29/04/08

Não sei se tenho bolas de berlim para tanta gente mas juro que irei esforçar-me

200 pessoas é muita pessoa junta (pelo menos para mim, admiradora inveterada do poor lonesome cowboy). Confesso-me, assim, um bocadinho assustada com o tráfego. Até porque não conduzo...

24/04/08

Pois, amanhã é 25 de Abril

Decorridos 34 anos do golpe militar que pôs fim ao Estado Novo (durante o qual colunas rebeldes obedecem ordeiramente aos sinais de trânsito, segundo relato do capitão Salgueiro Maia), as comemorações da data tendem paulatinamente a confundir-se com as do 5 de Outubro, se não no calendário pelo menos na pompa e numa ou outra circunstância. Com uma diferença: do 25 de Abril há um pouco mais de sobreviventes.
As do ano passado chegaram assombradas pela entrega da medalha de ouro a António Oliveira Salazar no concurso televisivo Os Grandes Portugueses. As interpretações sociológicas, políticas e ideológicas do facto foram muitas e variadas. Uns defenderam, simplesmente, que o natural de Santa Comba Dão não devia estar na lista; outros desvalorizaram o resultado, considerando-o inexpressivo (contas feitas, se o vencedor chegou aos 41% e o número total de votos contabilizados não ultrapassou os 159.245, então, estiveram com ele apenas 0,6% da população portuguesa).
Houve quem falasse em manifestação de protesto, sem vínculo salazarista, pelo rumo actual do país; quem ficasse mais chateado pelo segundo lugar de Cunhal do que pelo primeiro de Oliveira; e alguma extrema-direita, mesmo cantando vitória, anunciou considerar o programa uma ofensa à História de Portugal (curiosamente, alguma esquerda disse o mesmo).
Por fim, houve quem viesse lembrar que o homem tinha vencido um concurso, não tinha ganho eleições.
O que seria, aliás, uma impossibilidade. Morreu há 37 anos, a 27 de Julho de 1970, e mandou oficialmente no país entre 1932 e 1968. Nesse ano passou o testemunho ao discípulo Marcelo Caetano, e apenas porque a tal cadeira resolveu pregar-lhe a partida de se encontrar fora do sítio. À queda, grave, sobreveio, operado e refeito do susto, uma hemorragia cerebral.
Incapacitado, vive até ao fim na residência oficial numa grotesca encenação do poder que já não tem (segundo Fernando Dacosta, por sugestão da governanta Maria). Ministros e acólitos prestaram-se ao enredo, visitando-o e dirigindo-se-lhe como se do Presidente do Conselho se tratasse ainda. E enquanto em Portugal decorria esta farsa caseira, lá fora Luther King era assassinado em Memphis, rebentava a guerra do Vietname, Paris enfrentava a intempérie de Maio e em Praga acabava a Primavera, Bobby Kennedy era baleado em Los Angeles, Nixon chegava a Presidente dos EUA, Neil Armstrong pisava a lua, Beckett ganhava o Nobel, os Beatles zangavam-se de vez, etc., etc., etc. O mundo mantinha o seu curso imparável; por cá chegava ao fim o reinado da referida Maria.
Não se pense, porém, que tudo era mau. Até final dos anos 60, Portugal manteve-se, em muitos aspectos, na pole position dos países europeus ocidentais (ver António Barreto, «Mudança Social em Portugal: 1960-2000», in Portugal Contemporâneo, coordenação de António Costa Pinto, Dom Quixote, 2004).
Assim: era o único império colonial sobrevivente; podia orgulhar-se de exibir o ditador com mais anos no poder; apresentava as mais altas taxas de analfabetismo e mortalidade infantil; o menor número de médicos e enfermeiros por habitante; o mais baixo rendimento por habitante; a menor produtividade no trabalho; o menor número de estudantes no ensino básico e superior; o menor número de pessoas abrangidas pelos sistemas de segurança social, a menor industrialização e a maior população agrícola.
