Apesar do casamento real, o romantismo já conheceu dias melhores. E não será preciso recorrer ao Romeu e Julieta ou ao desgraçado do Werther para perceber que já (quase) ninguém morre de amores. No facebook, esse barómetro contemporâneo do comportamento das massas (como antigamente se dizia), as pessoas deixaram de estar apaixonadas por (apesar da quantidade de casamentos desfeitos pelas facadinhas online) para passarem a estar… numa relação com.
Sem ter a certeza se Burroughs estava certo quando definiu a linguagem como “a vírus from outer space”, o facto é que as palavras são sintoma. Assim, não será por acaso que os jovens deixaram de empregar o verbo namorar no presente do indicativo — eu namoro, tu namoras, ele namora, nós namoramos, vós namorais, eles namoram — preferindo transformá-lo numa forma composta com recurso ao verbo estar como auxiliar temporal: A está a namorar com B; C e D estão a namorar; E (eu) estou a namorar com F (ele, ela ou mesmo @, este último surgido “from outer space” quando o “género” se sobrepôs ao “sexo”, na minha modesta opinião sem qualquer vantagem e antes pelo contrário).
Esta negação de futuro, ou, pelo menos, a adesão a um futuro incerto (sei lá eu se amanhã ainda estou a namorar) — o que nas relações laborais ganha o nome de “precariedade” (sim, isto anda tudo ligado) — é mortal para a invenção do amor (um poema muito em voga quando eu era jovem e se namorava para a vida mesmo que tudo terminasse logo no fim-de-semana).
Se isto é verdade, ou seja, se a banalidade da incerteza amorosa substituiu a inocência juvenil e o amor romântico, prevê-se que a literatura sofra um rude golpe. Como ler essa coisa absolutamente excessiva que é O Monte dos Vendavais? Como ler o dilacerante Debaixo do Vulcão? Anna Karenina? (deixo de lado a Joaninha e o Carlos do Viagens da Minha Terra que já na minha altura eram um pouco secantes…).
“Vamo-nos dar um tempo. Estou sem disponibilidade. Preciso de me dedicar mais ao blogue…”, eis um diálogo real dos tempos actuais. Será possível escrever um romance com pérolas destas?
30/04/11
29/04/11
27/04/11
Deus não existe e nós somos os seus profetas
Tinha 57 anos e quatro filhos. Trabalhava há três décadas na France Télécom. Pertencia ao grupo dos sortudos, dos que não foram para a rua durante o reinado de Didier Lombard, o PDG genial e empreendedor responsável pela “moda dos suicídios” e que bem podia, mais coisa menos coisa, ser um dos muitos filhos de puta que enchem os romances de DeLillo.
Ao velho funcionário, haviam-se limitado a transferi-lo de local de trabalho obrigando-o a mudar de residência e constantemente de funções. O homem, um fraco, um mal-agradecido, claro, não aguentou tanta modernidade. Tanta mobilidade. Suicidou-se pelo fogo no parque de estacionamento da empresa. Sozinho. Sem espectáculo e sem espectadores. Não o conseguiram filmar nem com a porra de um telemóvel.
Ao velho funcionário, haviam-se limitado a transferi-lo de local de trabalho obrigando-o a mudar de residência e constantemente de funções. O homem, um fraco, um mal-agradecido, claro, não aguentou tanta modernidade. Tanta mobilidade. Suicidou-se pelo fogo no parque de estacionamento da empresa. Sozinho. Sem espectáculo e sem espectadores. Não o conseguiram filmar nem com a porra de um telemóvel.
26/04/11
Esta sou eu em 500 caracteres*
Nasci numa terra pícara de gente ligada ao mar, o que, sendo eu fervorosa adepta da genética e da geografia, talvez explique muita coisa. Estudei filosofia mas troquei-a por uma paixão no estrangeiro justificada sem remorsos com o Borges: “A metafísica é um ramo da literatura fantástica”. Trabalhei na Assírio & Alvim. Andei por revistas e jornais e escrevi uma história infantil. Traduzo, leio livros, tenho três filhas e uma cadela. Gosto de pensar que também a mim um anjo disse: “Vai, Ana! ser gauche na vida”.
* Texto escrito a pedido de Carla Quevedo e que serve assim a modos para me apresentar a quem quiser vir conversar com a Carla, o João Gonçalves e eu, quinta-feira 28 de Abril, às 19 h na Almedina do Atrium Saldanha, Lisboa
* Texto escrito a pedido de Carla Quevedo e que serve assim a modos para me apresentar a quem quiser vir conversar com a Carla, o João Gonçalves e eu, quinta-feira 28 de Abril, às 19 h na Almedina do Atrium Saldanha, Lisboa
25/04/11
24/04/11
23/04/11
Matéria não falta
La vie est un roman como dizia o Resnais e a pátria dava com certeza para vários. O que é feito, porém, d’o delfim do Portugal de hoje desaçaimado, “só três sílabas”, “de plástico, que era mais barato”, onde “o que importa não é haver gente com fome/ porque assim como assim ainda há muita gente que come”? Bocage aviaria sem espinhas dúzia e meia de sonetos e de Natália nem se fale. A O’Neill sobrar-lhe-iam versos. Eça não teria a mãos a medir com tanto Conde de Abranhos.
