31/08/07
SEM PALAVRAS
Desde o ano passado que na Nicarágua é proibido (e criminalizado) qualquer tipo de aborto. A lei, que foi aprovada para gáudio da Santa Madre Igreja e dos Evangélicos, voltou nestes últimos dias a mostrar a sua verdadeira face quando confrontada com a notícia da gravidez de uma criança de 10 anos, violada por um familiar adulto, entretanto dado como desaparecido. Mesmo se, de repente, a Pastelaria parece ter sido tomada de assalto pelo tema, ser-me-ia impossível não referir o caso. Evita, o nome dado à menina, recorda o sucedido em 2003 com Rosita, de 9, cuja gravidez, resultado de uma violação, terminou com um aborto provocado, facto que incendiou o país, com o então bispo auxiliar de Manágua, Jorge Solórzano, a anunciar, na impossibilidade de fogueiras, que «la Iglesia católica castiga con la "pena de excomunión" no sólo a quienes practicaron el aborto, sino a los padres de la niña, a las enfermeras y a todas las personas que les ayudaron».
Exemplos de bestialidade que nos recordam as sábias palavras de Jean Meslier (1664-1729) registadas no Testamento: «Je voudrais, et ce sera le dernier et le plus ardent de mes souhaits, je voudrais que le dernier des rois fût étranglé avec les boyaux du dernier prêtre». A Nicarágua não é uma monarquia. Quanto ao resto...
Só um acrescento: segundo a Organização Mundial de Saúde, calcula-se em 150 milhões, o número de meninas abusadas anualmente em todo o mundo.
30/08/07
TERRORISMO E ÁGUA BENTA
Um grupo de peregrinos do santuário francês de Lourdes (França), que regressava a Itália num voo fretado pelo Vaticano carregando consigo garrafinhas de água benzida, viu a mercadoria milagrosa ser apreendida pelos funcionários do aeroporto, à luz das leis antiterroristas que proibe aos passageiros o transporte de líquidos. Perante o insulto à Nossa Senhora, os crentes preferiram ingerir o conteúdo das garrafas a desperdiçar a bebida.
29/08/07
AINDA O ABORTO E O VATICANO
Numa polémica que opõe o Vaticano à Amnistia Internacional, a nação católica veio pôr os pontos nos iis: uma mulher que foi violada não deve abortar porque o que está em causa é a preservação da vida humana. A propósito do radicalismo desta posição, repesquei um texto sobre o aborto escrito por mim para o Expresso, e que nunca chegou a ver a luz do dia no jornal. Na altura não havia Pastelaria, mas alguns blogues tiveram a amabilidade de o colocar online. É servido hoje aqui. Porque há gente cujo dogmatismo continua a bradar aos céus.
«Um bebé não é um problema metafísico» foi uma frase que encheu as ruas de Paris, há cerca de 20 anos, durante uma campanha em prol da maternidade. Em Portugal, hoje, a discussão diz respeito ao aborto. Paula Teixeira da Cruz, do Movimento Voto Sim, afirmou que «não estamos a discutir nem a vida nem a morte. Recuso-me a discutir o problema nesses termos» (DN, 20-01-2007). A verdade é que muitos insistem em fazê-lo.
Não sendo os bebés, definitivamente, um problema metafísico, há questões levantadas pelos opositores do Sim que nos deixam na dúvida sobre se não o serão o zigoto, o embrião e o feto. Um dos argumentos mais publicitados pelo Não assenta no seguinte raciocínio: (premissa a) o feto é, em potência, um ser humano; (premissa b) todos os seres humanos, mesmo os seres humanos em potência, têm direito à vida; (conclusão): o feto tem direito à vida.
Daí se infere que a interrupção voluntária da gravidez (IVG) é atentatória desse direito, logo, um crime, um crime parente próximo do homicídio.
É esta, aliás, a posição oficial da Igreja católica, que classifica o aborto como um dos pecados sujeitos a excomunhão (e isto apesar de algumas vozes discordantes, como a do padre Anselmo Borges, teólogo e professor de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que propõe a distinção entre vida, vida humana e pessoa humana): «A gravidade moral do aborto provocado aparece em toda a sua verdade, quando se reconhece que se trata de um homicídio (...)» (João Paulo II, Enc. Evangelium Vitae, 25/03/1995, n. 58); e ainda: «Também a legislação canónica, há pouco renovada, continua nesta linha quando determina que «quem procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão "latae sententiae", isto é, automática» (idem, n. 62).
Mas, a não ser que se faça da vida humana uma leitura religiosa – e essa é uma posição legítima, embora, obviamente, impossível de sujeitar a referendo – a argumentação atrás exposta, contrária à IVG, não parece defensável. Porque se o que falta provar é, precisamente, que todos os seres humanos em potência têm direito à vida, não se pode, ao mesmo tempo, afirmá-lo como premissa sem incorrer em falácia.
O filósofo Pedro Madeira vai mais longe. Em «Argumentos sobre o Aborto» (www.criticanarede.com) acrescenta: «(...) é, de qualquer modo, falso que, se um ser tem potencialmente um direito, então tem, efectivamente, esse direito. Enquanto cidadão português, sou potencialmente presidente da República; o presidente da República é o Comandante Supremo das Forças Armadas; no entanto, daí não se segue que eu seja agora o Comandante Supremo das Forças Armadas».
Do lado do Sim, insiste-se nas condições sócio-económicas das mulheres desfavorecidas e na realidade dos números, apesar da lei proibitiva. São razões fracas, que pecam por circularidade. Porque do facto dos cidadãos carenciados terem menos condições para contratar um assassino não resulta que o Estado deva disponibilizar um serviço grátis de gangsteres ao domicílio. Assim como do facto de existirem ladrões, apesar da lei proibitiva, não se infere que o roubo deva ser legalizado. Note-se que esta contestação aos argumentos do Sim não implica uma equivalência moral dos exemplos. Apenas se pretende mostrar que, nos casos expostos, a sustentabilidade da argumentação é difícil, se não impossível.
Nada disto é novo. O aborto nunca foi um facto pacífico. No Ocidente, durante a Antiguidade, a sua regulamentação, regra geral, apenas tinha em conta os interesses masculinos e, consequentemente, só era punível quando estes eram lesados: «Estigmatizado como sinal de decadência dos costumes ou visto como atentado à ordem familiar e social, o aborto é considerado uma manifestação de inaceitável autonomia feminina» (in História do Aborto, Giulia Galeotti, Edições 70, 2007). Pelo menos até ao século XVIII, o aborto é encarado como um assunto de mulheres. Rodeado de insondáveis mistérios, à semelhança de tudo quanto dizia respeito ao segundo sexo: não por acaso, durante o longo período da «caça às bruxas», que vai do século XIV ao XVII, uma das acusações mais recorrentes é a das práticas abortivas.
Com o cristianismo a impor-se como religião do Estado, o aborto ganhará o estatuto de «crime abominável», um pecado que atenta contra a acção criadora de Deus, destruindo uma criatura que Lhe pertence. Apesar deste princípio geral, a posição sobre o momento em que o feto passa plenamente a pessoa não será unânime. Embora contrário ao aborto, é Santo Agostinho quem avança com a posição mais tolerante, alicerçada na teoria da animação diferida, que faz atrasar o aparecimento da alma em relação ao momento da concepção: «não é homicida quem provoca o aborto antes da infusão da alma no corpo», sugerindo-se que esta surge nos rapazes aos 40 dias e nas raparigas aos 80.
A polémica atravessará séculos: em 1558, o Papa Sisto V publica a bula Effraenatam, que condena à excomunhão todos os que provocarem o aborto, sem fazer distinção entre feto animado ou não animado. Em 1591, Gregório XIV retoma a posição agostiniana. Em 1679, Inocêncio XI vem reafirmar que o nascituro é pessoa desde o momento da concepção… Como se vê, a discussão sobre o estatuto do zigoto, do embrião e do feto (embora sob outros nomes) é coisa antiga.
A ciência acabaria por ser chamada à colação, na medida exacta em que se interessa cada vez mais pelos segredos da vida intra-uterina. Quando, em 1762, Charles Bonnet propõe, em defesa do preformismo, que qualquer organismo já contém em si os futuros seres pré-formados a que dará origem, o naturalista suíço crê estar, não só a contribuir para o avanço da ciência como a confirmar a Génese bíblica. De acordo com o preformismo, desde o momento da concepção, ou o espermatozóide transporta em si um «homunculus» (animaculismo), ou este já está contido no óvulo (ovismo). A polémica entre preformismo e epigénese – hipótese proposta em 1759 pelo embriologista alemão Kaspar Friedrich Wolff, que, ao invés de Bonnet, defendia que as novas estruturas se iam formando progressivamente – foi um dos debates intelectuais mais acesos do século XVIII, só resolvido com a teoria celular, já no século seguinte.
Para todos os efeitos, é interessante sublinhar que então, como agora, as posições contrárias ao aborto, mesmo quando assentes em princípios religiosos mais ou menos assumidos, nunca deixaram de tentar credibilizar-se através da ciência. Vejam-se, por exemplo, as declarações actuais de Nuno Vieira, da Plataforma Não Obrigada, um dos muitos portugueses católicos que responderam à chamada do bispo de Leiria para ir a Fátima «celebrar a vida», esclarecendo que o movimento a que pertence está empenhado em dotar a sua campanha de «dados científicos», procurando utilizar uma «linguagem moderada e esclarecedora».
Se a religião sempre se pronunciou sobre o aborto, e também a ciência viria a intervir no debate, caberá ao Estado e ao Direito legislar sobre o tema.
Aquilo a que alguns autores, nomeadamente Elisabeth Badinter, chamaram «a invenção da maternidade», ideia romântica que começa a propagar-se em finais do século XVIII e que desenha uma mulher plenamente realizada no seu papel de mãe, toda ela bondade e sentimentalismo, cruzar-se-á com os desígnios do poder político, que, pela primeira vez, irá defender o feto, agora não por motivos de fé mas por razões de Estado.
Aquilo a que alguns autores, nomeadamente Elisabeth Badinter, chamaram «a invenção da maternidade», ideia romântica que começa a propagar-se em finais do século XVIII e que desenha uma mulher plenamente realizada no seu papel de mãe, toda ela bondade e sentimentalismo, cruzar-se-á com os desígnios do poder político, que, pela primeira vez, irá defender o feto, agora não por motivos de fé mas por razões de Estado.
A demografia torna-se ideologia (então, como agora, era necessário fazer aumentar a natalidade), a maternidade é explicitamente regulamentada e o aborto voluntário declarado contrário ao patriotismo nascente. Em 1810, o artigo 317 do Código Penal francês é claro: «Quem provocar aborto de uma mulher grávida com ou sem o seu consentimento (...) é punido com prisão». Em Portugal, o Código Penal de 1886 considera o aborto ilícito em todas as situações e, já no século XX, a tendência mantém-se, embora o Projecto da Parte Especial do Código Penal de 1966, do Prof. Eduardo Correia, previsse, como excepção, o aborto terapêutico (acrescente-se, a título de curiosidade, que a tese apresentada por Álvaro Cunhal em 1940 para o exame de 5º ano da Faculdade de Letras de Lisboa versava o tema: O Aborto - Causas e Soluções, Campo das Letras,1997).
O que se verifica, portanto, é que após séculos a tecer, como Penélope, no recato das casas, as mulheres e, consequentemente, a maternidade, ganham uma exposição cada vez maior no espaço público, com todas as consequências daí decorrentes.
A grande alteração ao estado das coisas – tendencialmente repressivo da IVG (em França, por exemplo, em 1942, o aborto é considerado «crime contra o Estado» e sujeito à pena capital – ficará tristemente célebre o caso de Marie-Louise Giraud, guilhotinada a 9 de Junho de 1943 por práticas abortivas) – dar-se-á com a introdução, na década de 70, do argumento que pugna pelo «direito das mulheres ao seu próprio corpo». E, embora hoje em dia, este pareça ser um argumento em desvantagem na discussão, a sua consistente defesa pela filósofa Judith Jarvis Thomson em 1971 continua a ser uma referência inultrapassável (ver A Ética do Aborto, organização e tradução de Pedro Galvão, Dinalivro, 2005).