No fundo, no fundo, números à parte, tratava-se de um paraíso verde. Além das paisagens bucólicas e das viúvas de portentos buços, havia Fátima, havia fado e havia futebol. E no que toca a futebol, Eusébio era o mais que tudo. Tão mais que tudo, que Salazar lhe vetou a carreira internacional, informando-o, tão simplesmente, de que ele era «património do Estado».
Só os portugueses em crise de meia-idade, ou já refeitos dela, se podem lembrar de como era antes. E a verdade é que tinha pouca graça. Antes. Claro que nos podemos rir hoje da licença de isqueiro, obrigatória desde os anos 30 e só abolida em Maio de 1970 pelo decreto-lei 237/70. Claro que mesmo os incondicionais de Chomsky ou Michael Moore já não terão de ir ao Ultramar para beber um gole pecaminoso de Coca-Cola, só comercializada entre nós a partir de 1977. Em Portugal Continental, como se dizia, fora proibida nos anos 30, dela só sobrando a prova dos dotes publicitários de Pessoa que lhe inventara um slogan: Primeiro estranha-se, depois entranha-se.
Podemo-nos rir, ainda, do Decreto-Lei nº 31247 de Maio de 1941, que regulava o uso do fato de banho, zelando pela moralidade pública (...) no sentido de evitar a corrupção dos costumes, e que obrigava, para elas, a fato inteiro sem descobrir os seios, com costas decotadas sem prejuízo do corte das cavas ser cingido na axilas e, para eles, a calção com corte inteiro, justo à perna e reforço da parte da frente, e justo à cintura cobrindo o ventre, regras a que os cabos de mar tiveram de começar a fechar os olhos quando, na década de 60, turistas bem menos atafulhados de roupa desataram a invadir o Estoril e o Algarve.
Continuamo-nos a rir desta obsessão moralista e bafienta (que fez do iconoclasta José Vilhena o autor mais censurado do antes 25 de Abril), com as calças proibidas às raparigas nos liceus e as gravatas obrigatórias para os rapazes, mais as portarias camarárias em prole do decoro vigente. O escritor Luís Sttau Monteiro, cujo pai foi embaixador em Londres até 1943, ano em que bateu com a porta a Oliveira Salazar, contava que, criança, numa audiência a que assistira, o ditador reparara nas suas botas e lhe perguntara onde as comprara. Quando lhe respondeu que fora em Londres, este comentara: Modernices! Modernices!
O sorriso começa talvez a amarelecer quando nos lembramos das cargas da polícia de choque, como as do Verão de 1969, nos Salesianos do Estoril (num festival que misturava bandas rock e os chamados cantores de intervenção), apesar da forma pícara como José Cid recorda os acontecimentos: uma das cenas mais impressionantes foi a polícia batendo num grupo de turistas japoneses. Quando os policiais começaram a agredir os jovens, que estavam ali pacificamente, numa de música, os japoneses puxaram das máquinas fotográficas e começaram a tirar fotografias; assim que a polícia viu aquilo... máquinas para cá. O sorriso desmaia à medida em que recordamos o milhão e meio de imigrantes obrigados a dar o salto, entre 1960 e 1973, sangria de pobres que o escritor José Cardoso Pires resumiria de forma lapidar: Da minha terra natal tenho uma definição simplista: deserto de Pedras, Padres e Pedintes. Aldeia emigrada, portanto.
O sorriso já se foi por completo quando chegamos aos cerca de 10 mil soldados mortos na guerra colonial e, ajudados pelo livro de Ferreira Fernandes Lembro-me que… (Oficina do Livro, 2004), nos lembramos, também nós, dos poucos ou nenhuns direitos das mulheres cujas vidas valiam penas de dois anos, como a aplicada a Adélio da Custódia pelo assassínio da mulher Maria Pais Pimenta, explicada assim pelo juiz corregedor do Círculo Judicial de Viseu: Porque se justifica perfeitamente a reacção do réu contra a mulher adúltera que abandonou o lar, o marido e dois filhos de tenra idade, para seguir um saltimbanco.