Bastaria que lhe trocássemos a Universidade em Coimbra por outra na capital (Independente ou Moderna cairiam que nem ginjas). A carta de denúncia anónima teria novo destinatário: estando na moda, o DIAP. Quanto ao caso da criada, ver-se-ia substituído por aventura infecunda com aspirante a modelo. A carreira política iniciá-la-ia numa Câmara de província. Daí a conselheiro Acácio seria pequeno passo, função que acumularia com a de blogger de culto (e, de preferência, oculto).
Casa com filha de ex-ministro. Lua-de-mel no Bazaruto (where else?) e a deputação vem a caminho. Faz-se notar nas bancadas pela combatividade e certa linguagem chã. A previsível vitória da oposição leva-o a mudar de partido. Questionado sobre a sua decisão, cita Abranhos, o original: “Questões de latitude não mudam a política”. Divorcia-se com discrição. Chega a secretário de Estado. Poucos meses depois telefona em segredo para casa: “Pai, já sou ministro”. O alfaiate desliga.
Dois anos de serviço público e convidam-no para CEO. Aceita. Em missão além fronteiras, atravessa-se-lhe no caminho um sósia do Ricky Martin. Abranhos comes out of the closet e abre novo capítulo: la vida loca. A qualquer solicitação, passará a responder “I would prefer not to”. Há quem garanta que, abandonada por fim a carreira empresarial e trocado Ricky por Martin, se torna marchand em Berlim. Outros dão-no como transformista em Las Vegas. Um primo em 3º grau jura que o viu no Allgarve degustando sardinhas confitadas sur lit d’endives… Em suma: onde estão os escritores quando precisamos deles?
Imagem roubada aqui
Bastaria que lhe trocássemos a Universidade em Coimbra por outra na capital (Independente ou Moderna cairiam que nem ginjas). A carta de denúncia anónima teria novo destinatário: estando na moda, o DIAP. Quanto ao caso da criada, ver-se-ia substituído por aventura infecunda com aspirante a modelo. A carreira política iniciá-la-ia numa Câmara de província. Daí a conselheiro Acácio seria pequeno passo, função que acumularia com a de blogger de culto (e, de preferência, oculto).
Casa com filha de ex-ministro. Lua-de-mel no Bazaruto (where else?) e a deputação vem a caminho. Faz-se notar nas bancadas pela combatividade e certa linguagem chã. A previsível vitória da oposição leva-o a mudar de partido. Questionado sobre a sua decisão, cita Abranhos, o original: “Questões de latitude não mudam a política”. Divorcia-se com discrição. Chega a secretário de Estado. Poucos meses depois telefona em segredo para casa: “Pai, já sou ministro”. O alfaiate desliga.
Dois anos de serviço público e convidam-no para CEO. Aceita. Em missão além fronteiras, atravessa-se-lhe no caminho um sósia do Ricky Martin. Abranhos comes out of the closet e abre novo capítulo: la vida loca. A qualquer solicitação, passará a responder “I would prefer not to”. Há quem garanta que, abandonada por fim a carreira empresarial e trocado Ricky por Martin, se torna marchand em Berlim. Outros dão-no como transformista em Las Vegas. Um primo em 3º grau jura que o viu no Allgarve degustando sardinhas confitadas sur lit d’endives… Em suma: onde estão os escritores quando precisamos deles?
Imagem roubada aqui
22/04/11
Qual Wittgenstein qual carapuça: isto sim, é um tratado lógico-filosófico verdadeiramente genial
21/04/11
A book a day keeps the doctor away: "Correr", Jean Echenoz
Esqueçam o mediático Michel Houllebecq e acreditem em mim: o discreto Jean Echenoz é, esse sim, um dos melhores escritores franceses da actualidade.
Pouco conhecido entre nós (apesar de quatro livros traduzidos: Vou-me Embora, Um Ano, ambos de 2000 na Terramar; A Ocupação dos Solos, 2002, e As Grandes Loiras, 2004, estes dois na Ambar), seria uma tremenda injustiça deixar passar ao lado Correr, romance que reinventa a vida de Emil Zapotek, lenda checa do atletismo mundial, único homem capaz de vencer até hoje os 5 e os 10 mil metros, além da Maratona, numa mesma Olimpíada (1952, Helsínquia).