A grande viragem (mesmo se, já desde 1967, a legislação britânica fosse bastante tolerante na matéria) ocorre em 1970, quando, nos Estados Unidos, o Supremo Tribunal, no caso Roe versus Wade, decide a favor de a mulher poder escolher interromper a gravidez. Segundo Ronald Dworkin, especialista em filosofia do Direito, o que estava então em causa não dizia respeito «ao problema metafísico da pessoa do feto ou teológico da sua alma, mas sim ao problema jurídico de o feto ser ou não ser uma pessoa do ponto de vista constitucional» (in História do Aborto). E se Jane Roe dá hoje voz aos chamados movimentos Pró-vida, a decisão continua a fazer lei, apesar da crescente insistência conservadora em atribuir personalidade jurídica ao feto.
As palavras de Ronald Dworkin poderão, eventualmente, agradar a Paula Teixeira da Cruz. Afinal, colocar a questão do aborto em termos absolutos de vida ou de morte, não parece estar a levar a lugar nenhum, apresentando-se a própria comunidade científica dividida quanto ao assunto. Sendo, contudo, irrecusável, que no debate sobre a IVG, seja ela encarada sob o prisma do Direito ou da Saúde Pública, se introduz um irrecusável problema moral, dificilmente a discussão ética poderá ser varrida para debaixo de tapete.
O caso ocorrido na Irlanda em 1992, que envolveu uma adolescente grávida que ameaçou suicidar-se se não lhe fosse permitido interromper a gravidez, talvez seja exemplo suficiente para percebermos os limites do que está em causa. Sendo a Irlanda, juntamente com Portugal, Polónia e Malta, dos países europeus com legislação mais repressiva na matéria, o Supremo Tribunal irlandês levantaria a interdição da jovem se deslocar ao estrangeiro, e esta pôde abortar em Inglaterra. Ora isto, independentemente da posição de cada um sobre a moralidade do aborto, deixa-nos perante a questão mais radical de todas: como obrigar uma mulher grávida que não quer ser mãe a sê-lo?
O que nos conduz a uma segunda pergunta: até onde pode o Estado interferir nas decisões individuais dos seus cidadãos? É que, independentemente de concordarmos ou não com o argumento do «direito ao corpo», independentemente de aceitarmos ou não a existência de um conflito de interesses entre o estatuto da mulher e do feto, e, até independentemente de nos colocarmos de um lado ou de outro, o que é inegável é que a Natureza atribuiu à mulher o poder da maternidade.
Enquanto assim for, não há legislação que possa mudar esse facto.
PORQUE HÁ COISAS QUE ME IRRITAM. FREUD (II): ERRO OU IMPOSTURA?
«Nós libertamos a sexualidade através do nosso tratamento, não para que o homem possa ser a partir de agora dominado por ela, mas sim para tornar possível uma repressão - a rejeição dos instintos sob orientação de uma instância superior».
Estas palavras de Freud poderiam servir para pulverizar o «sex appeal» que o persegue enquanto paladino de pulsões proibidas. Porque, embora alguns dos discípulos, nomeadamente Reich, tenham cedido à tentação da transferência entre analista e paciente, um puritanismo antigo subjaz ao edifício da psicanálise. Esse será, porém, apenas um dos aspectos em que ele foi bombardeado pelos críticos.
Bendita cocaína. Em 1884, Freud toma conhecimento de dois artigos que acredita poderem subtrai-lo à obscuridade: um descreve os resultados espantosos da cocaína em soldados em stress, o outro relata efeitos idênticos no desmame dos morfinómanos. Após testar a nova droga em si próprio, Freud aconselha-a ao seu amigo Fleischl Marxow (dependente da morfina por razões médicas), e publica poucas semanas depois um artigo em defesa da «droga milagrosa». Acontece que o tratamento prescrito apenas havia substituído uma dependência por outra. Freud considera o facto uma excepção e insiste em escrever que só os morfinómanos se tornam cocainómanos. Em 1886, porém, começam a ser conhecidos os efeitos nefastos da nova droga. A precipitação do pai da psicanálise é considerada uma irresponsabilidade, acabando por ser criticada publicamente pelos seus pares. Quando, em 1887, Freud apresenta uma lista de publicações para concorrer ao título de professor o «episódio da cocaína» é suprimido. Mais tarde, em A Interpretação dos Sonhos, responsabiliza «o infeliz amigo» pelo caso. E. M. Thornton analisará pormenorizadamente esta aventura pouco edificante em Freud and Cocaine (1983, Blond and Briggs), e o desejo de fama e desprezo pela comprovação empírica serão para sempre sublinhados pelos críticos do pai da psicanálise.
A histeria e a pobre Anna O. Em 1885, Freud parte para Paris para um estágio com o neurologista Charcot. Este, uma sumidade na época, ocupava-se, então, da histeria, doença que se veio a provar não existir, remetendo para coisas como a epilepsia ou lesões cerebrais causadas por acidentes. Apesar de, inicialmente, Charcot se inclinar para explicações orgânicas da histeria, o facto, entre outros, da hipnose parecer um método eficaz de tratamento, leva-o a conjecturar causas psicológicas com origem num acontecimento traumático do passado. Freud abraça com entusiasmo esta possibilidade. Quando regressa a Viena e se cruza com Josef Breuer a psicanálise está prestes a nascer.
Breuer fora médico da jovem Anna O., a quem diagnosticara histeria. O que cativou Freud foi o facto do amigo lhe dizer que ela parecia melhorar após o relato dos tresvarios que a assaltavam; a própria chamava a essas sessões «cura pela fala». Embora Breuer nunca tenha afirmado que isso anulava a patologia física, Freud convence-o a integrar Anna O. como exemplo em Estudos sobre a Histeria, obra assinada por ambos que faz a defesa da cura catártica pela fala. Mas o problema com o caso Anna O. - reclamado pelos adeptos como o caso fundador da psicanálise -, é que não só se tratou de «um lamentável erro de diagnóstico como de um fracasso terapêutico completo» (Jacques Bénesteau, Mensonges Freudiens). Sabendo-se que Freud confessou mais tarde a Ernest Jones, que «a pobre doente não se saiu tão bem como poderia inferir-se do relato publicado por Breuer», a pergunta de Richard Webster em Freud Estava Errado. Porquê? torna-se particularmente incómoda: «Por que razão Freud avalizou o relato do tratamento de Anna O. (...), se sabia que a informação de Breuer de a ter curado era falsa?» A pergunta continua a gerar pesadelos aos partidários do método.
Da Teoria da Sedução ao Édipo. A hipótese de que a origem da histeria residia em acontecimentos traumáticos do passado vai refinar-se, com os traumas a ganharem carácter estritamente sexual, ao mesmo tempo que a masturbação sobe à cena, para os casos masculinos: «A origem da neurastenia é a masturbação (...) Podemos observar no círculo dos nossos conhecidos que (pelo menos em populações urbanas) os indivíduos que foram seduzidos por mulheres quando eram jovens escaparam à neurastenia», escreve Freud ao médico e amigo Wilhelm Fliess.
Guiado pela convicção grandiosa de que seria capaz de «abrir todos os segredos com uma única chave», é por esta altura que Freud elabora a Teoria da Sedução, que diz ter construído a partir do estudo de 18 casos, o que será desmentido aquando da publicação, em 1985, das suas cartas enviadas a Fliess. No essencial, a teoria defende que a histeria no adulto recua até a um traumatismo sexual (real) na infância. Ao expô-la em público, acrescenta ter verificado que as convulsões histéricas cessavam mal o paciente tomava consciência do facto reprimido.
O autoconvencimento de Freud ficou registado para a posteridade. Sabe-se mesmo que, por pouco, não matava Emma Eckstein. Aliando às suas as teses estapafúrdias do amigo Fliess, Freud diagnosticara à paciente um «reflexo neurótico nasal» provocado por masturbação, acabando por fazê-la operar ao nariz por Fliess, que lhe deixa pelo menos meio metro de gaze na cavidade nasal. Perante as hemorragias, que não paravam, Freud teima em que não passam de um sintoma histérico, resultado do desejo inconsciente de Emma de o atrair para a beira da cama (o episódio está narrado pelo próprio numa carta a Fliess que Anna Freud censuraria na primeira edição da correspondência).
Mas para a classe médica a convicção dele não basta. Recebe a Teoria da Sedução com prudente cepticismo e fala de «conto de fadas» que precisa de ser testado. É então que Freud tem uma jogada de mestre. Já que a Teoria da Sedução se mostrava demasiado singela, Freud não hesita em substitui-la por uma outra - irrefutável. Afinal, os pacientes tinham-no enganado, nunca tendo sofrido agressões sexuais. Na realidade, a bola do desejo estava do lado deles, e era esse seu desejo reprimido que explicava agora as neuroses. Freud podia escusar-se à prova. Se o desejo edipiano universal (o desejo sexual que as crianças sentem pelos pais) fosse reconhecido, tanto melhor. Se não, a conclusão era que o paciente não conseguira ainda libertar o seu próprio recalcamento. Esta circularidade falaciosa continua, até hoje, a ser o grande quebra-cabeças dos admiradores de Freud. Muitos críticos chamaram-lhe embuste, e não existe uma única comprovação empírica do complexo de Édipo.
Webster é particularmente certeiro: «Sugerir que do acto de mamar resulta prazer sexual não é mais razoável que sugerir que da copulação resulta prazer de comer. Se eu der dois terços de uma cenoura para compensar o cavalo da minha carroça e der o outro terço ao meu cão pastor, não vou admitir que o abanar da cauda deste último significa satisfação equina».
São Freud enfrenta o dragão dos sonhos. Freud propõe-se alargar o âmbito da teoria. É então que avança pelo campo dos sonhos e os define como «realizações de desejos inconscientes». O inconsciente, que tantos reclamam para ele, era conhecido há muito, embora seja certo que com o Iluminismo a Razão subira para o pedestal. Mas o que Freud faz, ao autonomizar o inconsciente sob uma aparência científica, é esvaziá-lo, de facto, de muitas das subtilezas que anteriormente tinha contido. Sob a capa de um monismo biopsicológico, eram as antigas concepções dualistas do homem que regressavam: anjo/demónio, bom/malévolo, agora importadas para o interior da mente.
Os sonhos vistos como manifestações de desejos criam um problema a Freud do qual este se descarta com a mesma facilidade com que abandonara a Teoria da Sedução. Freud conta o caso de uma mulher que detestava passar férias com a sogra. Após a ter elucidado sobre a sua interpretação dos sonhos, a mulher sonha que viaja com a mãe do marido, facto que leva Freud a perguntar-se: «Não era isto a contradição mais evidente da minha teoria de que os sonhos são realizações de desejos?» Mas nada detém um sábio: «O sonho mostrava que eu estava enganado. Era desejo dela eu poder estar enganado, e o sonho apresentava esse desejo cumprido».
O expediente argumentativo desta vez impressiona menos porque já conhecemos o truque. E embora acabe por introduzir certos matizes na teoria, Freud nunca abandona o essencial - e o essencial é poder, pelo sonho, aventurar-se pelo território do inconsciente que ele imaginava transbordando de desejos sexuais inconfessados.
Wittgenstein dá nitidamente conta desta obsessão freudiana pelo recalcamento da líbido: «Freud faz com muita frequência o que poderíamos chamar uma interpretação sexual. Mas é interessante que entre todos os relatos de sonhos que ele apresenta não haja um único exemplo de sonho sexual directo. Porém, estes são tão frequentes como a chuva». Orwell é mais demolidor: «Mas porque é que impulsos sexuais em que eu não tenho medo de pensar quando estou acordado terão de ganhar roupagens de algo diferente quando estou a dormir? E mais, para que serve o disfarce, se na prática é sempre penetrável?»
Os críticos notaram, também aqui, a incapacidade para compreender a complexidade da mente e comportamento humanos. A visão esquemática e redutora, que estenderá à sexualidade das crianças com o axioma das fases oral, anal e genital - que mais não são do que um decalque da descrição evolucionista, vigente na época, da anatomia sexual dos animais não humanos, como mostrou Frank Sulloway -, está, com certeza, mais perto do século XIX do que do nosso século. É estranho que ainda hoje alguns continuem a achá-la revolucionária.
O sexo e o efeito aspirina. As críticas a Freud são muitas e de diversa ordem. Uns indignam-se com a teoria, outros com a prática sectária, outros com o branquear da história do movimento psicanalítico, outros, ainda, com o negócio. Cioran foi directo: «Freud é um profeta, um chefe de seita, um reformador 'religioso'. Confundiu sempre a sua missão com a verdade, em detrimento desta última. Entre os homens de ciência não conseguimos imaginar um espírito menos objectivo. Havia nele algo de fanático, de homem da Antiga Aliança».