E sem motivo aparente vem-nos à cabeça o drama privilegiado do poeta Alexandre O’Neill, que em Nora Mitrani encontrara l’amour fou. Uma francesa de passagem por Lisboa espera agora por ele em Paris, mas a PIDE nega-lhe o passaporte e O’Neill nunca tornará a rever Nora que se suicida em 1961.
Chegamos, assim, à parte de que já ninguém fala: a censura e a polícia política do regime, com os pides a receberem actualmente boas reformas, supõe-se que pelos serviços prestados à nação.
Em entrevista a António Ferro, Dezembro de 1932, a propósito dos boatos que punham em causa o bom-nome da polícia, Salazar explicara-se bem: (…) quero informá-lo de que se chegou à conclusão de que as pessoas maltratadas eram sempre, ou quase sempre, temíveis bombistas, que se recusavam a confessar, apesar de todas as habilidades da polícia, onde tinham escondido as suas armas criminosas e mortais.
Linhas à frente, surge a prova mil vezes repetida da brandura dos meios e rectidão evidente dos fins: Eu pergunto a mim próprio (…) se a vida de algumas crianças e de algumas pessoas indefesas não vale bem, não justifica largamente, meia dúzia de safanões a tempo nessas criaturas sinistras. E nesta “meia dúzia de safanões” se fundaria o mito urbano que continua a rever e a absolver a tortura, desrespeitando os mortos com nome próprio.
Quanto à censura (uma prática que, em Portugal, verdade seja dita, recua aos tempos da Inquisição praticamente sem interrupções), prévia e de lápis azul em riste, no caso da imprensa, preferia a apreensão ulterior quando se tratava de livros.
Segundo a Comissão do Livro Negro sobre o Fascismo, o regime de Salazar/Caetano proibiu cerca de 3300 obras e até o velho Aquilino Ribeiro foi alvo de um processo-crime, pelo crime de ter escrito Quando os Lobos Uivam. O Secretariado Nacional de Informação (SNI) mostrava-se quase sempre de uma eficácia imbatível: em 1965, em apenas quatro dias, apreendia 70 mil títulos à Europa-América, em dois anos subtraía à Seara Nova milhares de contos de livros; quanto à editora Minotauro, era simplesmente encerrada.
Música, artes plásticas, filmes (de acordo com os dados recolhidos aqui só entre 1964 e 1967 foram apresentados à censura 1301 filmes, dos quais 145 foram proibidos e 693 autorizados com cortes) e TV a preto e branco (a cores só em 1980!), nada escapava à mutilação.
A justificação para o zelo recuava ao Decreto-Lei 22469 de Março de 1933: A censura terá somente por fim impedir a subversão da opinião pública na sua função de força social e deverá ser exercida por forma a defendê-la de todos os factores que a desorientem contra a verdade, a justiça, a moral, a boa administração e o bem comum e a evitar que sejam atacados os princípios fundamentais da organização da sociedade.
Apesar da bondade expressa dos censores, alguns jornalistas insistiam em alvoroçar os dias. Uma vez, no República, Vítor Direito discorria a propósito da densidade das nuvens: Manhã de nevoeiro transforma a cidade (…) Não se vê um palmo à frente do nariz (…) Andam por aí certos senhores, feitos meteorologistas de trazer por casa, a prever “boas abertas”. Mas o nevoeiro persiste.
Afinal, eram tempos divertidos. Acabaram com o 25 de Abril.