Zapotek, que ficará conhecido como “A Locomotiva” e que um dia, calcular-se-á, “só a treinar (…) terá dado três voltas à terra a correr”, é reinventado por Echenoz num livro comovente e em registo sincopado (ao estilo de Emil), no qual a personagem se funde com a crítica social e a História.
Ressalva: Jean Echenoz não escreve biografias, escreve ficção. Zapotek serve-lhe, como antes lhe servira Ravel (em livro homónimo) e, posteriormente, o engenheiro inventor Nikola Tesla em Des éclairs, para mergulhar na literatura, construir personagens e a sua geografia (o próprio afirmou escrever “romances geográficos”), deixando para os historiadores a tarefa dos factos. No fundo, recria e parodia em Correr (e nos outros dois títulos citados) o género biográfico, como o fizera já com o policial, aventuras, espionagem, etc.
“Há corredores que parecem voar, outros que parecem dançar, outros que dão a impressão de desfilar, outros, ainda, dão ares de avançar sentados sobre as pernas. E há quem pareça apenas ir o mais rapidamente possível para onde acabam de os chamar. Emil não é nada de tudo isto. Longe dos cânones académicos e de qualquer preocupação de elegância, Emil progride de uma maneira pesada, descomposta, torturada, todas aos repelões”, escreve-se na pág. 39. Adepto de uma heterodoxia sofredora, sem programa que não seja o de chegar o mais depressa possível à meta – e que tantas vitórias lhe proporcionou –, o mesmo desalinho o fará cair mais tarde em desgraça, agora política e não desportiva.
Correr abre com a subida do nazismo na Checoslováquia e termina com o esmagamento da Primavera de Praga. E é entre os dois acontecimentos – a invasão dos alemães e a invasão dos russos – que se irá dar a ascensão e queda de Emil Zatopek.
Nascido numa família pobre, operário que sonha estudar para químico, começa a correr a contragosto para o ocupante nazi, correrá depois para o regime comunista do qual se tornará emblema e troféu, para acabar, sucessivamente, funcionário numa mina, varredor de rua e cavador de buracos para postes de electricidade, antes de o convencerem a assinar um documento em que reconhecerá os erros do passado e as maravilhas do sistema: “Ele assina. Assina a sua autocrítica, que outra coisa pode fazer para ter paz? Assina e, pouco depois, ei-lo perdoado. O purgatório acabou. Confiam-lhe um lugar numa cave do Centro de Informação dos Desportos, em Praga. Está bem, diz o doce Emil. Arquivista; sem dúvida que eu não merecia melhor”.
Revisitação da História e da Geografia (acompanharemos “A Locomotiva” nas suas várias idas ao estrangeiro), Correr é um belíssimo romance, escrito na toada minimalista característica de Echenoz que, contudo, nada tem de descarnada por via do humor, da paródia ou das derivações que o escritor francês vai buscar a Beckett ou a Sterne, se quisermos deixar de lado as inovações do Nouveau Romain francês (que, na verdade, não podemos). Exemplo de literatura moderna e pós-moderna, lúcido, lúdico e inventivo, Correr merece leitores. Por Echenoz mas também por Zatopek.
Correr, Jean Echenoz, Cavalo de Ferro
Pouco conhecido entre nós (apesar de quatro livros traduzidos: Vou-me Embora, Um Ano, ambos de 2000 na Terramar; A Ocupação dos Solos, 2002, e As Grandes Loiras, 2004, estes dois na Ambar), seria uma tremenda injustiça deixar passar ao lado Correr, romance que reinventa a vida de Emil Zapotek, lenda checa do atletismo mundial, único homem capaz de vencer até hoje os 5 e os 10 mil metros, além da Maratona, numa mesma Olimpíada (1952, Helsínquia).
Zapotek, que ficará conhecido como “A Locomotiva” e que um dia, calcular-se-á, “só a treinar (…) terá dado três voltas à terra a correr”, é reinventado por Echenoz num livro comovente e em registo sincopado (ao estilo de Emil), no qual a personagem se funde com a crítica social e a História.
Ressalva: Jean Echenoz não escreve biografias, escreve ficção. Zapotek serve-lhe, como antes lhe servira Ravel (em livro homónimo) e, posteriormente, o engenheiro inventor Nikola Tesla em Des éclairs, para mergulhar na literatura, construir personagens e a sua geografia (o próprio afirmou escrever “romances geográficos”), deixando para os historiadores a tarefa dos factos. No fundo, recria e parodia em Correr (e nos outros dois títulos citados) o género biográfico, como o fizera já com o policial, aventuras, espionagem, etc.