Os que o censuram concordam com Cioran, realçando o dogmatismo, o desprezo pelos factos (ou mesmo a invenção de factos - Bénesteau, por exemplo, resume os casos clínicos de Freud a seis, realçando-lhes o fracasso terapêutico), a crença na equação definitiva, no fundamento derradeiro. Se olharmos mais de perto, as explicações de Freud sobre a sexualidade enquanto razão de ser das neuroses parecem-se com as de alguém que, tendo uma dor de cabeça e verificando que ela passa depois de tomar uma aspirina, conclui que a falta da aspirina era a causa da dor de cabeça.
Webster, que tem do homem de Viena uma visão menos negativa do que muitos dos seus críticos, não tem ilusões: «Freud não fez quaisquer verdadeiras descobertas intelectuais. Ele foi o criador de uma pseudo-ciência complexa que deve ser reconhecida como uma das grandes loucuras da civilização ocidental». Crews escreve em Skeptical Engagements que «o freudismo tornou-se para mim o exemplo paradigmático de uma doutrina que obriga a uma lealdade irracional». E certos autores, como Ernest Gellner, sublinham a ligação de Freud à doutrina cristã do pecado original, substituído nele pelo inconsciente, esse lugar obscuro de onde brota o complexo de Édipo, desejo inconfessado de matar o Pai.
O crítico Walter Kendrick terá colocado a questão para a qual nenhuma pirueta interpretativa de Freud encontraria resposta: «Como é que se pode matar o Pai que nos ensinou que a sua morte deve ser o nosso desejo?» («Voice Literary Supplement», Junho/1984). E insistiu em pôr o dedo na ferida: «Certos autores abordam a psicanálise de diversos ângulos e fazem o seu trabalho de demolição de diversas maneiras, mas, à mistura com um desejo frenético de pulverizar Freud, partilham da crença ingénua que se pode varrer o século XX nesse processo. Nenhum deles tenta explicar por que é que um vetusto castelo de cartas como a psicanálise, pronto a desmoronar-se com qualquer aragem, foi arrematado por grosso por toda a cultura que ainda lá mora».
Talvez a resposta a isto dada por Adolf Grünbaum seja aceitável, pelo menos para alguns: «Como frisou Henri Ellenberger, a prevalência de conceitos freudianos vulgarizados torna difícil determinar, de maneira fidedigna, até que ponto as verdadeiras hipóteses psicanalíticas se tornaram realmente influentes na nossa cultura como um todo» («Um Século de Psicanálise», in Freud: Conflito e Cultura). E remata: «Devemos também ter cuidado com a tese bizarra (...) de que a difundida influência das ideias freudianas na cultura ocidental avaliza a justeza comprobatória da empreitada psicanalítica e a validade das suas teorias. Porque a ampla influência cultural de Freud valida tanto os seus princípios como a hegemonia cultural cristã justifica a crença no nascimento virginal de Cristo ou na sua ressurreição».
Estas palavras de Freud poderiam servir para pulverizar o «sex appeal» que o persegue enquanto paladino de pulsões proibidas. Porque, embora alguns dos discípulos, nomeadamente Reich, tenham cedido à tentação da transferência entre analista e paciente, um puritanismo antigo subjaz ao edifício da psicanálise. Esse será, porém, apenas um dos aspectos em que ele foi bombardeado pelos críticos.
Bendita cocaína. Em 1884, Freud toma conhecimento de dois artigos que acredita poderem subtrai-lo à obscuridade: um descreve os resultados espantosos da cocaína em soldados em stress, o outro relata efeitos idênticos no desmame dos morfinómanos. Após testar a nova droga em si próprio, Freud aconselha-a ao seu amigo Fleischl Marxow (dependente da morfina por razões médicas), e publica poucas semanas depois um artigo em defesa da «droga milagrosa». Acontece que o tratamento prescrito apenas havia substituído uma dependência por outra. Freud considera o facto uma excepção e insiste em escrever que só os morfinómanos se tornam cocainómanos. Em 1886, porém, começam a ser conhecidos os efeitos nefastos da nova droga. A precipitação do pai da psicanálise é considerada uma irresponsabilidade, acabando por ser criticada publicamente pelos seus pares. Quando, em 1887, Freud apresenta uma lista de publicações para concorrer ao título de professor o «episódio da cocaína» é suprimido. Mais tarde, em A Interpretação dos Sonhos, responsabiliza «o infeliz amigo» pelo caso. E. M. Thornton analisará pormenorizadamente esta aventura pouco edificante em Freud and Cocaine (1983, Blond and Briggs), e o desejo de fama e desprezo pela comprovação empírica serão para sempre sublinhados pelos críticos do pai da psicanálise.
A histeria e a pobre Anna O. Em 1885, Freud parte para Paris para um estágio com o neurologista Charcot. Este, uma sumidade na época, ocupava-se, então, da histeria, doença que se veio a provar não existir, remetendo para coisas como a epilepsia ou lesões cerebrais causadas por acidentes. Apesar de, inicialmente, Charcot se inclinar para explicações orgânicas da histeria, o facto, entre outros, da hipnose parecer um método eficaz de tratamento, leva-o a conjecturar causas psicológicas com origem num acontecimento traumático do passado. Freud abraça com entusiasmo esta possibilidade. Quando regressa a Viena e se cruza com Josef Breuer a psicanálise está prestes a nascer.
Breuer fora médico da jovem Anna O., a quem diagnosticara histeria. O que cativou Freud foi o facto do amigo lhe dizer que ela parecia melhorar após o relato dos tresvarios que a assaltavam; a própria chamava a essas sessões «cura pela fala». Embora Breuer nunca tenha afirmado que isso anulava a patologia física, Freud convence-o a integrar Anna O. como exemplo em Estudos sobre a Histeria, obra assinada por ambos que faz a defesa da cura catártica pela fala. Mas o problema com o caso Anna O. - reclamado pelos adeptos como o caso fundador da psicanálise -, é que não só se tratou de «um lamentável erro de diagnóstico como de um fracasso terapêutico completo» (Jacques Bénesteau, Mensonges Freudiens). Sabendo-se que Freud confessou mais tarde a Ernest Jones, que «a pobre doente não se saiu tão bem como poderia inferir-se do relato publicado por Breuer», a pergunta de Richard Webster em Freud Estava Errado. Porquê? torna-se particularmente incómoda: «Por que razão Freud avalizou o relato do tratamento de Anna O. (...), se sabia que a informação de Breuer de a ter curado era falsa?» A pergunta continua a gerar pesadelos aos partidários do método.
Da Teoria da Sedução ao Édipo. A hipótese de que a origem da histeria residia em acontecimentos traumáticos do passado vai refinar-se, com os traumas a ganharem carácter estritamente sexual, ao mesmo tempo que a masturbação sobe à cena, para os casos masculinos: «A origem da neurastenia é a masturbação (...) Podemos observar no círculo dos nossos conhecidos que (pelo menos em populações urbanas) os indivíduos que foram seduzidos por mulheres quando eram jovens escaparam à neurastenia», escreve Freud ao médico e amigo Wilhelm Fliess.
Guiado pela convicção grandiosa de que seria capaz de «abrir todos os segredos com uma única chave», é por esta altura que Freud elabora a Teoria da Sedução, que diz ter construído a partir do estudo de 18 casos, o que será desmentido aquando da publicação, em 1985, das suas cartas enviadas a Fliess. No essencial, a teoria defende que a histeria no adulto recua até a um traumatismo sexual (real) na infância. Ao expô-la em público, acrescenta ter verificado que as convulsões histéricas cessavam mal o paciente tomava consciência do facto reprimido.
O autoconvencimento de Freud ficou registado para a posteridade. Sabe-se mesmo que, por pouco, não matava Emma Eckstein. Aliando às suas as teses estapafúrdias do amigo Fliess, Freud diagnosticara à paciente um «reflexo neurótico nasal» provocado por masturbação, acabando por fazê-la operar ao nariz por Fliess, que lhe deixa pelo menos meio metro de gaze na cavidade nasal. Perante as hemorragias, que não paravam, Freud teima em que não passam de um sintoma histérico, resultado do desejo inconsciente de Emma de o atrair para a beira da cama (o episódio está narrado pelo próprio numa carta a Fliess que Anna Freud censuraria na primeira edição da correspondência).
Mas para a classe médica a convicção dele não basta. Recebe a Teoria da Sedução com prudente cepticismo e fala de «conto de fadas» que precisa de ser testado. É então que Freud tem uma jogada de mestre. Já que a Teoria da Sedução se mostrava demasiado singela, Freud não hesita em substitui-la por uma outra - irrefutável. Afinal, os pacientes tinham-no enganado, nunca tendo sofrido agressões sexuais. Na realidade, a bola do desejo estava do lado deles, e era esse seu desejo reprimido que explicava agora as neuroses. Freud podia escusar-se à prova. Se o desejo edipiano universal (o desejo sexual que as crianças sentem pelos pais) fosse reconhecido, tanto melhor. Se não, a conclusão era que o paciente não conseguira ainda libertar o seu próprio recalcamento. Esta circularidade falaciosa continua, até hoje, a ser o grande quebra-cabeças dos admiradores de Freud. Muitos críticos chamaram-lhe embuste, e não existe uma única comprovação empírica do complexo de Édipo.
Webster é particularmente certeiro: «Sugerir que do acto de mamar resulta prazer sexual não é mais razoável que sugerir que da copulação resulta prazer de comer. Se eu der dois terços de uma cenoura para compensar o cavalo da minha carroça e der o outro terço ao meu cão pastor, não vou admitir que o abanar da cauda deste último significa satisfação equina».
São Freud enfrenta o dragão dos sonhos. Freud propõe-se alargar o âmbito da teoria. É então que avança pelo campo dos sonhos e os define como «realizações de desejos inconscientes». O inconsciente, que tantos reclamam para ele, era conhecido há muito, embora seja certo que com o Iluminismo a Razão subira para o pedestal. Mas o que Freud faz, ao autonomizar o inconsciente sob uma aparência científica, é esvaziá-lo, de facto, de muitas das subtilezas que anteriormente tinha contido. Sob a capa de um monismo biopsicológico, eram as antigas concepções dualistas do homem que regressavam: anjo/demónio, bom/malévolo, agora importadas para o interior da mente.
Os sonhos vistos como manifestações de desejos criam um problema a Freud do qual este se descarta com a mesma facilidade com que abandonara a Teoria da Sedução. Freud conta o caso de uma mulher que detestava passar férias com a sogra. Após a ter elucidado sobre a sua interpretação dos sonhos, a mulher sonha que viaja com a mãe do marido, facto que leva Freud a perguntar-se: «Não era isto a contradição mais evidente da minha teoria de que os sonhos são realizações de desejos?» Mas nada detém um sábio: «O sonho mostrava que eu estava enganado. Era desejo dela eu poder estar enganado, e o sonho apresentava esse desejo cumprido».
O expediente argumentativo desta vez impressiona menos porque já conhecemos o truque. E embora acabe por introduzir certos matizes na teoria, Freud nunca abandona o essencial - e o essencial é poder, pelo sonho, aventurar-se pelo território do inconsciente que ele imaginava transbordando de desejos sexuais inconfessados.
Wittgenstein dá nitidamente conta desta obsessão freudiana pelo recalcamento da líbido: «Freud faz com muita frequência o que poderíamos chamar uma interpretação sexual. Mas é interessante que entre todos os relatos de sonhos que ele apresenta não haja um único exemplo de sonho sexual directo. Porém, estes são tão frequentes como a chuva». Orwell é mais demolidor: «Mas porque é que impulsos sexuais em que eu não tenho medo de pensar quando estou acordado terão de ganhar roupagens de algo diferente quando estou a dormir? E mais, para que serve o disfarce, se na prática é sempre penetrável?»
Os críticos notaram, também aqui, a incapacidade para compreender a complexidade da mente e comportamento humanos. A visão esquemática e redutora, que estenderá à sexualidade das crianças com o axioma das fases oral, anal e genital - que mais não são do que um decalque da descrição evolucionista, vigente na época, da anatomia sexual dos animais não humanos, como mostrou Frank Sulloway -, está, com certeza, mais perto do século XIX do que do nosso século. É estranho que ainda hoje alguns continuem a achá-la revolucionária.