21/04/08

É uma injustiça maior ler Philip Roth e não ler John Updike

«– Fode-me – diz friamente, lançando a combinação para a cozinha e, quando está debaixo dele, esforçando-se, continua: – Harry, quero que me fodas para tirar toda a merda de dentro de mim, toda a merda e a tristeza deste mundo de merda, magoa-me, limpa-me, quero que sejas as minhas entranhas, meu querido, até à garganta, sim, oh sim, maior, mais, que me arranques tudo, meu doce, meu doce cretino – os olhos dela dilatam-se de surpresa. O verde é apenas um rebordo em volta das pupilas cujo negro puro está enlameado pela sombra dele.
– Gozaste pouco.
É verdade: toda a conversa dela, o seu desejo violento, assustaram-no convertendo-o em nada. Ela está demasiado húmida: alguma coisa a alagou. E a solidez de cera do seu corpo jovem, as esferas demasido perfeitas do seu traseiro, parecem-lhe desconhecidas: ele agarra-a através de uma distância ensombrada pelos ossos quentes e secos da mãe e pelas curvas morenas de Janice, a meia-lua das costelas de Janice por cima da reentrância da cintura. Os sentidos dele notam ventos que perpassam os terminais nervosos de Jill, fazendo-a mover-se por meio de qualquer coisa para além dele, da qual ele é apenas uma sombra, uma sombra branca, o seu peito um escudo radiante que a esmaga. Ela liberta-se e ajoelha-se para levar a língua ao ventre dele. Jogam um com o outro num nevoeiro. Os móveis difundem-se em redor. Estão na carpete áspera, o ecrã do televisor é um planeta-mãe por cima deles. Ele sente o cabelo dela na boca. O traseiro dela ergue-se como duas corcovas sob os olhos de Harry. Ela tenta vir-se na cara dele, mas a língua de Coelho não é assim tão forte. Jill esfrega-lhe o clitóris no queixo até o magoar. Morde-o algures. Ele sente-se esvaziado, estúpido, flácido. Por fim, pede-lhe que arraste os seios, as pequenas pontas duras, contra os seus genitais, que jazem aconchegados na união das suas pernas. É assim que se excita, tenta satisfazê-la e consegue, embora, quando ela estremece e se vem, cada um chore recônditos segredos lá longe, em direcções opostas, a filha da Lua e o homem da Terra. «Amo-te», diz ele, e o facto de não a amar faz com que seja verdade», pág. 202.
John Updike, Regressa Coelho, Civilização, 2008