“Há corredores que parecem voar, outros que parecem dançar, outros que dão a impressão de desfilar, outros, ainda, dão ares de avançar sentados sobre as pernas. E há quem pareça apenas ir o mais rapidamente possível para onde acabam de os chamar. Emil não é nada de tudo isto. Longe dos cânones académicos e de qualquer preocupação de elegância, Emil progride de uma maneira pesada, descomposta, torturada, todas aos repelões”, escreve-se na pág. 39. Adepto de uma heterodoxia sofredora, sem programa que não seja o de chegar o mais depressa possível à meta – e que tantas vitórias lhe proporcionou –, o mesmo desalinho o fará cair mais tarde em desgraça, agora política e não desportiva.
Correr abre com a subida do nazismo na Checoslováquia e termina com o esmagamento da Primavera de Praga. E é entre os dois acontecimentos – a invasão dos alemães e a invasão dos russos – que se irá dar a ascensão e queda de Emil Zatopek.
Nascido numa família pobre, operário que sonha estudar para químico, começa a correr a contragosto para o ocupante nazi, correrá depois para o regime comunista do qual se tornará emblema e troféu, para acabar, sucessivamente, funcionário numa mina, varredor de rua e cavador de buracos para postes de electricidade, antes de o convencerem a assinar um documento em que reconhecerá os erros do passado e as maravilhas do sistema: “Ele assina. Assina a sua autocrítica, que outra coisa pode fazer para ter paz? Assina e, pouco depois, ei-lo perdoado. O purgatório acabou. Confiam-lhe um lugar numa cave do Centro de Informação dos Desportos, em Praga. Está bem, diz o doce Emil. Arquivista; sem dúvida que eu não merecia melhor”.
Revisitação da História e da Geografia (acompanharemos “A Locomotiva” nas suas várias idas ao estrangeiro), Correr é um belíssimo romance, escrito na toada minimalista característica de Echenoz que, contudo, nada tem de descarnada por via do humor, da paródia ou das derivações que o escritor francês vai buscar a Beckett ou a Sterne, se quisermos deixar de lado as inovações do Nouveau Romain francês (que, na verdade, não podemos). Exemplo de literatura moderna e pós-moderna, lúcido, lúdico e inventivo, Correr merece leitores. Por Echenoz mas também por Zatopek.
Correr, Jean Echenoz, Cavalo de Ferro
17/04/11
Daqui ninguém sai vivo
1. “Vai ali um português existencial”, diz o meu amigo poeta. E o português existencial de facto lá vai, gabardina, chapéu-de-chuva e uma prótese de jornais cujo peso lhe acentua a silhueta alquebrada. Dirige-se ao bar da esquina – homens feios, senectas balzaquianas e alguns turistas. Discute-se a queda do governo, o FMI e a dimensão pós-ontológica do PS do Sócrates. Ao fim de três cervejas, o português existencial garante que “isto era preciso era outra revolução!” e dispara uma palmada enérgica sobre a coxa da loura oxigenada sentada ao lado dele.
2. D. Fernanda, cozinheira de profissão, arrenda, há 20 anos, um restaurante em Arroios. É casada com o Sr. Fernando, ex-empregado de mesa. Todos os dias saem de casa às seis e meia excepto ao domingo, dia que reservam para a ida ao hiper-mercado invariavelmente coroada por “uma bica bem quentinha e um pastelinho de nata chávena escaldada faz favor”. Nunca foram ao estrangeiro e há mais de um ano que não descem ao Rossio. A filha, enfermeira, ofereceu-lhes um “Magalhães”. E se o pai continuou a preferir a Sport TV, a mãe ficou expert em junk mail e passatempos online.
3. Paulo vai pôr o dinheiro na Suíça: “A mim não me apanham eles.” Toma um whisky com muito gelo porque a idade já não perdoa. Chegou há pouco do ginásio e a balança brindou-o com menos 80 gramas. “Na Suíça!”, insiste entre dois tragos. Fai, a mulher, olha para a ponte Vasco da Gama alumiada e deixa-se ficar sonhadoramente com um palito de azeitona entre os dentes. Pensa num forcado de Alcochete que conheceu a caminho do Freeport.
4. "Quando sais à noite, se é para o engate o segredo está nos boxers largos”, diz a miúda a descer a rua, ainda a noite é uma criança. “Tu achas?”, pergunta um dos rapazes do grupo. “Tenho a certeza!”, reafirma com fé inabalável e passo trôpego. “Claro!”, concorda uma segunda. “No nosso caso é diferente. Lingerie mínima a condizer.” “E a Tânia que vinha com um fio dental preto e um soutien cor-de-rosa…” “Que nojo!”, diz o segundo rapaz, até então calado.