O sexo e o efeito aspirina. As críticas a Freud são muitas e de diversa ordem. Uns indignam-se com a teoria, outros com a prática sectária, outros com o branquear da história do movimento psicanalítico, outros, ainda, com o negócio. Cioran foi directo: «Freud é um profeta, um chefe de seita, um reformador 'religioso'. Confundiu sempre a sua missão com a verdade, em detrimento desta última. Entre os homens de ciência não conseguimos imaginar um espírito menos objectivo. Havia nele algo de fanático, de homem da Antiga Aliança».
Os que o censuram concordam com Cioran, realçando o dogmatismo, o desprezo pelos factos (ou mesmo a invenção de factos - Bénesteau, por exemplo, resume os casos clínicos de Freud a seis, realçando-lhes o fracasso terapêutico), a crença na equação definitiva, no fundamento derradeiro. Se olharmos mais de perto, as explicações de Freud sobre a sexualidade enquanto razão de ser das neuroses parecem-se com as de alguém que, tendo uma dor de cabeça e verificando que ela passa depois de tomar uma aspirina, conclui que a falta da aspirina era a causa da dor de cabeça.
Webster, que tem do homem de Viena uma visão menos negativa do que muitos dos seus críticos, não tem ilusões: «Freud não fez quaisquer verdadeiras descobertas intelectuais. Ele foi o criador de uma pseudo-ciência complexa que deve ser reconhecida como uma das grandes loucuras da civilização ocidental». Crews escreve em Skeptical Engagements que «o freudismo tornou-se para mim o exemplo paradigmático de uma doutrina que obriga a uma lealdade irracional». E certos autores, como Ernest Gellner, sublinham a ligação de Freud à doutrina cristã do pecado original, substituído nele pelo inconsciente, esse lugar obscuro de onde brota o complexo de Édipo, desejo inconfessado de matar o Pai.
O crítico Walter Kendrick terá colocado a questão para a qual nenhuma pirueta interpretativa de Freud encontraria resposta: «Como é que se pode matar o Pai que nos ensinou que a sua morte deve ser o nosso desejo?» («Voice Literary Supplement», Junho/1984). E insistiu em pôr o dedo na ferida: «Certos autores abordam a psicanálise de diversos ângulos e fazem o seu trabalho de demolição de diversas maneiras, mas, à mistura com um desejo frenético de pulverizar Freud, partilham da crença ingénua que se pode varrer o século XX nesse processo. Nenhum deles tenta explicar por que é que um vetusto castelo de cartas como a psicanálise, pronto a desmoronar-se com qualquer aragem, foi arrematado por grosso por toda a cultura que ainda lá mora».
Talvez a resposta a isto dada por Adolf Grünbaum seja aceitável, pelo menos para alguns: «Como frisou Henri Ellenberger, a prevalência de conceitos freudianos vulgarizados torna difícil determinar, de maneira fidedigna, até que ponto as verdadeiras hipóteses psicanalíticas se tornaram realmente influentes na nossa cultura como um todo» («Um Século de Psicanálise», in Freud: Conflito e Cultura). E remata: «Devemos também ter cuidado com a tese bizarra (...) de que a difundida influência das ideias freudianas na cultura ocidental avaliza a justeza comprobatória da empreitada psicanalítica e a validade das suas teorias. Porque a ampla influência cultural de Freud valida tanto os seus princípios como a hegemonia cultural cristã justifica a crença no nascimento virginal de Cristo ou na sua ressurreição».
PENSAMENTO RECONFORTANTE ANTES DE IR PARA A CAMA
26/08/07
O ABORTO, CANNES E O VATICANO
O jornal do Vaticano «Osservatore Romano» criticou com violência (verbal, subentenda-se), o filme romeno de Cristian Mungiu, 4 meses, 3 semanas e 2 dias, vencedor da Palma de Ouro do último Festival de Cinema de Cannes e que tem o aborto como tema. Não estive em França e não faço ideia se a película será ou não «sórdida». Apenas me espanta que uma organização como o Vaticano, cujo funcionários recusam com veemência (verbal, subentenda-se) cumprir o preceito divino «Crescei e multiplicai-vos» tenham sempre tanto a dizer acerca de assuntos que versam, precisamente, sobre a reprodução da espécie.
23/08/07
À Conversa com Enrique Vila-Matas
Esta entrevista foi feita a Enrique Vila-Matas a propósito da publicação em Portugal de O Mal de Montano. Leva assinatura minha e de Francisco Belard, jornalista que o jornal Expresso teve o privilégio de exibir na sua ficha técnica durante 26 anos.
Dir-se-ia que Enrique Vila-Matas é uma dessas personagens invulgares ou mesmo implausíveis que a sua ficção incessantemente produz. Mal acabamos de pensar isto, logo ele nos desarma com a sua naturalidade e simpatia, exercendo quase sempre o humor subtil e a inteligência penetrante que circulam entre o segredo público do criador e a discrição do ser biográfico. A sua vasta cultura literária, capaz de impressionar o leitor e intimidar o entrevistador, não é porém utilizada como instrumento de qualquer arrogância, desejo de impor cânones ou de tornar-se impenetrável. Ele, que conhece o jornalismo, que conhece bem a crítica e parece conhecer infinitamente a literatura e outras máscaras, está à vontade e, confessando-se tímido, sabe pôr-nos à vontade. Enrique Vila-Matas (nascido em 1948 em Barcelona, escreveu em castelhano mais de uma dezena de livros, muitos deles traduzidos para um número ainda maior de línguas - consta que 16 -, entre as quais a portuguesa) é um concentrado de referências culturais e de experiências de pessoas e lugares. Mas isso, que noutros poderia acarretar uma indigesta ilegibilidade, ou afogar a voz própria numa confusão de referências, é nele posto ao serviço de uma fluência inteligente. Vila-Matas, cujo talento lhe permitiria imitar os escritores que admira (ou os que o aborrecem...), nem a si mesmo se imita. Embora, no jogo irónico com o leitor e a literatura, não resista a alterar algumas coisas na floresta de citações, declaradas ou não, que povoam a sua obra de ficção, híbrida de ensaísmo e de velado confessionalismo.
Neste livro existe um vertiginoso jogo de espelhos, nomes e enredos que se alteram ao longo das suas cinco partes. Como soube quando acabar?
Foi a primeira vez que, ao escrever um livro, me apercebi de que seria ridículo dar-lhe um fim. Qual? O final chegou quando me convidaram para ir a um congresso com 30 escritores alemães, em que seria o único espanhol, e o único estrangeiro, no cume de uma montanha dos Alpes onde à meia-noite tínhamos que ler. Eu pensei que era um convite muito estranho, muito kafkiano, e que os escritores seriam nazis. Imaginei-os 30 escritores já mortos em tendas de montanha, pensei que falando com eles não entenderia nada, que era um absurdo, que cantariam canções de Wagner. Comecei a discutir com amigos de Barcelona se deveria ir ou não. Eu sabia que o final do romance se passava na montanha, era a única coisa que sabia, e os meus amigos disseram-me, a brincar: «Não vás, de certeza que são nazis e vão matar-te no cume da montanha». Um deles disse-me: «Vão violar-te». Decidi: «Não vou e imagino. Quem sabe, a imaginação tem mais força». Então decidi que o final do livro seria o que imaginara desse lugar. Haveria um encontro com Musil - estava seguindo muito a experiência de O Homem sem Qualidades, que é um romance que não tem fim -, uma conversa, e a palavra final seria dada a Musil. Confrontei-me pela primeira vez com uma situação em que não sabia como acabar, e para mim isso foi muito positivo, quer dizer que este livro é diferente dos outros.
Em Bartleby & Companhia também podia ter acrescentado a lista dos escritores do não.
Sim, mas aí sempre soube que seria curto, que bastavam umas pinceladas ou então toda a gente poderia ser Bartleby. Aqui não sabia para onde ia.
Nesse livro fala de escritores que deixam de escrever. Neste fala do excesso da literatura. Podemos concluir que O Mal de Montano é o reverso de Bartleby & Companhia?
É em parte uma consequência de Bartleby & Companhia, que me levara a um beco sem saída. Também eu me tornara alguém que deixara de escrever. Então, propuseram-me uma conferência em Madrid, organizada por um Instituto das Ciências e da Saúde, sobre «Doenças e Literatura». Isso deu-me muito que pensar e acabei por perguntar a uma amiga: «Que doença achas que posso apresentar relacionada com a literatura?» E essa minha amiga disse-me: «Podes falar da tua própria doença, que é a loucura, com a qual estás bastante em contacto».
É em parte uma consequência de Bartleby & Companhia, que me levara a um beco sem saída. Também eu me tornara alguém que deixara de escrever. Então, propuseram-me uma conferência em Madrid, organizada por um Instituto das Ciências e da Saúde, sobre «Doenças e Literatura». Isso deu-me muito que pensar e acabei por perguntar a uma amiga: «Que doença achas que posso apresentar relacionada com a literatura?» E essa minha amiga disse-me: «Podes falar da tua própria doença, que é a loucura, com a qual estás bastante em contacto».
E está mesmo?
Não. Ela disse-me loucura, e eu entendi literatura.
Que é a sua loucura.
Fui à conferência, e as primeiras páginas originaram O Mal de Montano. A Roberto Bolaño pediram uma conferência idêntica, da qual resultou Entre Paréntesis, livro de artigos publicado postumamente pela Anagrama (2004). A doença era a do fígado, da qual morreu. No meu caso, inventei a da «loucura da literatura», a de uma personagem quixotesca que quer lutar contra os inimigos da literatura.
Fui à conferência, e as primeiras páginas originaram O Mal de Montano. A Roberto Bolaño pediram uma conferência idêntica, da qual resultou Entre Paréntesis, livro de artigos publicado postumamente pela Anagrama (2004). A doença era a do fígado, da qual morreu. No meu caso, inventei a da «loucura da literatura», a de uma personagem quixotesca que quer lutar contra os inimigos da literatura.
Se muito do que escreve poderá ser interpretado como uma homenagem à literatura, por outro lado nota-se um certo cansaço, que aparece reflectido neste romance. Ou seja, uma oscilação entre dois extremos.
Sim, as duas coisas estão presentes, mas nós somos todos muito contraditórios. Em Barcelona, quando me telefonam, não respondo às pessoas que não conheço, e comento com os amigos «que maçada, tantas chamadas»; mas há dias em que ninguém me telefona, e então fico muito inquieto porque penso que já me esqueceram.
Por que é que, a determinada altura, o narrador de O Mal de Montano adopta o nome de uma mulher?
Porque em espanhol Rosario é nome de mulher, é o da minha mãe, mas também pode ser masculino. E porque me diverti a usar a palavra «matrónimo», que não sei se existe - assinar com o nome da mãe. Porque é ambíguo - toda a acção, todo o romance mantém uma relação ambígua com a realidade. A partir de dada altura diz-se que Montano não existe, é uma invenção. Por isso, com os nomes também há deslocações. No fim ele chama-se Robert Walser. Há muitos saltos, não há coisas fixas.
O conselho que a personagem Tongoy dá ao narrador dizendo-lhe que reúna «ensaio, memória pessoal, diário, livro de viagens e ficção narrativa» corresponde à descrição deste romance?
Bom, isso é talvez uma armadilha para críticos (risos) Para que sublinhem a frase e pensem: «Aqui está explicado o livro». Digo isto porque tenho muita experiência, dantes não me apercebia. Assim pensam: «Lá está, ele próprio o diz».
Bom, isso é talvez uma armadilha para críticos (risos) Para que sublinhem a frase e pensem: «Aqui está explicado o livro». Digo isto porque tenho muita experiência, dantes não me apercebia. Assim pensam: «Lá está, ele próprio o diz».
São imensas as referências a Portugal. Aliás, como em obras suas anteriores. Quando esteve a primeira vez em Lisboa?
A minha relação é muito literária, mas primeiro foi cinematográfica. Vim a Lisboa a convite da «Fotogramas» (uma revista espanhola de cinema), quando tinha uns 20 anos, para fazer a cobertura jornalística do casamento de James Bond - um filme que não era com Sean Connery, mas com George Lazenby. E, mesmo vindo como jornalista, participei como «extra» nas filmagens desse casamento, num hotel do Estoril.
Porque acha que vamos acreditar nisso?
Basta parar o vídeo e ver... Nessa época eu era o único espanhol da História que tinha aparecido num filme da série Bond.
Basta parar o vídeo e ver... Nessa época eu era o único espanhol da História que tinha aparecido num filme da série Bond.
