30/04/12
29/04/12
Não é 1 de Maio, o 25 de Abril já foi, mas o que eu quero agora é falar do 27 de Julho... de 1970
É dos livros que Salazar caiu de uma cadeira e depois disso nada foi como dantes. Como seria de esperar numa terra de escravos, cu pró ar ouvindo/ ranger no nevoeiro a nau do Encoberto, a queda, embora aparatosa, foi amortecida. Tão amortecida que uma farsa se organizaria em torno do Presidente do Conselho, convencendo-se este por dois anos que continuava a mandar. Mas “Tudo É Vaidade” e a Ceifeira levá-lo-ia a 27 de Julho de 1970, dia em que muitos portugueses optaram por aprimorar-se com uma gravata vermelha, ainda as gravatas não tinham sido proibidas por Assunção Cristas.
O caso é que antes da morte do ditador se tornar oficial, na editora onde a minha mãe trabalhava se soube por portas e travessas clandestinas que Salazar já não estava entre nós. Primeiro foi a descrença, natural ao fim de 36 anos, depois foi a festa. Resumindo: a contribuição dos presentes para o Produto Interno Bruto baixou nesse dia para níveis negativos.
A minha mãe resolveu, então, avisar o marido da boa nova, certa que essa seria a retaliação possível pelos anos que este passara a olhar o mar revoltado e teatral no Forte de Peniche. Telefonou e disse: “Prepara champanhe, temos de comemorar”. Uma colega acrescentaria entre risos: “Acabaram as filmagens do Solar das Oliveiras”.
A graça acabou mal e acabaram as duas na António Maria Cardoso, no edifício da PIDE onde, em memória das vítimas, foi entretanto erguido um condomínio de luxo. A polícia chegara depressa, e elas, identificadas já pela voz, receberam ordem de prisão. Quanto a meu pai, passaria a noite à espera da mulher na rua de má memória, sem champanhe, e não sei se de gravata vermelha.
E é também por isto que gosto muito do 25 de Abril.
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O caso é que antes da morte do ditador se tornar oficial, na editora onde a minha mãe trabalhava se soube por portas e travessas clandestinas que Salazar já não estava entre nós. Primeiro foi a descrença, natural ao fim de 36 anos, depois foi a festa. Resumindo: a contribuição dos presentes para o Produto Interno Bruto baixou nesse dia para níveis negativos.
A minha mãe resolveu, então, avisar o marido da boa nova, certa que essa seria a retaliação possível pelos anos que este passara a olhar o mar revoltado e teatral no Forte de Peniche. Telefonou e disse: “Prepara champanhe, temos de comemorar”. Uma colega acrescentaria entre risos: “Acabaram as filmagens do Solar das Oliveiras”.
A graça acabou mal e acabaram as duas na António Maria Cardoso, no edifício da PIDE onde, em memória das vítimas, foi entretanto erguido um condomínio de luxo. A polícia chegara depressa, e elas, identificadas já pela voz, receberam ordem de prisão. Quanto a meu pai, passaria a noite à espera da mulher na rua de má memória, sem champanhe, e não sei se de gravata vermelha.
E é também por isto que gosto muito do 25 de Abril.
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27/04/12
De como uma aldrabice do eduardo pitta me levou a este maravilhoso poema ou deus escreverá direito por linhas tortas [obrigada, nuno, sejas tu quem fores]
ESTE POST TEM QUE VER COM ESTE (cf. caixa de comentários)
"Escrevo ainda sobre o livro de contos Nos Sonhos Começam as Responsabilidades, de Delmore Schwartz (1913-1966), a obra que o consagrou. Admirado por Nabokov e T. S. Eliot, Schwartz é um dos poetas mais importantes dos anos 1930-40 americanos. Convidado habitual da Casa Branca, morreu aos 52 anos na miséria extrema. (...)."
[do senhor citado mais abaixo]
"In addition to being known as a gifted writer, Schwartz was considered a great conversationalist and spent much time entertaining friends at the White Horse Tavern in New York City."