2. D. Fernanda, cozinheira de profissão, arrenda, há 20 anos, um restaurante em Arroios. É casada com o Sr. Fernando, ex-empregado de mesa. Todos os dias saem de casa às seis e meia excepto ao domingo, dia que reservam para a ida ao hiper-mercado invariavelmente coroada por “uma bica bem quentinha e um pastelinho de nata chávena escaldada faz favor”. Nunca foram ao estrangeiro e há mais de um ano que não descem ao Rossio. A filha, enfermeira, ofereceu-lhes um “Magalhães”. E se o pai continuou a preferir a Sport TV, a mãe ficou expert em junk mail e passatempos online.
3. Paulo vai pôr o dinheiro na Suíça: “A mim não me apanham eles.” Toma um whisky com muito gelo porque a idade já não perdoa. Chegou há pouco do ginásio e a balança brindou-o com menos 80 gramas. “Na Suíça!”, insiste entre dois tragos. Fai, a mulher, olha para a ponte Vasco da Gama alumiada e deixa-se ficar sonhadoramente com um palito de azeitona entre os dentes. Pensa num forcado de Alcochete que conheceu a caminho do Freeport.
4. "Quando sais à noite, se é para o engate o segredo está nos boxers largos”, diz a miúda a descer a rua, ainda a noite é uma criança. “Tu achas?”, pergunta um dos rapazes do grupo. “Tenho a certeza!”, reafirma com fé inabalável e passo trôpego. “Claro!”, concorda uma segunda. “No nosso caso é diferente. Lingerie mínima a condizer.” “E a Tânia que vinha com um fio dental preto e um soutien cor-de-rosa…” “Que nojo!”, diz o segundo rapaz, até então calado.
13/04/11
Admirável mundo novo: nem as sementes, porra!
Enquanto andamos entretidos salvo seja com a novela FMI, a Comunidade Europeia prepara-se para regular... sementes.
E se pensa tratar-se de assunto de somenos importância... leia aqui.
Eu por mim fico na dúvida: esta gente devia ser internada, presa ou ambos?
E se pensa tratar-se de assunto de somenos importância... leia aqui.
Eu por mim fico na dúvida: esta gente devia ser internada, presa ou ambos?
12/04/11
A book a day keeps the doctor away: "Contra a Literatice e Afins", João Gonçalves
Terminada a leitura de Contra a Literatice e Afins, uma conclusão se impõe (entre outras): a objectividade pode ser, às vezes, muito subjectiva. Dito isto, acrescente-se que a frase anterior não tem carácter epistemológico mas tão-só idiossincrático: João Gonçalves zurze no que não gosta e exalta o que gosta de um modo que não deixa margem para dúvidas.
O poeta-padre José Tolentino Mendonça, por ex., Não [o] aquece nem arrefece com os seus rodriguinhos que deixam muita gente eminentemente respeitável em êxtase; já Manuel Teixeira Gomes lhe merece um texto compassivo e perspicaz: Era um sensualista que amava os prazeres indistintos que a vida lhe proporciona e que talvez se tivesse enganado, como outros, no lugar onde nasceu.
João Gonçalves, jurista, colaborador do defunto Semanário e autor do blogue Portugal dos Pequeninos, esclarece a abrir que fez um livro de breves notas e não de teses, no pressuposto elementar de que a literatura não é democrática. Aquilo que condena à cabeça é a literatice pela literatice, mal que reputa ter atacado em doses decididamente não homeopáticas o que passa por literatura portuguesa contemporânea. Pugna pelo gozo estético, citando Nabokov, e esgrime contra a proliferação das más ideias em torno da literatura.
O programa será vasto mas, posto assim, absolutamente consensual.
E será também por isso que o seu livro, cuja irreverência se presume, acaba por saber a pouco. Se era para “bater”, uns eram desnecessários e outros faltam.
Mas não fora para ler o seu argumento contra o acordo ortográfico valeria a pena: um ‘intelectual’ que fala em ‘uniformização da língua’ não é um intelectual. É uma besta.
Contra a Literatice e Afins, João Gonçalves, Guerra & Paz, 2011
O poeta-padre José Tolentino Mendonça, por ex., Não [o] aquece nem arrefece com os seus rodriguinhos que deixam muita gente eminentemente respeitável em êxtase; já Manuel Teixeira Gomes lhe merece um texto compassivo e perspicaz: Era um sensualista que amava os prazeres indistintos que a vida lhe proporciona e que talvez se tivesse enganado, como outros, no lugar onde nasceu.
João Gonçalves, jurista, colaborador do defunto Semanário e autor do blogue Portugal dos Pequeninos, esclarece a abrir que fez um livro de breves notas e não de teses, no pressuposto elementar de que a literatura não é democrática. Aquilo que condena à cabeça é a literatice pela literatice, mal que reputa ter atacado em doses decididamente não homeopáticas o que passa por literatura portuguesa contemporânea. Pugna pelo gozo estético, citando Nabokov, e esgrime contra a proliferação das más ideias em torno da literatura.