Em jovem também fez «jornalismo inventado», por exemplo, quando lhe encomendaram uma entrevista com Marlon Brando.
Fiz muitas entrevistas inventadas. O problema é que, agora, em Espanha, os jovens sabem isso e perguntam-me se podem inventar entrevistas comigo. E saem coisas horríveis, já me puseram a falar contra Jorge Herralde, o meu editor espanhol... Por exemplo: «Está contente com a editora que o publica?» E eu digo: «Não!»
Fiz muitas entrevistas inventadas. O problema é que, agora, em Espanha, os jovens sabem isso e perguntam-me se podem inventar entrevistas comigo. E saem coisas horríveis, já me puseram a falar contra Jorge Herralde, o meu editor espanhol... Por exemplo: «Está contente com a editora que o publica?» E eu digo: «Não!»
Apesar de Brando, diz que nunca vai ao cinema.
Porque passo o dia inteiro no mundo da ficção, escrevendo. O cinema seria uma espécie de repetição. No mundo procuro outras coisas.
E a televisão, odeia-a?
Sim, claro.
E aparecer na televisão incomoda-o? Já se habituou a ser reconhecido na rua?
Gosto e aborrece-me - as duas coisas. Outro dia, em minha casa, tocou alguém a campainha. Abri sem saber quem era, e a pessoa que tocara tinha-se enganado. Então disse-me: «Desculpe, enganei-me no andar». E depois acrescentou: «Mas você não é o Vila-Matas?» (risos)
Voltando a O Mal de Montano. A citação de Blanchot («Que faremos para desaparecer?») na abertura do romance é autêntica?
Sim, e o livro que estou a escrever sobre o desaparecimento coincide com essa pergunta. Escrevemos para desaparecer, porque tudo vai ser esquecido. Alguns julgam que o próprio facto de escrever é a imortalidade, mas tudo desaparecerá, mesmo a imortalidade. De facto, a escrita acaba por se apagar. E, no entanto, escrevemos.
Sim, e o livro que estou a escrever sobre o desaparecimento coincide com essa pergunta. Escrevemos para desaparecer, porque tudo vai ser esquecido. Alguns julgam que o próprio facto de escrever é a imortalidade, mas tudo desaparecerá, mesmo a imortalidade. De facto, a escrita acaba por se apagar. E, no entanto, escrevemos.
Então qual é o impulso?
O impulso está em falarmos da autoconsciência da nossa destruição. Isso seria a literatura que faço, que ultimamente é uma literatura de risco, um pouco à beira do abismo, como em O Mal de Montano. De um lado a literatura com a sua consciência da destruição, do outro a vida que temos, «la vida misma».
Mas não tentará a literatura enganar a morte?
É a ideia que tem Canetti, por exemplo. Para mim estão presentes os dois extremos. Não sou fanático ou dogmático de uma ideia; na literatura está a morte e está a vida. Enquanto se escreve auto-afirma-se a vida, mas há consciência de que se está a caminho da destruição.
Neste livro citam-se muitos escritores de língua espanhola, mas em geral são hispano-americanos, excepto Justo Navarro, supomos.
Isso quer dizer que o mundo é grande, e que a tradição espanhola me interessa tanto como a tradição polaca ou inglesa. E que leio por autores, não por literaturas nacionais. Hoje, a narrativa de língua espanhola tem representantes mais interessantes no Chile, Argentina ou México do que em Espanha. Em Espanha há autores - como Javier Marías, Álvaro Pombo e Justo Navarro - de quem eu gosto. E um amigo meu que se chama Ignacio Martínez de Pisón. Um outro que também me interessa é Juan José Millás. Mas, em geral, a literatura latino-americana é muito mais imaginativa; vejam-se os casos de César Aira na Argentina (um tipo muito interessante), Juan Villoro e Sergio Pitol no México, Ricardo Piglia também na Argentina... Do meu ponto de vista há demasiado apego ao realismo em Madrid.
Isso quer dizer que o mundo é grande, e que a tradição espanhola me interessa tanto como a tradição polaca ou inglesa. E que leio por autores, não por literaturas nacionais. Hoje, a narrativa de língua espanhola tem representantes mais interessantes no Chile, Argentina ou México do que em Espanha. Em Espanha há autores - como Javier Marías, Álvaro Pombo e Justo Navarro - de quem eu gosto. E um amigo meu que se chama Ignacio Martínez de Pisón. Um outro que também me interessa é Juan José Millás. Mas, em geral, a literatura latino-americana é muito mais imaginativa; vejam-se os casos de César Aira na Argentina (um tipo muito interessante), Juan Villoro e Sergio Pitol no México, Ricardo Piglia também na Argentina... Do meu ponto de vista há demasiado apego ao realismo em Madrid.
Mas os que refere neste romance...
...não é por serem latino-americanos, mas sim porque há um desprezo. Castela despreza o que ignora - é uma frase famosa. Em Madrid não estão muito abertos às literaturas de outros países, é um mundo fechado.
...não é por serem latino-americanos, mas sim porque há um desprezo. Castela despreza o que ignora - é uma frase famosa. Em Madrid não estão muito abertos às literaturas de outros países, é um mundo fechado.
Alguns dos que mencionou são publicados por Jorge Herralde na Anagrama, que tem sede em Barcelona.
Sim, mas o «cânone» da literatura espanhola exclui Javier Marías, a quem consideram «inglês», exclui os argentinos, a quem chamam «os argentinos», como César Aira e Alan Pauls - que também é muito interessante e, além disso, um grande crítico. Não há o menor interesse em Espanha pelo que se faz fora. A minha teoria é que se faz muito melhor literatura em castelhano na Catalunha, com Juan Marsé ou Eduardo Mendoza, entre outros.
E a Catalunha como vê os escritores catalães que escrevem em castelhano?
São dois mundos que se mantêm separados, em Barcelona: o da literatura em catalão e o da literatura em castelhano. Talvez alguns autores atravessem as barreiras que existem - e eu tenho bons amigos no grupo dos que escrevem em catalão - mas outros estão muito afastados.
São dois mundos que se mantêm separados, em Barcelona: o da literatura em catalão e o da literatura em castelhano. Talvez alguns autores atravessem as barreiras que existem - e eu tenho bons amigos no grupo dos que escrevem em catalão - mas outros estão muito afastados.
A propósito do apego ao realismo que diz ser dominante em Madrid, lê-se numa entrevista sua que faz uma crítica radical da realidade. Isso quer dizer o quê?
Bom, eu digo sempre muitas coisas. Rio-me dos críticos realistas madrilenos. É como um jogo. Procuro inimigos para me rir deles. Não há «críticos realistas madrilenos», mas quando se lê o que escrevo eles aparecem sempre. São diatribes minhas, ataques contra a crítica realista espanhola. Bem, um pouco contra o próprio realismo. Mas a crítica radical da realidade é outra coisa. É algo tão antigo na literatura como inventar o mundo tal como o vemos. Se não se gosta da realidade que se apresenta, daquilo que nos dizem ser a realidade, inventa-se outra diferente. Ou seja, começa-se a construir mundos literários próprios, paralelos, que não são o mundo que vemos na televisão. Por isso é uma crítica radical. Agora que já tenho um pouco de obra vê-se que é um mundo que foi surgindo, ao qual penso que tem de aspirar todo o escritor.
Bom, eu digo sempre muitas coisas. Rio-me dos críticos realistas madrilenos. É como um jogo. Procuro inimigos para me rir deles. Não há «críticos realistas madrilenos», mas quando se lê o que escrevo eles aparecem sempre. São diatribes minhas, ataques contra a crítica realista espanhola. Bem, um pouco contra o próprio realismo. Mas a crítica radical da realidade é outra coisa. É algo tão antigo na literatura como inventar o mundo tal como o vemos. Se não se gosta da realidade que se apresenta, daquilo que nos dizem ser a realidade, inventa-se outra diferente. Ou seja, começa-se a construir mundos literários próprios, paralelos, que não são o mundo que vemos na televisão. Por isso é uma crítica radical. Agora que já tenho um pouco de obra vê-se que é um mundo que foi surgindo, ao qual penso que tem de aspirar todo o escritor.
No que escreve, contudo, apesar de ser visível esse seu mundo, há muito de «la vida misma».
Eu nunca invento tudo, há sempre algo real que me aconteceu. O que muda é o ponto de vista, a forma de contar. O escritor busca sinais e interpreta o mundo à sua maneira. Um executivo que chega à Rua Vaneau (em Paris), acende a televisão e dizem-lhe que mudou o primeiro-ministro da Síria: não o associa à Embaixada desse país na mesma rua. Nem se apercebe. Quem não faz nada, ou está pensando, ou está pensando num livro, fica mais disponível para ver o que os outros não vêem.
Embora, de alguma maneira, relacione tudo aquilo que vê com a sua cultura literária.
Sim, porque é curioso, quando alguém me diz «Sabes o que aconteceu? Foi horrível!», e me conta uma história, dramática mas sem o ser demasiado, mais do que preocupar-me com o que se passa, e que é passageiro, sou tentado a ajudar essa pessoa explicando-lhe que isso já foi contado por Perec ou Flaubert numa novela curta. E que se os tivesse lido saberia que a sua história não é dramática nem extraordinária. Sempre aconteceu.
Sim, porque é curioso, quando alguém me diz «Sabes o que aconteceu? Foi horrível!», e me conta uma história, dramática mas sem o ser demasiado, mais do que preocupar-me com o que se passa, e que é passageiro, sou tentado a ajudar essa pessoa explicando-lhe que isso já foi contado por Perec ou Flaubert numa novela curta. E que se os tivesse lido saberia que a sua história não é dramática nem extraordinária. Sempre aconteceu.
Isso é um pouco borgiano.
Bem, talvez. Quanto mais se leu, mais coisas se sabe que aconteceram. O marido que tem uma mulher como Madame Bovary; não é assim tão dramático, está contado por Flaubert, repetiu-se muitas vezes. Um drama de amor. Pense-se em Romeu e Julieta. E para isso a literatura também é útil, de algum modo sabemos o que acontece.
Bem, talvez. Quanto mais se leu, mais coisas se sabe que aconteceram. O marido que tem uma mulher como Madame Bovary; não é assim tão dramático, está contado por Flaubert, repetiu-se muitas vezes. Um drama de amor. Pense-se em Romeu e Julieta. E para isso a literatura também é útil, de algum modo sabemos o que acontece.
E assim dói menos?
Há coisas que sei que me iriam doer muito. Se uma pessoa perde o ser amado, dói sempre. Não há na literatura nenhum remédio para isso. Mas os pequenos males quotidianos, as tragédias mínimas... Bioy Casares disse-me uma vez que a inteligência serve para, quando não se sabe como sair de uma situação, abrir um pequeno buraco na parede. Às vezes, quando estou muito aborrecido, penso nesses problemas, mas ao fim de uma hora os problemas desapareceram. Saíram pelo tal buraco.
Há coisas que sei que me iriam doer muito. Se uma pessoa perde o ser amado, dói sempre. Não há na literatura nenhum remédio para isso. Mas os pequenos males quotidianos, as tragédias mínimas... Bioy Casares disse-me uma vez que a inteligência serve para, quando não se sabe como sair de uma situação, abrir um pequeno buraco na parede. Às vezes, quando estou muito aborrecido, penso nesses problemas, mas ao fim de uma hora os problemas desapareceram. Saíram pelo tal buraco.
Sem literatura não teria essa saída?
Não sei. A literatura faz parte da minha maneira de ser. Sei que, se tivesse ido como Rimbaud traficar em África, já não poderia ser como ele, pois estaria sempre a pensar: «Sou como Rimbaud». Não poderia viver a autêntica vida de traficante.
Não sei. A literatura faz parte da minha maneira de ser. Sei que, se tivesse ido como Rimbaud traficar em África, já não poderia ser como ele, pois estaria sempre a pensar: «Sou como Rimbaud». Não poderia viver a autêntica vida de traficante.
E, no entanto, há escritores que abandonam a literatura.
Sou muito contraditório. Gostaria de abandonar a literatura desde que toda a gente o soubesse (risos). O livro que estou agora a escrever é sobre alguém que desaparece e se esconde, pois quer ser como Pynchon e como Salinger, em princípio aquilo que eu não consigo - converter-me num escritor secreto. Gostaria imenso, mas não sei como fazê-lo, além do mais porque se o faço, para que isso seja possível tem de se saber que me escondi. Por exemplo, desde que cheguei a Lisboa dei quatro entrevistas, onde, de algum modo, sugeria que não tinha grande vontade de ser famoso, de promover os livros. E passou-se uma coisa curiosa, de que me apercebi no quarto do hotel: que estava ali sem dar entrevista nenhuma e começava a entrevistar-me a mim próprio, porque me apetecia ser ainda mais entrevistado. Ou seja: sou as duas coisas ao mesmo tempo: nego a ideia do sujeito, e ao mesmo tempo, ao negar-me, quero auto-afirmar-me. Acho que somos todos muitas personagens ao mesmo tempo.