[daqui]
E AGORA VAMOS AO QUE INTERESSA
DAQUI
"Escrevo ainda sobre o livro de contos Nos Sonhos Começam as Responsabilidades, de Delmore Schwartz (1913-1966), a obra que o consagrou. Admirado por Nabokov e T. S. Eliot, Schwartz é um dos poetas mais importantes dos anos 1930-40 americanos. Convidado habitual da Casa Branca, morreu aos 52 anos na miséria extrema. (...)."
[do senhor citado mais abaixo]
"In addition to being known as a gifted writer, Schwartz was considered a great conversationalist and spent much time entertaining friends at the White Horse Tavern in New York City."
[daqui]
E AGORA VAMOS AO QUE INTERESSA
Nothing is given which is not taken. Little or nothing is taken which is not freely desired, freely, truly and fully. "You would not seek me if you had not found me": this is true of all that is supremely desired and admired... "An enigma is an animal," said the hurried, harried schoolboy: And a horse divided against itself cannot stand; And a moron is a man who believes in having too many wives: what harm is there in that? O the endless fecundity of poetry is equaled By its endless inexhaustible freshness, as in the discovery of America and of poetry. Hence it is clear that the truth is not strait and narrow but infinite: All roads lead to Rome and to poetry and to poem, sweet poem and from, away and towards are the same typography. Hence the poet must be, in a way, stupid and naive and a little child; Unless ye be as a little child ye cannot enter the kingdom of poetry. Hence the poet must be able to become a tiger like Blake; a carousel like Rilke. Hence he must be all things to be free, for all impersonations a doormat and a monument to all situations possible or actual The cuckold, the cuckoo, the conqueror, and the coxcomb. It is to him in the zoo that the zoo cries out and the hyena: "Hello, take off your hat, king of the beasts, and be seated, Mr. Bones." And hence the poet must seek to be essentially anonymous. He must die a little death each morning. He must swallow his toad and study his vomit as Baudelaire studied la charogne of Jeanne Duval. The poet must be or become both Keats and Renoir and Keats as Renoir. Mozart as Figaro and Edgar Allan Poe as Ophelia, stoned out of her mind drowning in the river called forever river and ever... Keats as Mimi, Camille, and an aging gourmet. He must also refuse the favors of the unattainable lady (As Baudelaire refused Madame Sabatier when the fair blonde summoned him, For Jeanne Duval was enough and more than enough, although she cuckolded him With errand boys, servants, waiters; reality was Jeanne Duval. Had he permitted Madame Sabatier to teach the poet a greater whiteness, His devotion and conception of the divinity of Beauty would have suffered an absolute diminution.) The poet must be both Casanova and St. Anthony, He must be Adonis, Nero, Hippolytus, Heathcliff, and Phaedre, Genghis Kahn, Genghis Cohen, and Gordon Martini Dandy Ghandi and St. Francis, Professor Tenure, and Dizzy the dean and Disraeli of Death. He would have worn the horns of existence upon his head, He would have perceived them regarding the looking-glass, He would have needed them the way a moose needs a hatrack; Above his heavy head and in his loaded eyes, black and scorched, He would have seen the meaning of the hat-rack, above the glass Looking in the dark foyer. For the poet must become nothing but poetry, He must be nothing but a poem when he is writing Until he is absent-minded as the dead are Forgetful as the nymphs of Lethe and a lobotomy... ("the fat weed that rots on Lethe wharf").
DAQUI
26/04/12
É Portugal, ninguém leva a mal, mas depois não venham com a treta que eu embirro com o Eduardo Pitta e etc.
Um crítico literário é uma pessoa como as outras. Se
acreditarmos em Empédocles – e não vejo razões para não acreditarmos –, nele se
misturam os quatro elementos constitutivos do mundo – a saber: água, ar, fogo e
terra – tal como acontece a tudo quanto existe no Universo.
Por não ser um ser à parte, encontrando-se, como a
totalidade das coisas existentes, sujeito à Lei do Amor e do Ódio, da União e
da Separação, o crítico literário não tem como fugir à Teoria dos Humores hipocrática. Teremos,
assim, o crítico de temperamento sanguíneo, de temperamento melancólico,
colérico (bilioso) e, finalmente, fleumático.
Num plano ideal, o crítico literário saberá
encontrar o equilíbrio entre estes 4 humores primordiais. Num plano mais ideal
ainda, será capaz de se lançar na cratera do Etna em defesa de um livro.