O programa será vasto mas, posto assim, absolutamente consensual.
E será também por isso que o seu livro, cuja irreverência se presume, acaba por saber a pouco. Se era para “bater”, uns eram desnecessários e outros faltam.
Mas não fora para ler o seu argumento contra o acordo ortográfico valeria a pena: um ‘intelectual’ que fala em ‘uniformização da língua’ não é um intelectual. É uma besta.
Contra a Literatice e Afins, João Gonçalves, Guerra & Paz, 2011
10/04/11
Do Platão ao bailinho da Madeira passando pelas favas acaralhadas
O retrato do artista enquanto saltimbanco, tão difundido ao longo do século XIX em imagens hiperbólicas e voluntariamente deformadoras, renasceu, no nosso tempo, graças aos ‘festivais de literatura’. Curiosamente, a arte literária, que tinha ficado fora do retrato, tornou-se entretanto o seu modelo de eleição. Os festivais onde o escritor se apresenta como saltimbanco têm os seus antepassados no teatro de feira, nas “fêtes foraines”, no mundo cómico e farsante das “troupes”, dos “bouffons” e dos acrobatas. Pese embora o esforço que muitos participantes fazem para disfarçar essa incómoda linhagem, ela surge com toda a evidência quando entra em ação o grande “clown” da commedia literária — misto de Pierrot e Arlequim — que se chama Eduardo Pitta. Leia-se o que este rei da irrisão involuntária escreveu no seu blogue sobre o Festival Literário da Madeira para percebermos o que é esse mundo feérico, onde as proezas funambulescas do escritor se dissipam numa apoteose gastronómica. Quando ele chega, uma glória fácil espalha a sua luz e converte tudo em luxo, degustação e volúpia. Ou, nas palavras do artista, “gossips & drinks”. Não fosse ele poeta, não fosse a sua exuberância de clown admirada pelos seus pares como um equivalente alegórico do ato poético e aplaudida como um feito da mais genial “bouffonnerie” (é ele que fala da “versão madeirense de ‘La grande bouffe’”) e ninguém lhe perdoaria a licenciosidade com que transforma um festival literário num piquenicão para “happy few” (utilizando uma expressão que lhe é cara). A um festival, mesmo literário, não se pede ascetismo. Mas, para o seu prestígio, não convém a pantomima de um Arlequim que descreve como “grande bouffe” o que os seus anfitriões apresentam como pura substância espiritual.
Texto assinado por António Guerreiro no Expresso deste sábado a propósito de uma coisa chamada Festival Literário da Madeira
Texto assinado por António Guerreiro no Expresso deste sábado a propósito de uma coisa chamada Festival Literário da Madeira
Feios, vigaristas e pirosos (ou pior é sempre possível)
Parece que o filme da história do PS foi passado no Congresso ao som da voz de Dionne Warwick que cantava That's What Friends are For.
Traduzido dá isto: Continua a sorrir, continua a brilhar/ Sabendo que podes sempre contar comigo, sem dúvida/ É para isto que servem os amigos/ Nas horas felizes e nos tempos adversos/ Estarei sempre a teu lado/ É para isto que servem os amigos
Imagino os olhos marejados de lágrimas dos congressistas. Sócrates a cantar em inglês. Imagino os braços no ar a marcar o ritmo, as mãos dadas e a comoção ao rubro. As palmas sentidas. Os beijos e abraços no final.
Imagino tudo isto e pergunto-me se no filme também terão passado as casinhas. Ó as casinhas! Isso é que era.
09/04/11
Gente lobotomizada à nascença (I)
Há uma grande diferença entre ter o PSD mais o FMI e o PS mais o FMI, disse Carlos César sem se rir e, ao que parece, tentando transmitir aos portugueses o entusiasmo do PS.
A culpa foi do macaco
Fora O Processo escrito, não pelo Franz Kafka mas por um autor português, o mais provável seria que Josef K. não morresse no fim “como um cão”, antes continuasse a deambular até hoje pelos corredores dos tribunais feito Sísifo.
Sísifo — o grego espertalhaço que Camus usou para escrever um ensaio cuja frase de abertura (Existe apenas um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio) se tornou há muito num dito de salão, à imagem dos girassóis de van Gogh reproduzidos ad nauseam nos posters da minha juventude tendo por único rival a fotografia do Che tirada pelo Alberto Korda, caracóis, boina e olhar oblíquo — acabaria a carregar para todo o sempre uma pedra, monte acima monte abaixo, castigo dos deuses que lhe provavam, assim, que quem se metia com eles lixava-se.
Este cultivado intróito serve apenas para nos conduzir à variante popular da frase de outro francês, Sartre: O Inferno são os outros, tirada dramática que em português vernáculo se poderia traduzir por “a culpa morreu solteira”.