15/04/08

Peter Singer: a propósito de certas coisas relacionadas com a ética

Não é líquido que os apoiantes do Sim do último referendo tivessem querido Peter Singer do seu lado. Ao contrário da tibieza de muitos dos defensores da despenalização, quando chamados a pronunciar-se sobre se abortar equivalia ou não a matar um ser humano, o filósofo australiano não hesita: «A comparação que fiz entre o aborto e o infanticídio foi motivada pela objecção segundo a qual a posição [favorável] que tomei sobre o aborto também justificava o infanticídio. Aceitei a acusação – sem considerar essa aceitação fatal para a minha posição – até ao ponto em que o mal intrínseco de matar o feto já desenvolvido e o mal intrínseco de matar um recém-nascido não são nitidamente diferentes», pág. 176 de Escritos Sobre uma Vida Ética.
Para se entender esta posição de Singer será preciso clarificar algumas das suas permissas morais. A primeira consiste em opor-se à «santidade da vida», conceito que, segundo ele, está em larga medida subjacente ao princípio «não matarás»:
«Não acredito na existência de Deus. Logo, rejeito a ideia de que cada ser humano é uma criatura de Deus», pág. 332. Singer nega também que a vida de um membro da nossa espécie tenha um valor especial: «[no] Génesis, encontramos a ideia (...) que Deus criou os humanos à sua imagem e lhes conferiu o domínio sobre todos os animais. Desde Darwin, pelo menos, temos conhecimento de que isso é factualmente falso (...)», idem.
Contestado o sexto mandamento e o carácter «especial» da espécie humana, o filósofo mais polémico da actualidade propõe como princípio ético uma regra simples, qual ovo de Colombo: prover ao mínimo sofrimento possível de todos os seres que sejam capazes de sentir dor. A regra aplica-se, assim, a outras espécies, e deriva directamente da circunstância do princípio moral da igualdade não assentar em questões de facto: assim como a igualdade entre os homens não depende da sua maior ou menor inteligência, força física, etc., também o princípio da igualdade entre nós e as outras espécies não depende, comparativamente, da nossa maior complexidade. Citando um dos seus mentores, Jeremy Bentham, Singer interroga, referindo-se aos animais: «A questão não é “Serão eles capazes de raciocionar?”, nem sequer “Serão eles capazes de falar?”, mas sim “Serão eles capazes de sofrer”?», pág.49.
Para regressarmos ao tema inicial deste texto – a legitimidade do infanticídio – que salto (os seus detractores chamar-lhe-iam salto mortal) terá de dar um paladino dos direitos dos animais, vegetariano assumido, para passar da sua simpatia não «especista» à consideração da possibilidade da morte de crianças?
O salto poderá ser mortal mas não é longo. Tendo postulado que «o facto de uma criatura ser humana, no sentido de pertencer à espécie Homo sapiens, não é relevante para determinar se é errado matá-la», Singer relembra que «são as características do ser individual que pode ser morto» que devem ser pesadas. Por exemplo, «os seus próprios desejos de continuar a viver ou o género de vida que poderá vir a ter». Daí infere que a criança, até uma idade variável, sendo um ser senciente mas não consciente (sente mas não é sujeito), não «possui um direito à vida tão forte como os seres capazes de se reconhecerem a si próprios como entidades distintas que persistem no tempo». A segunda ilação, apoiada num raciocínio similiar ao que estabelece para defender a eutanásia (igual a menos sofrimento), impõe que crianças nascidas com deficiências que lhes perspectivem uma vida miserável possam ser ajudadas a morrer. O caso complica-se quando se está perante crianças portadoras de doenças menos dástricas, mas cuja permanência em vida impedirá os pais de dar à luz uma outra, não deficiente. Após uma contabilidade algo mórbida conclui: «Quando a morte de uma criança deficiente conduz ao nascimento de uma outra com melhores perspectivas de levar uma vida feliz, a soma total de felicidade será maior caso a criança deficiente seja morta», pág.202.
A questão do infanticídio não esgota Escritos sobre uma Vida Ética, que contém ainda relatos autobiográficos de Singer e se estende à ecologia, política, bioética e solidariedade social. Boa introdução à obra deste pensador (os artigos são retirados de vários dos seus livros), a primeira nota que sobressai é a inteligência do próprio, actualmente o mais afamado representante do Utilitarismo, corrente que, grosso modo, pugna por uma ética normativa que faz depender os postulados morais das suas consequências. Mas se as posições que defende chegam revestidas de uma consistência férrea e me parece disparatado apelidá-lo, como alguns insistem, de «Professor Morte» ou nazi, não deixa de ser verdade que a sua lógica moral-dedutiva como que deixa de fora a vida mesma, com o que ela tem de anárquico, incongruente, pungente e compassivo. Talvez Peter Singer, como é próprio dos filósofos, sofra, afinal, da Doença do Pensamento. Ainda assim, absolutamente fascinante.
Escritos Sobre uma Vida Ética, Peter Singer, Dom Quixote, 2008