“O espírito, na verdade, está ansioso, mas a carne é
fraca.” (Mat. 26:41). Assim,
raros são os críticos que alguma vez se lançaram no Etna. Ao invés,
arrebatados pela ignara rebeldia própria das criaturas humanas, muitos são os
que confessam ter cedido à tentação dos versos do poeta: “Ai que
prazer / Não cumprir um dever, / Ter um livro para ler / E não o fazer!”
Pelo seu valor literário, as fraquezas humanas enternecem-me. E
isto vale também para os críticos. Existem, contudo, limites. Um desses
limites, que tenho para mim como axioma, é que um crítico deve, no mínimo, ser
capaz de falar de um livro que não leu.
Sei que a vida está difícil. Não vou armar-me em franciscana
e dizer que dinheiro não tem importância. Nem vou armar-me em wittgensteiniana
e dizer que um ensaio vale um “tuíte”. Concordo que queimar pestanas a ler um volume
denso de mais de 500 páginas devia ser mais valorizado. O facto, porém, é que o
Saul Bellow não tem culpa de a crítica literária ter descido em Portugal ao
nível dos call center.
E nem era preciso ter lido o livro (O Legado de
Humboldt, Saul Bellow, Quetzal) – bastaria talvez ler a contracapa – para saber
que Humboldt nunca esteve “atolado em álcool e dívidas”, nem sofreu nenhum “penoso
processo de divórcio” ou teve “uma amante cara”. Também me parece arriscado
afirmar que “a história de Humboldt tem todos os ingredientes de um thriller
com trânsito por Chicago, Madrid e Paris”, tanto mais que, em 527 páginas, só se
sai, provisoriamente, do “Novo Mundo” na página 440, a 87 páginas do final. Finalmente, bastaria
googlar com mais cuidado, para saber que, n' O Legado de Humboldt, o poeta Delmore Schwartz
não se chama Charlie Citrine, mas precisamente Von Humboldt Fleisher.
O mistério maior para mim, porém, consiste no seguinte: como é que alguém, tendo entre mãos este portento, lhe resiste e o acha ainda assim notável?
Hoje na Sábado escrevo sobre O Legado de
Humboldt, de Saul Bellow
(1915-2005), livro que em 1976 lhe valeu o Pulitzer (ficção) e o Nobel da
Literatura. O romance ficciona a vida do poeta Delmore Schwartz (1913-1966), de
quem a editora Guerra & Paz acaba de publicar a famosa colectânea de contos Nos Sonhos
Começam as Responsabilidades.
Mas pode alhear-se do item Schwartz — que no livro se chama Charlie
Citrine —, porque O Legado de
Humboldt é na realidade um thriller muito bem esgalhado com todos os ingredientes do género (...).
"O leitor pode alhear-se dos envios, que vão de Shakespeare a Edith Sitwell, sem esquecer Diderot, Joyce e outros. Atolado em álcool e dívidas (um penoso processo de divórcio, uma amante cara), a história de Humboldt tem todos os ingredientes de um thriller com trânsito por Chicago, Madrid e Paris. Longe de ser um livro de mexericos, a verrina faz dele um notável romance de ideias."
25/04/12
Miguel Portas (1958 - 2012)
Conheci o Miguel Portas, teria 12, 13 anos, ele 14 ou 15. Era a primeira reunião
clandestina em que eu participava, apesar de a mesma decorrer a céu aberto, nas
traseiras da estação de comboios de São João do Estoril, num pequeno jardim hoje
cimentado e do qual sobrará talvez uma árvore ou duas. Tratava-se de uma
reunião do MAEESL (Movimento Associativo dos Estudantes do Ensino Secundário).
Tinha vindo gente de outras escolas (os putos dirigentes), e Miguel Portas era
um deles.
O debate foi acirrado, e o assunto, quase de Estado: abaixo-assinado ou greve. O Miguel, já então na UEC, defendia, naturalmente, a posição menos radical. Eu, que nasci com mau feitio, fiquei convencida com a greve. Devo ter dito, entretanto, qualquer coisa que lhe despertou a expectativa de um recrutamento em potência, razão que encontro para, no final da reunião, me ter perguntado se podia falar comigo à parte. Lembro-me de lhe ter respondido, do alto das minhas firmes e precoces convicções: “Podes, mas não julgues que me convences”.