Não será por mal. Os portugueses parecem sofrer de uma dificuldade congénita em lidar com a finitude das coisas (que melhor exemplo do que o mito sebastianista?), o que talvez possa advir, sabe-se lá, do facto de termos nascido num país aberto à imensidão oceânica.
Em alternativa, há quem invoque uma bipolaridade tipicamente lusa — ora arrotamos passadas glórias ora nos queixamos das varizes —, efeito ou causa (os especialistas dividem-se) da inveja e desconfiança, esses flagelos nacionais encarnados no Chico esperto, figura, ela própria, ora também cheia de graça ora caída em desgraça (ver José Gil, Em Busca da Identidade — o Desnorte).
De malandreco inofensivo a mafioso de dimensão caseira ou mesmo internacional, tudo parece indicar, contudo, que o número dos pequenos Chicos espertos tende a ser ultrapassado pelo número dos grandes Chicos espertos. Até porque, parafraseando Aristóteles e Pimenta, dentro do pequeno Chico esperto estão em potência os grandes.
Sísifo — o grego espertalhaço que Camus usou para escrever um ensaio cuja frase de abertura (Existe apenas um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio) se tornou há muito num dito de salão, à imagem dos girassóis de van Gogh reproduzidos ad nauseam nos posters da minha juventude tendo por único rival a fotografia do Che tirada pelo Alberto Korda, caracóis, boina e olhar oblíquo — acabaria a carregar para todo o sempre uma pedra, monte acima monte abaixo, castigo dos deuses que lhe provavam, assim, que quem se metia com eles lixava-se.
Este cultivado intróito serve apenas para nos conduzir à variante popular da frase de outro francês, Sartre: O Inferno são os outros, tirada dramática que em português vernáculo se poderia traduzir por “a culpa morreu solteira”.
Não será por mal. Os portugueses parecem sofrer de uma dificuldade congénita em lidar com a finitude das coisas (que melhor exemplo do que o mito sebastianista?), o que talvez possa advir, sabe-se lá, do facto de termos nascido num país aberto à imensidão oceânica.
Em alternativa, há quem invoque uma bipolaridade tipicamente lusa — ora arrotamos passadas glórias ora nos queixamos das varizes —, efeito ou causa (os especialistas dividem-se) da inveja e desconfiança, esses flagelos nacionais encarnados no Chico esperto, figura, ela própria, ora também cheia de graça ora caída em desgraça (ver José Gil, Em Busca da Identidade — o Desnorte).
De malandreco inofensivo a mafioso de dimensão caseira ou mesmo internacional, tudo parece indicar, contudo, que o número dos pequenos Chicos espertos tende a ser ultrapassado pelo número dos grandes Chicos espertos. Até porque, parafraseando Aristóteles e Pimenta, dentro do pequeno Chico esperto estão em potência os grandes.
08/04/11
A ecuménica loucura dos portugueses
«A ortodoxia em moda apela a que não se procurem “culpados”. Mas, se, de facto, não se procurarem “culpados”, para quem fica a culpa do tristíssimo fracasso do Portugal democrático? Para a má vontade de um Deus perverso? Para o destino? Ou para a insuficiência atávica do indígena? Era bom apurar isto, porque, se alguma destas três possibilidades (principalmente a última) ofende a delicadeza nacional, a única saída que nos resta é aceitar a ecuménica loucura dos portugueses. Quem se deixa chegar onde chegámos, levado por três dúzias de políticos, sempre reeleitos e até, às vezes, respeitados, não merece outro nome. E, pior ainda, quem desiste da verdade acaba inevitavelmente por desistir de si próprio.» Vasco Pulido Valente, lido aqui
07/04/11
Os banqueiros falaram, os socialistas acataram
Por ordem: 1. Falou o Santos Ferreira (BCP). 2. Falou o Salgado do BES. 3. O ministro das finanças disse umas palavrinhas 4. Finalmente, nunca iantes visto, o GRANDE TIMONEIRO veio dar o dito por não dito*. Pois é Luís, sejas tu quem fores, vamo-nos ver gregos! *E o que ele tinha dito, se bem se lembram, fora: Não estou disponível para governar com o FMI
05/04/11
FMI vem dar razão a Karl Marx — o que mais nos irá acontecer?
O velho Marx está com certeza a dar gargalhadas no túmulo. Enquanto Assis, o grande socialista, fala em arcaísmos, Dominique Strauss-Kahn, o grande capitalista, vem dar razão ao autor de O Capital (querem coisa mais arcaica?), reconhecendo que se acentuou "o fosso entre ricos e pobres". E se isto não são tempos interesantes, não sei o que são tempos interessantes.
Onde está a WikiLeaks quando precisamos dela?