09/04/08

O Clube das Pessoas Normais

Há um ano, voltei a escrever contos, mas sem me dar conta de que, na realidade, continuava com os hábitos de romancista. Continuava a utilizar um tempo moroso, nada adequado ao relato. (...) Mas o maior conflito não tinha origem unicamente nesse lastro de maus hábitos adquiridos como romancista. A tensão mais forte era provocada pelo duro esforço de contar histórias de pessoas normais e ter, ao mesmo tempo, de reprimir a minha tendência para me divertir com textos metaliterários: o duro esforço, resumindo, de contar histórias da vida quotidiana com sangue e fígado, tal como me tinham exigido os que me odeiam, que me haviam censurado excessos metaliterários e «ausência absoluta de sangue, de vida, de realidade, de apego à existência normal das pessoas normais».
Sem saber que os que me odeiam me censurariam também o contrário, quer dizer, que me recriminariam por qualquer coisa que fizesse, entreguei-me com a melhor das vontades aos contos com pessoas normais, de carne e osso, sangue e fígado. Não é que fosse algo antinatural para mim, mas logo a partir do primeiro momento senti-me muito pouco à vontade com as vísceras, o suor, o odor, as frases vulgares e as lágrimas dos meus personagens. Não conseguia esquecer-me até que ponto me identificava com Paul Valéry, quando este assegurava que a sua mente não estava feita para os romances tradicionais, uma vez que as suas grandes cenas, as cóleras, as paixões,
os momentos trágicos, longe de o exaltarem, chegavam-lhe como reflexos miseráveis, estados rudimentares onde toda a estupidez anda à solta, onde o ser se simplifica até ao disparate».
(...)
Suei em bica com as secreções e exsudações dos meus personagens, fiz um esforço incrível para mostrar «apego à existência normal das pessoas normais». E ultimamente já me sinto bem adaptado à minha nova asquerosa vida. No fundo, contistas como Raymond Carver sempre me impressionaram, com todas as suas histórias de empregadas de hotel e camionistas e outros seres anódinos, perdidos no cinzento de um dia-a-dia sufocante. Reconheço que é um dos génios do conto. Também gosto desses autores que, por exemplo, descrevem um campo de batatas com uma precisão magistral. Eu, porém, sempre tive muita dificuldade em fazê-lo. Se tinha de descrever um campo de batatas, fazia-o, mas tratava-se de batatas a germinar numa cave, por exemplo, e acabava por ter de corrigir-me a mim mesmo, batendo sadicamente na mão com que escrevia esses surrealismos.
Dediquei-me a falar de seres correntes e vulgares, quer dizer, de indivíduos encolerizados, apoplécticos e analfabetos, mas correu-me mal, muito mal. E tudo para que dissessem que tinha mudado um pouco de estilo. É absurdo, porque, no fundo, eu deveria saber que para mudar de estilo basta mudar de tema. Correu-me mal, porque transpirei muito com os meus personagens. Os do primeiro conto, por exemplo, não conseguia esquecê-los. Passavam o dia metidos na minha cozinha, a discutir enquanto lavavam pratos. Discutiam por tudo e por nada. Era um desses casais que estão sempre a atirar pratos, literalmente, à cabeça um do outro. Chateavam-me, mas no entanto tornei-me preciosista com eles, nem um erro no momento de abordar a sua imensa vulgaridade com precisão. O grande problema surgiu quando descobri que nunca saíam de casa. Levantava-me à meia-noite, por exemplo, para ir buscar qualquer coisa ao frigorífico, e lá estavam os dois, encostados à parede do corredor, junto da cozinha: insones e sujos. Um dia, ouvi-os comentar que se tinham inscrito no Clube das Pessoas Normais. Que ternura, que personagens mais deliciosos. Embora os ache com demasiada carne, nariz e osso. Além disso, quantos contos já se terão escrito sobre os mesmos disparates? (...)
«Suar em Bica», in Exploradores do abismo, Enrique Vila-Matas, Teorema, 2008

08/04/08

04/04/08

Uma verdade inconveniente

«O presidente Uribe não tem uma real vontade de solucionar o problema. Ele faz algumas coisas para que a opinião pública acredite que ele quer uma solução. Mas se ele quisesse mesmo solucionar, já poderia ter feito há muito tempo. Cada vez que a liberdade de minha mulher está próxima, acontece algo», Juan Carlos Lecompte, marido de Ingrid Betancourt.
O resto da entrevista aqui.

03/04/08

Perdoem-me o chauvinismo mas eu nasci numa terra pícara. Foi há 200 anos elevada a vila e é berço de personagens memoráveis. Começo por Captain Zorra


