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Esqueçam o mediático Michel Houllebecq e acreditem em mim: o discreto Jean Echenoz é, esse sim, um dos melhores escritores franceses da actualidade.
Pouco conhecido entre nós (apesar de quatro livros traduzidos:
Vou-me Embora,
Um Ano, ambos de 2000 na Terramar;
A Ocupação dos Solos, 2002, e
As Grandes Loiras, 2004, estes dois na Ambar), seria uma tremenda injustiça deixar passar ao lado
Correr, romance que reinventa a vida de Emil Zapotek, lenda checa do atletismo mundial, único homem capaz de vencer até hoje os 5 e os 10 mil metros, além da Maratona, numa mesma Olimpíada (1952, Helsínquia).
Zapotek, que ficará conhecido como “A Locomotiva” e que um dia, calcular-se-á, “só a treinar (…) terá dado três voltas à terra a correr”, é reinventado por Echenoz num livro comovente e em registo sincopado (ao estilo de Emil), no qual a personagem se funde com a crítica social e a História.
Ressalva: Jean Echenoz não escreve biografias, escreve ficção. Zapotek serve-lhe, como antes lhe servira Ravel (em livro homónimo) e, posteriormente, o engenheiro inventor Nikola Tesla em
Des éclairs, para mergulhar na literatura, construir personagens e a sua geografia (o próprio afirmou escrever “romances geográficos”), deixando para os historiadores a tarefa dos factos. No fundo, recria e parodia em
Correr (e nos outros dois títulos citados) o género biográfico, como o fizera já com o policial, aventuras, espionagem, etc.
“Há corredores que parecem voar, outros que parecem dançar, outros que dão a impressão de desfilar, outros, ainda, dão ares de avançar sentados sobre as pernas. E há quem pareça apenas ir o mais rapidamente possível para onde acabam de os chamar. Emil não é nada de tudo isto. Longe dos cânones académicos e de qualquer preocupação de elegância, Emil progride de uma maneira pesada, descomposta, torturada, todas aos repelões”, escreve-se na pág. 39. Adepto de uma heterodoxia sofredora, sem programa que não seja o de chegar o mais depressa possível à meta – e que tantas vitórias lhe proporcionou –, o mesmo desalinho o fará cair mais tarde em desgraça, agora política e não desportiva.
Correr abre com a subida do nazismo na Checoslováquia e termina com o esmagamento da Primavera de Praga. E é entre os dois acontecimentos – a invasão dos alemães e a invasão dos russos – que se irá dar a ascensão e queda de Emil Zatopek.
Nascido numa família pobre, operário que sonha estudar para químico, começa a correr a contragosto para o ocupante nazi, correrá depois para o regime comunista do qual se tornará emblema e troféu, para acabar, sucessivamente, funcionário numa mina, varredor de rua e cavador de buracos para postes de electricidade, antes de o convencerem a assinar um documento em que reconhecerá os erros do passado e as maravilhas do sistema: “Ele assina. Assina a sua autocrítica, que outra coisa pode fazer para ter paz? Assina e, pouco depois, ei-lo perdoado. O purgatório acabou. Confiam-lhe um lugar numa cave do Centro de Informação dos Desportos, em Praga. Está bem, diz o doce Emil. Arquivista; sem dúvida que eu não merecia melhor”.
Revisitação da História e da Geografia (acompanharemos “A Locomotiva” nas suas várias idas ao estrangeiro),
Correr é um belíssimo romance, escrito na toada minimalista característica de Echenoz que, contudo, nada tem de descarnada por via do humor, da paródia ou das derivações que o escritor francês vai buscar a Beckett ou a Sterne, se quisermos deixar de lado as inovações do Nouveau Romain francês (que, na verdade, não podemos). Exemplo de literatura moderna e pós-moderna, lúcido, lúdico e inventivo,
Correr merece leitores. Por Echenoz mas também por Zatopek.
Correr, Jean Echenoz, Cavalo de Ferro