Presidência esclarece que aquele órgão não presta esclarecimentos sobre o Conselho de Estado (...), pelo que cada conselheiro é responsável pelo que diz. Quanto à acta da reunião em que foi discutida a situação de Portugal e a dissolução do Parlamento, ainda não está feita e estará sob segredo durante 30 anos.
04/04/11
03/04/11
Os cavalos também se abatem
A Tokyo Electric Power Co, empresa que gere a central nuclear de Fukushima, estará à procura de heróis dispostos a morrer por 3 500 euros.
Tenho de deixar de ler notícias.
Tenho de deixar de ler notícias.
02/04/11
Ser rico não é tudo
Vamos chamar-lhe distracção e evitar o tema embaraçoso da miopia galopante.
Quero eu dizer: só agora reparei que a página do jornal "Expresso" onde publico semanalmente uma colunazinha se chama “três pastorinhos”.
Ora bem: não tendo já idade para poder ser incluída no grupo dos videntes, e apartada ainda da longevidade de Lúcia, restar-me-ia, pensei, tão-só a Nossa Senhora, a propósito da qual Desmond Tutu, provando que o humor nem sempre é contrário à fé, contou a seguinte anedota: “José aproxima-se, aflito, do estalajadeiro: ‘Por favor! Acuda! A minha mulher vai ter um bebé’. O homem, impassível, limita-se a encolher os ombros: ‘Desculpe, mas a culpa não é minha’, e é então que José lhe responde: ‘Minha também não!’
Jorge de Burgos, o bibliotecário cego de Eco, teria excomungado Tutu e decerto um amigo meu que há anos imaginou esta história:
Estavam três pastorinhos a pastorear muito sossegadinhos em Fátima quando, de súbito, avistam Nossa Senhora em cima de uma azinheira. Estupefactos, mantêm-se mudos e quedos até que um deles, mais afoito, lança à aparecida a tirada do Garrett: “Quem és tu?” A senhora, sem se deixar intimidar pelos clássicos, responde: “Sou a Nossa Senhora e venho trazer a verdade ao mundo”. E é então que a pastorinha comenta: “Outra marxista!”
Vinha isto a propósito da minha distracção, facto que em nada contradita que andemos precisados de milagres.
Não se afigura fácil, claro, por causa dos PECs, mas também porque um estudo qualquer de Dallas diz que a religião poderá extinguir-se em breve, pelo menos em nove países ricos. Dallas vale o que vale, mas uma coisa nos aquieta: não estamos incluídos.
Assim sendo, que venha a nós o milagre das rosas pelo avesso ou, em alternativa, a descoberta de petróleo em Alcobaça. Ai, Deus, e u é?, perguntam-se os técnicos da Mohave cerca de 700 anos após D. Dinis ter escrito “Ai, flores, ai, flores do verde pino”.
Ora bem: não tendo já idade para poder ser incluída no grupo dos videntes, e apartada ainda da longevidade de Lúcia, restar-me-ia, pensei, tão-só a Nossa Senhora, a propósito da qual Desmond Tutu, provando que o humor nem sempre é contrário à fé, contou a seguinte anedota: “José aproxima-se, aflito, do estalajadeiro: ‘Por favor! Acuda! A minha mulher vai ter um bebé’. O homem, impassível, limita-se a encolher os ombros: ‘Desculpe, mas a culpa não é minha’, e é então que José lhe responde: ‘Minha também não!’
Jorge de Burgos, o bibliotecário cego de Eco, teria excomungado Tutu e decerto um amigo meu que há anos imaginou esta história:
Estavam três pastorinhos a pastorear muito sossegadinhos em Fátima quando, de súbito, avistam Nossa Senhora em cima de uma azinheira. Estupefactos, mantêm-se mudos e quedos até que um deles, mais afoito, lança à aparecida a tirada do Garrett: “Quem és tu?” A senhora, sem se deixar intimidar pelos clássicos, responde: “Sou a Nossa Senhora e venho trazer a verdade ao mundo”. E é então que a pastorinha comenta: “Outra marxista!”
Vinha isto a propósito da minha distracção, facto que em nada contradita que andemos precisados de milagres.
Não se afigura fácil, claro, por causa dos PECs, mas também porque um estudo qualquer de Dallas diz que a religião poderá extinguir-se em breve, pelo menos em nove países ricos. Dallas vale o que vale, mas uma coisa nos aquieta: não estamos incluídos.
Assim sendo, que venha a nós o milagre das rosas pelo avesso ou, em alternativa, a descoberta de petróleo em Alcobaça. Ai, Deus, e u é?, perguntam-se os técnicos da Mohave cerca de 700 anos após D. Dinis ter escrito “Ai, flores, ai, flores do verde pino”.
E que a rainha Santa Isabel os pastoreie que, parafraseando o Pessoa, cognome Álvaro de Campos, o que há [em nós] é sobretudo cansaço.
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