragas de Alvor isto lá vai!

Da arte de (se) governar(em)

Gráfico que dá conta das vantagens de se passar pelo arco da governação ou de como um rapaz chamado Ascenso Simões, ainda por cima muito, muito feio, passou de um rendimento anual de cerca de 70 mil euros/ano para pouco mais de 122 mil.
Os exemplos são 15 e incluem o Mexia (680 mil versus cerca de 3 milhões) ou o Pina Moura (22.814 versus 697.338).
Conclusão: quando for grande quero-me casar com um homem de Bloco Central (mesmo que seja muito, muito feio).

Como os Políticos Enriquecem em Portugal, António Sérgio Azenha, Lua de Papel

11/10/11

Grandessíssimas bestas!

Depois das aves raras do governo do defunto engenheiro terem dado luz verde para a destruição de parte da Linha do Tua linha que em qualquer país civilizado do mundo seria considerada património é a vez de a nova maioria aprovar o abate de milhares de árvores.
Estamos mesmo entregues às plantas*!

*(relembrando sempre Lewis Black: In my lifetime, we've gone from Eisenhower to George W. Bush. We've gone from John F. Kennedy to Al Gore. If this is evolution, I believe that in twelve years, we'll be voting for plants»)

10/10/11

O mundo mudou muito desde que Sócrates foi para Paris, Armando para o Ultramar e Rui Pedro Soares transitou para o futebol

"A verdade é que se escondeu informação e se enganou a opinião pública. A acreditar nos dirigentes nacionais, vivíamos, há quatro ou cinco anos, um confortável desafogo".

Depois de uma situação que permitia "fazer planos de grande dimensão e enorme ambição", passou-se, "em pouco tempo, num punhado de anos", a uma "situação de iminente falência e de quase bancarrota imediata".

António Barreto,
aqui

08/10/11

Mentes abertas, olariras

Em 1996, Richard Dawkins, famoso pelo seu combate a favor do ateísmo, diria durante a palestra que proferiu a convite do “Richard Dimbleby Lecture”: “By all means let's be open-minded, but not so open-minded that our brains drop out”.
A exclamação relacionava-se com o tema da conferência (grosseiramente: contra o charlatanismo, marchar, marchar…); alargou, entretanto, o seu âmbito, adoptada como divisa por todos os que insistem em distinguir O Tratado Sobre a Tolerância de Voltaire da frase de autor anónimo “Tu tens a tua opinião, eu tenho a minha e acabou-se a conversa”.
Dito isto, e embora correndo o risco dos “miolos me saltarem”, voto pela tolerância.
No livro citado, Voltaire escreveu, referindo-se à violência com base religiosa: “O direito de intolerância é, pois, absurdo e bárbaro: é o direito dos tigres, e é bem horrível: porque os tigres matam para comer e nós andámos a exterminar-nos por causa de parágrafos”.
Aparentemente, estamos mais tolerantes e até a Arábia Saudita acaba de reconhecer o direito de voto às mulheres (desde, claro, que os respectivos maridos, pais ou irmãos assim o entendam…).
Sublinho, porém, o aparentemente porque, muitas vezes (desconfio) é a pressão social e não a convicção pessoal que nos leva a contemporizar com certos valores aceites, sendo raros aqueles que, de facto, comungam da abertura de espírito da mulher “que, aquando do julgamento de Oscar Wilde, disse que não se importava com o que faziam, desde que não o fizessem na rua e não assustassem os cavalos” (Brendan Behan, Nova Iorque).
A minha desconfiança confirma-se. A padaria da minha rua fica paredes meias com uma série de after hours. Abre agora ao domingo e serve uma multidão de noctívagos que, de óculos escuros, lá vai aviar carcaças por volta do meio-dia.
No último domingo, enquanto pagava, comentei: “Tem pouco movimento. Será da crise?”. A simpática padeira segredou-me, cúmplice e agradada: “Não. É que dantes eram pretos. Agora são gays. Está muito mais calmo!”.

01/10/11

Viva a D. Maria II

Quando me ponho a pensar naquilo d’o orgulho de ser português assunto que raramente me ocorre por ser pouco atreita a patriotismos vem-me sempre à cabeça a abolição da pena de morte.
Indiferente à “doçura de sentimentos”, ao “ânimo sofredor” ou à “valentia sem alardes” que dizem (alguns) caracterizar a História de Portugal, quando chego àquela parte da D. Maria II a assinar o fim das execuções por crimes civis em 1852 sinto que nem tudo foi em vão.
Não é que isso anule o resto (“o Nada é só resto”, escreveu o poeta Reinaldo Ferreira). No caso, o resto podia também bem ser, como se relata nas Farpas, um homem condenado a varrer as ruas de Gouveia… por matar a mulher.
"Oh! Entenda-se bem: De modo nenhum queremos limitar os maridos no direito de matar suas mulheres. São questões domésticas com que nada temos. (…). Que os maridos quando lhes convenha, para melhor organização do interior doméstico, partam suas mulheres aos pedaços – coisa é que nem nos escandaliza nem nos jubila. (…) entendemos que, quando um marido se sinta dominado pelo desejo invencível de partir alguma coisa – é mais natural ir à cozinha trinchar o roast-beef do que à alcova, retalhar a esposa!"
Ramalho e Eça ridicularizaram assim, com a habitual ironia, um tribunal oitocentista. As recentes execuções nos EUA paralisam-me infelizmente o verbo.
A 21/09/2011, dois homens foram mortos pela Justiça americana, um na Georgia, outro no Texas: Troy Davis, um negro acusado de ter morto um polícia branco, clamou até ao fim a sua inocência, sujeito de um processo cheio de buracos, adiamentos e pedidos de clemência que incluíram Ratzinger, Jimmy Carter, Desmond Tutu e a Amnistia Internacional; Lawrence Brewer, um branco condenado por matar um negro, arrastando-o preso por uma corda à traseira de um jipe.
Repugnam-me as duas sentenças, mesmo se a minha simpatia se esgota em Troy Davis. E creio não ser preciso ter lido O Último Dia de um Condenado de Victor Hugo para se perceber porquê.