A maioria dos autores hispano-americanos que cita no seu livro são desconhecidos, ou quase, em Portugal: César Aira, Alan Pauls, Ricardo Piglia, Sergio Pitol.
Surpreende-me, porque me parecem muito interessantes. César Aira, por exemplo, um dia que o descubram... É um escritor que demora sempre dois meses a escrever, publica quatro livros por ano, todos pequenos, começa e quando se cansa abandona-os. Tem cerca de 80 livros. A palavra «original» está gasta, mas ele é-o. Devia estar traduzido, até porque não tem equivalente.
César Aira, que disse há pouco ter-se reconciliado com Borges...
Bom, esse é problema dos escritores argentinos a quem perguntam sempre por Borges. Gombrowicz dizia: «Matem o Borges». Mas César Aira é muito divertido quando pergunta: «Ter-me-ei tornado adulto? Já me reconciliei com Borges». Contudo, sobre Octavio Paz, Aira mantém que ele é um simples jornalista cultural, não um poeta nem ensaísta, apenas um bom divulgador de cultura. Uma frase muito provocatória.
O Enrique Vila-Matas, ao citá-lo, está de acordo com ele?
Sim, mas se estivesse em Espanha não sei se o diria (risos). A mim não me interessa aquilo a que chamamos os escritores imperadores. Carlos Fuentes, os importantes...
Sim, mas se estivesse em Espanha não sei se o diria (risos). A mim não me interessa aquilo a que chamamos os escritores imperadores. Carlos Fuentes, os importantes...
E quanto a Juan Rulfo?
Rulfo não tinha nada de importante. Uma vez foi entrevistado na televisão espanhola e só respondia com monossílabos - sim, não. A frase mais comprida foi quando lhe perguntaram: «O senhor foi à escola?» Ele disse «sim» e todos pensámos que acabaria ali, mas acrescentou, depois de um silêncio: «E fiquei deprimido para sempre».
Rulfo não tinha nada de importante. Uma vez foi entrevistado na televisão espanhola e só respondia com monossílabos - sim, não. A frase mais comprida foi quando lhe perguntaram: «O senhor foi à escola?» Ele disse «sim» e todos pensámos que acabaria ali, mas acrescentou, depois de um silêncio: «E fiquei deprimido para sempre».
Octavio Paz não provocará a mesma saturação que se percebe em César Aira em relação a Borges?
Mas Borges nunca tinha a atitude de Paz, de ser um escritor importante. Quando Borges veio a Espanha depois da morte de Franco, perguntaram-lhe: «O senhor deve-se sentir-se importante por conhecer tanta gente importante». E ele respondeu: «Sim, em Buenos Aires todos se julgam importantes».
Prefere nomes mais marginais?
Sim, porque dos outros toda a gente fala. Mas no futebol também sempre me interessei muito pelas equipas da segunda divisão. Isto deve ter alguma explicação psicológica, porque prefiro sempre o que não se vê, o que está fora dos circuitos.
Sim, porque dos outros toda a gente fala. Mas no futebol também sempre me interessei muito pelas equipas da segunda divisão. Isto deve ter alguma explicação psicológica, porque prefiro sempre o que não se vê, o que está fora dos circuitos.
E, no seu caso, como lida com a popularidade?
Desejando esconder-me o mais depressa possível. E este seria um bom final para a vossa entrevista (risos). Mas é verdade. Eu comecei a escrever quando passava os Verões, aborrecidíssimos, com a minha família na Costa Brava, tinha 13, 14 anos. Levava um livro para me afastar das pessoas. Comecei a escrever para não ter de estar com elas, e a vocação literária surgiu de uma ideia de independência e solidão. Depois, pela primeira vez, convidaram-me para dar uma conferência. De repente apercebi-me de que, para além de escrever em solidão, tinha de aparecer em público. Foi então que me dei conta de que tinha de conjugar a maravilha do isolamento com o resto. Embora me fascine gente como Pynchon, que nem se sabe que rosto tem, ou Blanchot, de quem há uma só fotografia.
Desejando esconder-me o mais depressa possível. E este seria um bom final para a vossa entrevista (risos). Mas é verdade. Eu comecei a escrever quando passava os Verões, aborrecidíssimos, com a minha família na Costa Brava, tinha 13, 14 anos. Levava um livro para me afastar das pessoas. Comecei a escrever para não ter de estar com elas, e a vocação literária surgiu de uma ideia de independência e solidão. Depois, pela primeira vez, convidaram-me para dar uma conferência. De repente apercebi-me de que, para além de escrever em solidão, tinha de aparecer em público. Foi então que me dei conta de que tinha de conjugar a maravilha do isolamento com o resto. Embora me fascine gente como Pynchon, que nem se sabe que rosto tem, ou Blanchot, de quem há uma só fotografia.
Como Herberto Helder, que não se deixa fotografar.
Mas para um poeta é mais fácil.
Mas para um poeta é mais fácil.
Gostava de ser poeta?
Não, porque sempre pensei que isso estaria muito longe das minhas possibilidades. Sou muito exigente quando leio poesia. No romance é diferente, pode ter altos e baixos, pode ter momentos menos bons. Uma poesia ou é muito boa ou é muito má.
Não, porque sempre pensei que isso estaria muito longe das minhas possibilidades. Sou muito exigente quando leio poesia. No romance é diferente, pode ter altos e baixos, pode ter momentos menos bons. Uma poesia ou é muito boa ou é muito má.
Nunca foi um poeta secreto?
Guardo um poema que se chama «Soledad o Intempérie», de cujo título gosto muito. Tenta imitar as letras de Bob Dylan. Quando as ouvia não sabia inglês, mas, ao contrário do Sinatra, sempre percebi que as letras no caso de Dylan tinham importância.
Guardo um poema que se chama «Soledad o Intempérie», de cujo título gosto muito. Tenta imitar as letras de Bob Dylan. Quando as ouvia não sabia inglês, mas, ao contrário do Sinatra, sempre percebi que as letras no caso de Dylan tinham importância.
Subscreve a posição de Faulkner de que os maiores escrevem poesia?
É curioso, porque na Alemanha há uma confusão entre narrador e poeta. A Robert Walser chamam poeta, e eu na realidade acredito que Walser foi o poeta mais oculto de todos, o mais secreto de todos, porque a poesia talvez consista em entrar num manicómio e não escrever. Isso seria alta literatura, que foi o que fez Walser. Mas em Espanha há a confusão de que para se ser poeta tem de se estar louco e encerrado num manicómio.
A visão romântica da loucura.
Sim, porém, estar-se louco não ajuda a escrever. Ou sim, depende do talento de cada um.
PENSAMENTO RECONFORTANTE ANTES DE IR PARA A CAMA
22/08/07
CONTRADIÇÕES SILVENSES
A invasão de uma propriedade de milho transgénico em Silves, no Algarve, vem gerando polémica. De Cavaco Silva a Miguel Portas, passando pelo Ministro da tutela e pelo fracturante Francisco Louça, não falta quem se tenha pronunciado sobre o que alguns classificaram como um acto de desobediência civil: a favor, contra, ou bom... talvez... será?... está a acusar-me de alguma coisa? Os invasores, ao que parece, vão responder em tribunal, mas só os portugueses (participantes minoritários) porque os estrangeiros em cruzada contra o milho transformado, segundo informação da GNR, espertos, não levaram BIs para a manifestação. Para não dizer asneiras, não vou dar opinião sobre os transgénicos. Se alguém viesse aqui à Pastelaria explicar devidamente a coisa, era um favor que me fazia (e aos leitores do blogue, suponho). O mais curioso, contudo, é que se, por um lado, Silves abre as portas a uma das formas de agricultura mais ecologicamente controversas, por outro, afirma-se disponível para a criação no concelho de um centro de reprodução do lince ibérico, o que já levou ao protesto do presidente da câmara de Penamacor, sob a alçada de quem se encontra o centro da Malcata, associação que está na origem do repovoamento deliberado da região por coelhos, animais igualmente amorosos mas bem abaixo, claro, dos linces na tabela da cadeia alimentar, e agora o que fazer (lhes), como diria o outro. Bom, no meio disto tudo, o lince de Silves (que não existe) parece que só apareceu no Algarve porque foi preciso oferecer alguma coisa à Comunidade Europeia, em troca da licença e financiamento da barragem local de Ó-de-Louca cujo impacto ambiental não será de somenos. Expedientes políticos a que, naturalmente, os linces, os coelhos e o milho serão alheios. Pena é que os linces não sejam vegetarianos. Dava-se-lhes o milho e acabava-se com a história. Sobrava ainda o problema dos coelhos. A esses, alguém que os comesse que não eu. Antes pipocas transgénicas.
21/08/07
RAUL HILBERG 1926-2007
Raul Hilberg, in Shoah, de Claude Lanzmann
Falha imperdoável minha, só hoje fiquei a saber que Raul Hilberg tinha morrido. Autor desse estudo monumental sobre o Holocausto, The Destruction of the European Jews, obrigatório para quem queira tentar perceber a tragédia que se abateu sobre a Europa há cerca de 60 anos, o historiador faleceu no passado dia 4 nos EUA. Foi há poucos anos que comprei o seu livro, em Bruxelas, numa versão francesa actualizada. Com um rigor de copista e uma obsessão pelos factos que lhe valeram muitas críticas, inclusive da própria comunidade judaica (críticas que subiram de tom quando veio a público defender Norman Finkelstein, o autor de A Indústria do Holocausto), Hilberg descreve e interpreta, num livro de mais de mil páginas, a máquina burocrática nazi que permitiu cumprir a mortandade. Texto de referência, vale certamente mais do que todos os discursos que Elie Wiesel possa proferir sobre o tema. E quando tanta gente entre nós parece sentir-se atraída pela judaísmo ‑ porventura levando demasiado a sério o estatuto de «Povo Eleito» ‑, talvez a leitura de Hilberg ajudasse a clarificar as coisas. E as coisas são isto: J’ai fait un rêve, Seigneur, que j’ai trouvé, à l’instant où je le vivais, merveilleux: je n’étais plus juif. Edmond Jabès, que era judeu, saberia do que falava.
MÚSICA AO FINAL DE TARDE
Desde que fui ouvir os Los Santeros, ando a ouvir o Willie Nelson. Vá-se lá saber porquê.
PENSAMENTO RECONFORTANTE ANTES DE IR PARA A CAMA
20/08/07
Colaboração Intergaláctica
O post é da responsabilidade do Manuel. E agora digam-me: como recusar uma space trip a 78 RPM?
Django Reinhardt New York City Festival
Música ao final da tarde. Dark Eyes, para o Manuel, Coisas do Arco da Velha. Pela ajuda. E não atirem sobre o pianista: é tremendamente parecido com o João Bénard da Costa
19/08/07
A Propósito de Torga, que não Tem Culpa NenhumaULPA NENHUMA
Estava eu, displicente, a folhear jornais antigos (mas não demasiado), quando dei com um texto assinado por Carlos Fiolhais no «Público» de 17 de Agosto. Afirma aí o conhecido físico que a polémica sobre a ausência de membros do governo no centenário de Torga «é uma perfeita tontaria, que nem mesmo a silly season justifica». Tendo eu Carlos Fiolhais em boa conta, fui lê-lo. Fiquei a saber que a 24 de Junho, aquando do lançamento do Espaço Miguel Torga em São Martinho de Anta, um projecto de 1,7 milhões de euros assinado por Souto Moura, o governo tinha-se feito representar em peso e em força. E fiquei a saber mais: que a 12 de Agosto (dia da polémica), foi apenas inaugurada em Coimbra uma casa-museu, orçada na modesta quantia de 324 mil euros, «em cujo quintal a câmara quer construir um Centro de Estudos Torguianos». Não tenho nada contra quintais nem contra Carlos Fiolhais (esta parte já tinha dito), mas, espicaçada pela sua posição, fui tentar saber quanto é que Torga, afinal, tinha nascido. A Wikipédia refere que Adolfo Correia Rocha veio ao mundo a 12 de Agosto de 1907. Naturalmente, não sei se posso confiar nas datas referidas, por todos os motivos e mais aqueles que recentemente envolveram um computador oficial e oficioso que alterou o texto da Wikipédia sobre Sócrates. E andava eu já esquecida destes factos, quando, a propósito de Jack Kerouac e dos 50 anos de publicação do «On the road», tropecei neste delicioso diálogo do filme «Honeysuckle Rose», para o qual Willie Nelson assinou a música «On the road again»:
«Bo: Anybody on this bus got a college education?
