[Saudades de um punhal]Um rapaz e uma rapariga, gente jovem a valer dos nossos tempos. Oskar e Emma de seu nome, amavam-se. Era profundo o seu amor, e ninguém duvidava menos e acreditava com mais fervor neste facto do que eles próprios. Até aqui tudo seria perfeito, só que havia qualquer coisa que lhes faltava, e vamos já dizer o que era esta qualquer coisa estranha e fabulosa que lhes faltava. Ninguém, para onde quer que olhassem, os impedia. Tinham licença, por assim dizer, para se amarem, beijarem, beijocarem e explorarem, sempre que para tal tivessem vontade. Mas era precisamente esse o problema: na ausência de entraves, cada vez menos tinham vontade de se dedicar a esta edificante ocupação. Se alguém viesse intrometer-se e os proibisse de trabalhar, a vontade deles seria tanto mais forte. Os dois bons e excelentes jovens adoeciam por virtude de uma abundância de liberdade, e os seus suspiros tinham por motivo uma falta de obstáculos. Pois a ambição deles, é preciso que se saiba, era a novela italiana, e como é do conhecimento comum as novelas italianas contam a história de amantes que se amam tão fogosamente, tão intimamente e com tão grande paixão apenas porque não devem. Oskar e Emma, entre outras coisas, não tinham sequer pais cruéis e casmurros. Faltava-lhes também o vilão que à noite espreita vilmente por detrás de um arbusto. Sim, é verdade, não tinham sequer um vilão, o inimigo do amor, sempre terrivelmente desconfiado. Mas tinham consciência de todas estas falhas e afligiam-se muito com elas. Ó triste era moderna, quadrangular e abstémia, ó indigna época das companhias aéreas e das viagens à volta do mundo, agora bem vês como às tuas mãos sofrem todos os amantes ávidos de aventuras. O amor de Oskar e Emma morria aos poucos, e porquê? Exacto, por não haver perigo. Ninguém os ameaçava, ninguém lhes fazia frente, e assim começavam a adormecer no cumprimento da sua actividade. Sempre que a actividade é concedida às cegas e sem mais, depressa começa a aborrecer e a retrair os movimentos. É esta a terrível anedota dos tempos em que estamos condenados a viver: tudo é permitido. Mas quando tudo é tão vilmente permitido, quando os amantes podem abraçar-se à vontade, sem que um deles tenha de olhar à sua volta, cheio de receio e sofrimento, para ver se algum perigo se abate sobre eles, tal implica a impossibilidade da novela italiana. Oskar e Emma queriam fazer uma novela, mas ela não singrava, começava a soçobrar. O estilo torna-se flácido. Querer criar uma novela genuína na ausência de qualquer perigo: eis um princípio pouco auspicioso. Os perigos são afinal as veias e os impedimentos são a vida de uma novela. E já não há impedimentos neste mundo sem carácter nem orgulho, incapaz mesmo de alimentar um nobre preconceito. As crianças podem vir ao mundo quando bem entenderem, antes ou depois do laço sagrado. Oskar e Emma bem o sabiam, e uma enorme angústia fincava garras nos seus jovens corações. Os pais deles eram gente sem preconceitos, oh miséria. Mas, na ausência de preconceitos, a novela é impossível. As novelas só podem singrar no terreno selvagem e precioso dos preconceitos arreigados. Onde haja alguém que seja indiferente, e onde não haja ninguém que não seja indiferente, também não pode haver histórias de amor. Nas antigas novelas italianas, ninguém é indiferente, e é por isso, é por isso que Oskar e Emma teriam preferido morrer. Mas morrer não é assim tão fácil na ausência de um punhal que peça para ser desembainhado. Oskar e Emma quase que morrem de saudades de um punhal.
Robert Walser, Histórias de Amor, Relógio D'Água, 2008