Marilyn nunca veio a Olhão. A actriz que Billy Wilder foi dos poucos a levar a sério ― garantindo, a contracorrente, que ela não precisava de lições de representação, apenas de se inscrever no colégio suíço Ómega, «onde dão cursos de pontualidade superior» ― ainda não era nascida quando Manuel Zorra ― Captain ou Manny Zora nos States ― troca as águas do Algarve pelas margens do rio Hudson. Era a segunda fuga. A primeira, a bordo de um barco de pesca que se dirigia a Gibraltar, acabou com o rapaz a ser mandado para casa, uma dúzia de anos apenas. Pouco depois, aos quinze, arrisca salto maior, sem rede nem título de transporte válido, a fasquia na América. Ah, a América! No porto de Nova Iorque, lotado de europeus deserdados para quem o americano dream é agora a derradeira esperança, espera-o um familiar que não ficará para a história. Nesse dia, vê neve pela primeira vez. The Sea Fox; The Adventures of Cape Cod’s most colorfull rumrunner conta (também) o que aconteceu depois.
O livro A Raposa dos Mares inclui relato dos anos americanos: a chegada, os biscates, a pesca, a Depressão e a Máfia, os festins e as raparigas, as misérias e as glórias. Nunca traduzido, narra como o olhanense, fintando fome e Lei Seca, empresta engenho e astúcia aos homens de Al Capone, sobrevive ao FBI e aos que lhe pagam em cash o contrabando do álcool, chega à fala com os maiores ― Dos Passos e Eugene O’Neill estão na lista dos amigos ― , ele próprio herói de série B e da vida, príncipe das marés e traficante encartado com direito a letras gordas nos jornais controlados por Hearst.
Na década de 60 abandona Provincetown e volta à terra de origem. Instala-se no Avenida, entretanto desaparecido. À mesa do velho café, dá aulas de inglês (oral) com pronúncia americana e acode aos poucos turistas que se aventuram na vila. Homem grande, mãos de gigante e nariz à Jimmy Durante, espanta os locais com as suas histórias de gangsters e garotas libertinas, a que soma a distinção do porte e a elegância das fazendas italianas. Com o tempo, o fascínio esmorece. Reformado sem casa própria, colosso para quem se olha agora como atracção circense, Zorra definha em silêncio. Alguns jornalistas chegam a entrevistá-lo.
Vera Lagoa transcreveu encontro memorável, grand finale no cemitério, ela, ele e o coveiro, dado a tertúlias. A Baptista Bastos confessará, melancólico, em conversa regada a uísque, na Armona, era a ilha um paraíso: «O que eu aprendi nos anos americanos. Santo Deus, o que aprendi! Queria ser grande, queria ser famoso, queria ser conhecido na América. E, para isso, precisava de ser um homem com dólares (...) é muito importante ter dinheiro, o dinheiro dá poder, é necessário para um homem ser feliz. A fome só é boa até uma certa altura da vida: permite-nos ter cautela, ensina-nos a ser hábeis; é a melhor companheira da maturidade daqueles que se tornam ricos». Quando morreu, Manuel Zorra teria 76 anos. Sepultado em Olhão, foi-se sem deixar lastro de monin, como por ali se dizia.
A obra que o imortalizou, assinada por Scott Corbett, data de 1956. Ex-soldado correspondente em Paris, Scott era um respeitável escritor que, anos antes de se cruzar com a raposa dos mares, vira a conta bancária engrossar com a adaptação para cinema de The Reluctant Landlord, o seu romance de estreia, no ecrã Ninho de Amor, filme onde Marilyn, aliás Norma Jean Mortenson, na circunstância Roberta Stevens, faz brevíssima aparição que lhe apimenta o currículo; em 1952, já trabalha com Howard Hanks ― nunca virá a Olhão.
Por esses tempos, a cidade, então com estatuto de vila, continua a esbanjar fortunas obtidas durante a guerra. Tinha sido um regabofe. Enquanto Hitler empestava a Europa com o fedor da suástica, por lá ia-se aviando, esgotos a céu aberto, fosse aos países do Eixo fosse aos (poucos) Aliados. Contas feitas, tanto a Alemanha perderia a guerra como Olhão as suas fábricas. Das 37 existentes sobram hoje apenas três.
(...)
Legenda das imagens
Captain Manuel Zora, 1955, Philip Malicoat (1908-1981) oil on canvas, 16" x 14"
Recensão de 1961 assinada por Almeida Langhans ao livro de Scott Corbett

Isto foi gravado 4 anos antes do Maio de 68. Não sei se tem alguma relação, mas Cassel dança tão bem (mesmo sem quase sair do sítio)!