Lily Ramsey: I do; just graduated in June.
Bo: Good. Then you can get up and get us a beer.»
Esquecido Torga, regressei a ele em memória de Sócrates, e depois larguei os dois e vi-me n' «O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam», do qual saltei quase de imediato para o adorável poema de Borges: «Yo, que tantos hombres he sido, no he sido nunca, aquel en cuyo abrazo desfallecía Matilde Urbach». Já em vertigem, e temendo que o poema do cego argentino me conduzisse em excesso de velocidade à metafísica do sujeito e aquelas temíveis perguntas «Quem sou», «De onde venho» e «Para onde vou», cortei cerce o pensamento que me levaria a Régio, de Régio a Alegre, de Alegre a Torga, de Torga a Sócrates... Enfim, um pesadelo.
«Bo: Anybody on this bus got a college education?
Lily Ramsey: I do; just graduated in June.
Bo: Good. Then you can get up and get us a beer.»
Esquecido Torga, regressei a ele em memória de Sócrates, e depois larguei os dois e vi-me n' «O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam», do qual saltei quase de imediato para o adorável poema de Borges: «Yo, que tantos hombres he sido, no he sido nunca, aquel en cuyo abrazo desfallecía Matilde Urbach». Já em vertigem, e temendo que o poema do cego argentino me conduzisse em excesso de velocidade à metafísica do sujeito e aquelas temíveis perguntas «Quem sou», «De onde venho» e «Para onde vou», cortei cerce o pensamento que me levaria a Régio, de Régio a Alegre, de Alegre a Torga, de Torga a Sócrates... Enfim, um pesadelo.
Boa-Noite
Os Lo Santeros não são mexicanos. O Mad Dog Clarence toca bem gaita. Na Zé dos Bois não havia tequilla. A malta de filosofia é doida. E depois vim para casa ouvir Willie Nelson. Tudo está bem quando acaba bem.
18/08/07
«ON THE ROAD» DE JACK KEROUAC FAZ 50 ANOS
«Sal, we gotta go and never stop going till we get there.
«Where we going, man?
«I don't know but we gotta go.»
17/08/07
15/08/07
IRAQUE
A 3 de Julho, altura em coloquei um post sobre o assunto, a organização Iraq Body Count contabilizava entre 66 807 e 73 120 mortos. Hoje, 15 de Agosto, os cadáveres já subiram para 69 513 / 75 955. Os 200 mortos de ontem estão incluídos. A tragédia reside em que, como se sabe, os números são um conjunto infinito.
http://www.iraqbodycount.org/
É ASSIM QUE ELES COMEÇAM, PELAS T-SHIRTS
Don’t piss me off! I am running out of places to hide the bodies: houve um inglês chamado David Pratt que recebeu da namorada uma T-shirt com a frase. Houve um tipo na rua que não gostou do que leu e levou o caso à justiça. E a justiça, célere, actuou, considerando o slogan ofensivo. A notícia, que vinha no «Sol», era ambígua quanto à multa atribuída; numa linha escrevia-se 122 euros, noutra 118. Seja como for. A única conclusão é que o juiz nunca leu Mickey Spillane. Acho que vou mandar imprimir esta frase dele numa T-shirt: How c-could you? she gasped. I only had a moment before talking to a corpse, but I got it in. It was easy, I said.
14/08/07
PENSAMENTO RECONFORTANTE ANTES DE IR PARA A CAMA
13/08/07
TORGA
Confesso que conheço relativamente mal a obra de Miguel Torga. E confesso que o que conheço não me comove desmesuradamente. Mas o homem faria 100 anos, bolas! E sempre há-de ficar para a história da literatura portuguesa. Nenhum membro do governo lá ter ido, principalmente de um governo que tem um Primeiro-Ministro que inaugura fábricas IKEA, implode edifícios em Tróia e se pavoneia no meio de crianças contratadas para o efeito, parece-me um pouco excessivo. Mesmo a mim, que não sou grande apreciadora de Adolfo Correia da Rocha.
12/08/07
11/08/07
Em FESTA
Agora que o Manuel me deu aulas gratuitas de «Tudo o que você queria saber sobre como desentubar vídeos do Youtube e nunca ousou perguntar», já estou em condições de partilhar este grandioso momento de Jerry Lee Lewis e Van Morrison juntos e ao vivo!
E não nos livramos dos turistas...
Isto - a música de Riuychi Sakamoto - é o melhor do filme de Bernardo Bertolucci «The Shektering Sky», além da fabulosa Debra Winger. Para acompanhar a releitura de «O Céu que nos Protege» de Paul Bowles, traduzido por José Agostinho Baptista para a Assírio & Alvim.
09/08/07
Da tragédia ao circo
A pequenina Madeleine McCann está desaparecida há demasiado tempo. Da acusação inicial de negligência aos pais, ainda antes de se conhecerem os contornos do caso, passou-se quase imeditamente à piedade pelos mesmos. Os 100 metros que mediavam o restaurante do apartamento encurtam para 50 e a seguir aparece escrito «ao lado». Entretanto, os McCann, católicos convictos, vão a Fátima, onde o bispo local entrega o caso às mãos de Deus e não promete milagres, e ao Papa. Uma onda de solidariedade cresce e ganha dimensões gigantescas. Não há quem não faça apelos pela menina. Surge um arguido, Robert Murat, imediatamente linchado na imprensa, como, por exemplo, no «Correio da Manhã», que afirma despudoradamente: «PJ ainda (?) sem provas contra Murat». O caso de Madeleine ressuscita o caso dramático de Rui Pedro (e de outras crianças portuguesas desaparecidas). Durante dias e dias, os telejornais abrem com a notícia do rapto... sem que tenham nada para dizer. E há um dia, na Holanda, em que a questão da negligência é colocada em cima da mesa, com todas as letras, por uma jornalista. A pergunta cai mal. As críticas à actuação da PJ, com grande visibilidade na Grã-Bretanha, são reproduzidas com cautela entre nós. O interesse pelo caso esmorece mas não morre. Há poucos dias, os holofotes regressaram à Praia da Luz, reeditando o circo mediático que vem rodeando o caso, com a maioria dos jornais e televisões a oscilar, tola e pateticamente ao sabor do vento, sem que, da parte da imprensa, se note nenhuma de três coisas: objectividade, investigação independente, perguntas certas. A PJ, bem ou mal, fecha-se em copas, reproduzem-se informações de «fonte segura» e, na realidade, apenas de especula. Os contornos rocambolescos do rapto, que todos pareciam aceitar inicialmente, dão lugar à morte, por acidente ou não, de que os pais serão suspeitos críveis. Pois bem, foram-no desde o princípio, como o seriam sempre em circunstâncias semelhantes. E, de tudo isto, resta uma tragédia, a de Madeleine. A tragédia sabe-se onde mora. No corpo de uma criança de 3 anos deixada a dormir ao lado de dois irmãos de 2 anos, por pais que saíram para jantar fora com amigos e que, culpados ou não, serão sempre responsáveis. Mas onde estiveram, e continuam a estar, os jornalistas?
TrES-4
Deram-lhe o nome obtuso de TrES-4 e é, até agora, o maior planeta conhecido do Universo: 20 vezes a superfície da Terra, está a uma distância de 1 400 anos-luz. «Provavelmente não possuí superfície firme e afundar-nos-íamos nele», referiu um dos cientistas ligado à descoberta. E, vá-se lá saber porquê, perante tão extraordinária coisa veio-me à cabeça Herberto Helder:
Ninguém sabe se o vento arrasta a lua ou se a lua
arranca um vento às escuras.
As salas contemplam a noite com uma atenção
[extasiada.
Fazemos álgebra, música, astronomia,um mapa
intuitivo do mundo. O sobressalto,
a agonia, às vezes um monstruoso júbilo,desencadeiam
abruptamente o ritmo.
— Um dedo toca nas têmporas, mergulha tão
[fundo
que todo o sangue do corpo vem à boca
numa palavra.
E o vento dessa palavra é uma expansão da
[terra.
08/08/07
Every Sperm is Sacred - Monty Python's Meaning of Life
A propósito dos apoios à maternidade que o Governo de Sócrates terá em preparação
07/08/07
05/08/07
Estou com Márcia Rodrigues e contra as burkas obrigatórias. I always contradict myself. A vida é mesmo assim.
A excelente jornalista Márcia Rodrigues entrevista o embaixador do Irão em Portugal, Mohammad Taheri, o contabilista de serviço que ainda há pouco garantia que as contas do Holocausto estavam de certeza mal feitas
04/08/07
Isto é o que eu penso sobre o livro de Zita Seabra
Há uma frase de Margaret Atwood de que gosto muito e não resisto a citar: «Interessarmo-nos pela vida privada de um escritor porque gostamos de um livro dele é como interessarmo-nos por gansos porque gostamos de “foie gras”». Zita Seabra, pelo que li, não é, nem nunca foi, discípula de Baco; o interesse que a sua vida desperta relaciona-se não com a nobre arte da culinária mas com a ciência da História. Apesar disso, decidi trazer Atwood à baila, não só porque a frase dela é uma alfinetada bem lúcida no género biográfico, mas também porque me permite sublinhar a expressão «vida privada». Não é disso que trata Foi Assim.
Cartas na mesa. Este livro é daqueles que suscita ódios e aplausos. Sem grande margem de risco, poderíamos garantir um royal flush apostanto em que, à partida, a atitude do leitor a respeito de Foi Assim coincidirá com a atitude do leitor em relação à autora do mesmo. Porque Zita Seabra, para dizê-lo de forma melíflua, é uma mulher polémica.
Do PCP ao PSD, da militância pela legalização do aborto em 1984 à firme oposição ao mesmo no recente referendo, do ateísmo comunista à Igreja católica, das camisas de xadrez proletário aos saias-casaco... tudo isto gera uma certa estupefacção, outros chamar-lhe-iam irritação. A curiosidade vem por arrasto. Mas, perante o fenómeno que, pelo menos editorialmente, este livro representa, não pude deixar de fazer contas.
Estamos em 2007. A URSS dissolve-se em 1991, o muro de Berlim cai em 1989, o Arquipélago de Gulag, de Soljenistsin, chega em 1974, a Tchecoslováquia é invadida em 1968, a Húngria fora-o em 1956, Estaline morre em 1953, Albert Camus escreve O Homem Revoltado em 1952, Arthur Koestler publica O Zero e o Infinito a seguir à II Guerra Mundial, mais ou menos na mesma altura em que Viktor Kravchenko deserta da URSS e escreve I Choose Freedom, etc. etc.
Por cá, o comunismo também não é um mar de rosas. Francisco Paula de Oliveira (Pavel), Júlio Fogaça, J.A. Silva Marques, Francisco Martins Rodrigues, Francisco Augusto Ferreira (Chico da Cuf), Cândida Ventura, Raimundo Narciso, etc., são nomes malditos ofuscadas pelo brilho atribuído a Cunhal. Alguns deles escreveram memórias: Francisco Augusto Ferreira publicou, entre outros, 26 Anos na União Soviética, Notas de Exílio (1975), J.A. Silva Marques, Relatos da Clandestinidade (o PCP Visto por Dentro) (1976), Cândida Ventura, O «Socialismo» que eu vivi (1984), Raimundo Narciso, A.R.A. Acção Revolucionária Armada (A História Secreta do Braço Armado do PCP) (2000). E, chegado apenas agora, Foi Assim, que ainda gera frisson. Vasco Pulido Valente, pouco dado a impressionar-se por dissidências tardias, veio dizer que este era «o livro que faltava para perceber a grande tragédia do comunismo português». Fui ler.
Partimos sem qualquer apriorismo: nem Santo Agostinho, nem Carolina Salgado nos guiaram. Lemos as 443 páginas e, Pulido Valente que nos permita a discordância, não ficámos a perceber mais da «tragédia do comunismo português» do que já percebíamos (ou não percebíamos) antes. Terminámos, porém, com uma dúvida acrescida: a de não entender a relação da autora com o livro que escreveu.
