Não lá em casa, porque o pater familias, antifascista convicto, inimigo da caridadezinha e fã incondicional de Victor Hugo, preferia incentivar à revolta os miseráveis que nos batiam à porta, recordando que a culpa era de Salazar e do regime, frase que desde cedo me pareceu cair em saco roto, no caso em barriga vazia, intuindo precocemente que fome e insurreição nem sempre andam de mãos dadas.
Na mesma época, tinha aulas de Religião e Moral e, apesar do ateísmo dominante no círculo familiar (ou quiçá por isso), nunca sonhei com incêndios. Recordo dois episódios.
O primeiro teve que ver com a minha perplexidade ante o mistério da Santíssima Trindade. A professora tentou esclarecer a coisa falando de três fósforos acesos que, reunidos, geravam uma só chama, continuando, porém, a ser três, mas só mais tarde percebi que a minha dúvida fizera correr rios de tinta muito antes de eu ser nascida: “(…) a pouca filosofia que existia na Europa sofreu uma viragem depressivamente teológica, centrando-se em disputas tais como se Deus era uma Pessoa em Três ou Três Pessoas Numa, a natureza exacta da Substância do Espírito Santo e quantos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete (no caso improvável de desejarem realmente fazê-o)”, Jim Hankinson, O Especialista Instantâneo em Filosofia.
O segundo episódio é o que me traz. Era opinião maioritária na turma que as esmolas deviam destinar-se prioritariamente a artigos de primeira necessidade. A mestra da cadeira, contrariando o reaccionarismo precoce das alunas, argumentou, então, que os meninos pobres também tinham direito a rebuçados.
O segundo episódio é o que me traz. Era opinião maioritária na turma que as esmolas deviam destinar-se prioritariamente a artigos de primeira necessidade. A mestra da cadeira, contrariando o reaccionarismo precoce das alunas, argumentou, então, que os meninos pobres também tinham direito a rebuçados.
A ideia será cândida, mas foi essa mulher cujo nome não recordo que me veio à cabeça quando na esplanada do café vi o miúdo, 20 anos (?), 11 da manhã, corpo franzino, casaco desportivo puído e fecho estragado, os braços sobre a mesa amparando a cabeça deitada (abandonada a leitura das ofertas de emprego do jornal), um raio de sol que lhe aquecia a nuca, uma cerveja vazia à frente. E a cerveja era a única coisa que o tornava humano.
13 comentários:
Por postas destas é que sempre cá volto.
Tem uns pastéis deliciosos!
No seguimento do que o André Couto disse, posso eu mesma também dizer: Que delícia de trecho.
Obrigada.
Fico à espera de mais. Enquanto (por enquanto) ainda não se cobrar por tal.
Ah, grande Leoparda, caraças!
sois uns queridos!
Estava com vontade de escrever um panegírico, mas como não sei, só posso dizer: excelente.
A melhor coisa que podem fazer é comprar o Expresso, ajudam o senhor Balsemão e deliciam-se logo no sábado.
Um miúdo com 20 anos? Boa
"me veio à cabeça quando na esplanada do café vi o miúdo, 20 anos (?), 11 da manhã, corpo franzino, casaco desportivo puído e fecho estragado, os braços sobre a mesa amparando a cabeça deitada (abandonada a leitura das ofertas de emprego do jornal), um raio de sol que lhe aquecia a nuca, uma cerveja vazia à frente. E a cerveja era a única coisa que o tornava humano."
Mas que arrepio que me deu pela espinha acima!
Anónimo, deduzo que seja demasiado novo para ler estas coisas...
No Porto, contaram-me que uma dessas famílias generosas teve de renunciar à caridade quando um dia o pobre deles foi apanhado em flagrante vício sumptuário a comer um pastel. De nata. Em público. Numa pastelaria. Sentado. Não sei se com canela.
É preciso nata. Lata. Coiso.
Morgada, acho que o Buñuel contou uma história parecida num filme que metia freiras (claro!)
Fado, obrigada
-:)
... e, já agora, ajudam-me tb. a mim (se correr mal a vida ao Dr. Balsemão, estou feita...)
Ana Cristina, essa sua Mestra era uma mulher boa. Os miúdos povrezinhos precisavam dos rebuçados para acompanhar com as beatas que apanhavam do chão,que já estavam um bocado rançosas.
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