Vamos por partes. Não sendo uma obra-prima de estilo – faltará à ex-comunista o «dom e a capacidade de escrita», sobrando-lhe «tão-só a vontade de escrever» – e eliminada, pois, a questão do como, restam duas perguntas (o «para quê» fica, legitimamente, no foro privado): escrever o quê, e de que ponto de vista?
Decidiu a autora organizar a autobiografia respeitando a ordem cronológica e começando pelo princípio. E o princípio vem antes do PCP. Assim, o relato inicia-se pela infância e prossegue: juventude, militância, clandestinidade, pós-25 de Abril e a explusão em 1989, só com um voto contra: o de si própria. Termina aí. Mas o problema é que nada do que conta até essa data (a não ser alguns, muito escassos, episódios) é novo: os métodos do PCP, as lutas durante o Estado Novo, a organização piramidal, as casas clandestinas, as «companheiras», a actuação no pós-25 de Abril, o peso de Álvaro Cunhal, as vias de passagem ao socialismo, as infiltrações no aparelho de Estado, tudo isso está hoje documentado e constitui matéria de estudo. É verdade que alguns factos vêm gerando polémica: Raimundo Narciso nega ter estado em casa da ex-camarada; Nuno Ramos de Almeida vem defender o nome do pai, Pedro Ramos de Almeida; o «Serviço Cívico Estudantil» divide opiniões... Nada de bombástico...
E a frustação instala-se à medida que avançamos. A linguagem e os clichés de época aliados à fórmula descritiva (uma espécie de história do PCP contada às crianças, com sublinhados e repetições que chegam a ser penosos), a que se acrescenta a falta de reflexão sobre os acontecimentos (e, muito menos, sobre a actuação da autora, que se limita a repetir, à exaustão, que era assim...), tornam Foi Assim num livro menor, cujo sucesso mediático se justificará por todas as razões, menos pela sua qualidade intrínseca.
Sublinhe-se: a questão não é Zita Seabra ter ou não ter escrito um acto de contrição. A questão nem sequer é nunca percebermos porque não entrega o cartão após o assassinato da amiga Sita Valles pelo MPLA. A questão está em que nada neste livro nos explica – nunca – a sua actuação particular como militante. E se nem todos eles seguiriam o modelo de Georgette (a temível controleira dos primórdios), porque o terá escolhido ela?
Apesar do «olhar pessoal» referido no preâmbulo, poucas vezes a vemos incidi-lo sobre si. Gasta, porém, demasiado tempo a referir nomes de quem não resistiu às torturas da PIDE ou teve comportamentos menos exemplares na dedicação à causa. E há reflexões de um primarismo inaceitável, como aquela em que, referindo-se ao «relacionamento difícil com as mulheres» de Cunhal, remata: «Os psicanalistas diriam certamente que isso vinha da relação conflituosa que ele teve com a mãe – que, como é sabido [eu não sabia, mas pronto] e ele mo relatou diversas vezes, nunca visitou o filho na cadeia durante todos os anos em que esteve preso.»
Para concluir. Contas feitas, continuará Zita Seabra convencida de ter estado no sítio certo à hora certa? Porque, se por um lado, escreve: «Que ninguém diga que ignorava: os comunistas portugueses sempre souberam de tudo», logo acrescenta: «Mas não me julgue, porque não tem autoridade moral ou ética para o fazer, aquele que não lutou pela liberdade em Portugal (...)». Arthur Koestler disse uma coisa só muito vagamente parecida. Estava-se, porém, nos anos 40, antes do Muro de Berlim e de tudo o resto que, afinal, se sabia.
Cartas na mesa. Este livro é daqueles que suscita ódios e aplausos. Sem grande margem de risco, poderíamos garantir um royal flush apostanto em que, à partida, a atitude do leitor a respeito de Foi Assim coincidirá com a atitude do leitor em relação à autora do mesmo. Porque Zita Seabra, para dizê-lo de forma melíflua, é uma mulher polémica.
Do PCP ao PSD, da militância pela legalização do aborto em 1984 à firme oposição ao mesmo no recente referendo, do ateísmo comunista à Igreja católica, das camisas de xadrez proletário aos saias-casaco... tudo isto gera uma certa estupefacção, outros chamar-lhe-iam irritação. A curiosidade vem por arrasto. Mas, perante o fenómeno que, pelo menos editorialmente, este livro representa, não pude deixar de fazer contas.
Estamos em 2007. A URSS dissolve-se em 1991, o muro de Berlim cai em 1989, o Arquipélago de Gulag, de Soljenistsin, chega em 1974, a Tchecoslováquia é invadida em 1968, a Húngria fora-o em 1956, Estaline morre em 1953, Albert Camus escreve O Homem Revoltado em 1952, Arthur Koestler publica O Zero e o Infinito a seguir à II Guerra Mundial, mais ou menos na mesma altura em que Viktor Kravchenko deserta da URSS e escreve I Choose Freedom, etc. etc.
Por cá, o comunismo também não é um mar de rosas. Francisco Paula de Oliveira (Pavel), Júlio Fogaça, J.A. Silva Marques, Francisco Martins Rodrigues, Francisco Augusto Ferreira (Chico da Cuf), Cândida Ventura, Raimundo Narciso, etc., são nomes malditos ofuscadas pelo brilho atribuído a Cunhal. Alguns deles escreveram memórias: Francisco Augusto Ferreira publicou, entre outros, 26 Anos na União Soviética, Notas de Exílio (1975), J.A. Silva Marques, Relatos da Clandestinidade (o PCP Visto por Dentro) (1976), Cândida Ventura, O «Socialismo» que eu vivi (1984), Raimundo Narciso, A.R.A. Acção Revolucionária Armada (A História Secreta do Braço Armado do PCP) (2000). E, chegado apenas agora, Foi Assim, que ainda gera frisson. Vasco Pulido Valente, pouco dado a impressionar-se por dissidências tardias, veio dizer que este era «o livro que faltava para perceber a grande tragédia do comunismo português». Fui ler.
Partimos sem qualquer apriorismo: nem Santo Agostinho, nem Carolina Salgado nos guiaram. Lemos as 443 páginas e, Pulido Valente que nos permita a discordância, não ficámos a perceber mais da «tragédia do comunismo português» do que já percebíamos (ou não percebíamos) antes. Terminámos, porém, com uma dúvida acrescida: a de não entender a relação da autora com o livro que escreveu.
Vamos por partes. Não sendo uma obra-prima de estilo – faltará à ex-comunista o «dom e a capacidade de escrita», sobrando-lhe «tão-só a vontade de escrever» – e eliminada, pois, a questão do como, restam duas perguntas (o «para quê» fica, legitimamente, no foro privado): escrever o quê, e de que ponto de vista?
Decidiu a autora organizar a autobiografia respeitando a ordem cronológica e começando pelo princípio. E o princípio vem antes do PCP. Assim, o relato inicia-se pela infância e prossegue: juventude, militância, clandestinidade, pós-25 de Abril e a explusão em 1989, só com um voto contra: o de si própria. Termina aí. Mas o problema é que nada do que conta até essa data (a não ser alguns, muito escassos, episódios) é novo: os métodos do PCP, as lutas durante o Estado Novo, a organização piramidal, as casas clandestinas, as «companheiras», a actuação no pós-25 de Abril, o peso de Álvaro Cunhal, as vias de passagem ao socialismo, as infiltrações no aparelho de Estado, tudo isso está hoje documentado e constitui matéria de estudo. É verdade que alguns factos vêm gerando polémica: Raimundo Narciso nega ter estado em casa da ex-camarada; Nuno Ramos de Almeida vem defender o nome do pai, Pedro Ramos de Almeida; o «Serviço Cívico Estudantil» divide opiniões... Nada de bombástico...
E a frustação instala-se à medida que avançamos. A linguagem e os clichés de época aliados à fórmula descritiva (uma espécie de história do PCP contada às crianças, com sublinhados e repetições que chegam a ser penosos), a que se acrescenta a falta de reflexão sobre os acontecimentos (e, muito menos, sobre a actuação da autora, que se limita a repetir, à exaustão, que era assim...), tornam Foi Assim num livro menor, cujo sucesso mediático se justificará por todas as razões, menos pela sua qualidade intrínseca.
Sublinhe-se: a questão não é Zita Seabra ter ou não ter escrito um acto de contrição. A questão nem sequer é nunca percebermos porque não entrega o cartão após o assassinato da amiga Sita Valles pelo MPLA. A questão está em que nada neste livro nos explica – nunca – a sua actuação particular como militante. E se nem todos eles seguiriam o modelo de Georgette (a temível controleira dos primórdios), porque o terá escolhido ela?
Apesar do «olhar pessoal» referido no preâmbulo, poucas vezes a vemos incidi-lo sobre si. Gasta, porém, demasiado tempo a referir nomes de quem não resistiu às torturas da PIDE ou teve comportamentos menos exemplares na dedicação à causa. E há reflexões de um primarismo inaceitável, como aquela em que, referindo-se ao «relacionamento difícil com as mulheres» de Cunhal, remata: «Os psicanalistas diriam certamente que isso vinha da relação conflituosa que ele teve com a mãe – que, como é sabido [eu não sabia, mas pronto] e ele mo relatou diversas vezes, nunca visitou o filho na cadeia durante todos os anos em que esteve preso.»
Para concluir. Contas feitas, continuará Zita Seabra convencida de ter estado no sítio certo à hora certa? Porque, se por um lado, escreve: «Que ninguém diga que ignorava: os comunistas portugueses sempre souberam de tudo», logo acrescenta: «Mas não me julgue, porque não tem autoridade moral ou ética para o fazer, aquele que não lutou pela liberdade em Portugal (...)». Arthur Koestler disse uma coisa só muito vagamente parecida. Estava-se, porém, nos anos 40, antes do Muro de Berlim e de tudo o resto que, afinal, se sabia.
03/08/07
Mais MNAA: petição contra o afastamento de Dalila Rodrigues
Veio parar-me às mãos uma petição online contra o afastamento da, até agora, directora do Museu Nacional de Arte Antiga. Quem quiser assinar, basta clicar em baixo. Eu assinei, também por causa do famigerado salmão, por acaso representado em primeiro plano em As Tentações de Santo Antão de Hieronymus Bosch, outra das razões que me levam a visitar tantas vezes o MNAA, para além da gastronomia, claro, e do facto de viver por perto (a cultura requer algum sacrifício, mas se se puder chegar lá a pé, tanto melhor...)
MNAA: sigam o cherne, perdão, o salmão
Diz-me a minha amiga Doris Graça Dias que o meu anterior post sobre o Museu Nacional de Arte Antiga parecia insinuar que seria a ex-directora do Museu, Dalila Rodrigues, a responsável pela não reabertura do restaurante do Museu, cuja concessão terminou no final de 2006... até hoje. Ora, não tendo eu quaisquer informações oficiais ou não oficiais sobre as razões de tão estranho encerramento (que, aliás, sempre me foram negadas nas várias vezes que por lá passei e dei com o nariz na porta), o que quis dizer foi tão-só isto: parece-me crível que o facto se deva às divergências entre Dalila Rodrigues e a tutela, o que, só neste país tão estupidamente partidarizado, leva a que uma coisa como um restaurante também vá por arrasto. Mas, afinal, se entre nós até o cargo de Director de Centro de Saúde é de confiança política, porque não as sandes? Ver: Meditação na Pastelaria: Museu Nacional de Arte Antiga
Fashion: a História dentro do guarda-vestidos
02/08/07
Museu Nacional de Arte Antiga
A directora do Museu Nacional de Arte Antiga, Dalila Rodrigues, foi afastada do cargo. Ultrapassam-me os meandros da coisa, mas talvez este afastamento ponha finalmente fim ao mistério do encerramento do restaurante do Museu desde final de 2006. Perdoem-se tão baixas preocupações, mas é que eu moro lá por perto e por mais de uma vintena de vezes bati com o nariz na porta. Comia-se bem no Museu. Os jardins são lindíssimos e a sua vista sobre o Tejo é das melhores de Lisboa. Uns iriam pelos Painéis, outros pela gastronomia. Não são incompatíveis. Mas que aquilo já me andava a fazer espécie, andava. Afinal, as razões seriam de alta política. E, se como diria Bertolt Brecht, tudo é política, natural foi que nem as sandes de salmão escapassem. E eram umas boas sandes.
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