Não me convenceu. Nunca estive próxima dos UECs; na realidade, não os gramava nem com molho de tomate. Dele gostava. Sempre achei que possuía algo que, mesmo situando-me eu à extrema-esquerda, nunca pensei que fosse dispensável: era civilizado e democrata. Não imagino como seria visto de mais perto, mas costumo ter olho e quase nunca me enganar nas primeiras impressões. No meio da muita histeria que tomávamos então por princípios inalienáveis, o Miguel discursava e não agredia, discordava e não insultava. Mais tarde, já crescidinhos, cruzei-me com ele algumas vezes. Sempre o achei igual. Bonito, cordato, bon vivant, voz arranhada e sorriso nervoso. Sei que morreu. A morte é uma grandessíssima filha da puta.
O debate foi acirrado, e o assunto, quase de Estado: abaixo-assinado ou greve. O Miguel, já então na UEC, defendia, naturalmente, a posição menos radical. Eu, que nasci com mau feitio, fiquei convencida com a greve. Devo ter dito, entretanto, qualquer coisa que lhe despertou a expectativa de um recrutamento em potência, razão que encontro para, no final da reunião, me ter perguntado se podia falar comigo à parte. Lembro-me de lhe ter respondido, do alto das minhas firmes e precoces convicções: “Podes, mas não julgues que me convences”.
Não me convenceu. Nunca estive próxima dos UECs; na realidade, não os gramava nem com molho de tomate. Dele gostava. Sempre achei que possuía algo que, mesmo situando-me eu à extrema-esquerda, nunca pensei que fosse dispensável: era civilizado e democrata. Não imagino como seria visto de mais perto, mas costumo ter olho e quase nunca me enganar nas primeiras impressões. No meio da muita histeria que tomávamos então por princípios inalienáveis, o Miguel discursava e não agredia, discordava e não insultava. Mais tarde, já crescidinhos, cruzei-me com ele algumas vezes. Sempre o achei igual. Bonito, cordato, bon vivant, voz arranhada e sorriso nervoso. Sei que morreu. A morte é uma grandessíssima filha da puta.
24/04/12
Minhas senhoras e meus senhores, isto não é a União Nacional nem (ainda) o 5 de Outubro. Resumindo: estou com o Mário Soares e ninguém tem nada com isso
José Manuel Fernandes diz-se incomodado. Indignado. Talvez mesmo ultrajado. José Manuel Fernandes incomodado, indignado e talvez mesmo ultrajado dá-me vontade de rir. A pomposidade de JMF soa ridícula. O "sentido de Estado" não lhe assenta (com dois esses): "Sucede que as comemorações do 25 de Abril na Assembleia da República, lugar onde todos os partidos têm acento e têm voz..."
E transcrevo o "acento" porque erros de português são inadmissíveis quando se sai a espadeirar tão bravamente em defesa da Pátria.
Ricardo Costa diz que Mário Soares se vai arrepender. A convicção de Ricardo Costa soa a anátema (e, acrescente-se, soa também um pouco ridícula dada a idade de Costa — há frases que só podem ser pronunciadas a partir dos 50 anos...), tanto mais cruel quanto Mário Soares, a não ser que siga o exemplo de Manoel de Oliveira, já não terá assim tanto tempo para ritos penitenciais.
Pedro Passos Coelho diz, com a profundidade costumeira, estar "habituado a que figuras políticas queiram assumir protagonismo em datas especiais". Não sei se ele se refere à teimosa ausência de Teófilo Braga nas comemorações do 5 de Outubro ou à presença do seu próprio pai na data do aniversário do filho, mas confesso que as declarações de Pedro Passos Coelho já há muito deixaram de me interessar.
O facto é que Mário Soares tem todo o direito (o dever?) a não ir abrilhantar uma palhaçada.
Post-scriptum: os tempos da "União Nacional" já lá vão e, apesar dos cravos de antanho e da treta actual do "somos todos irmãos", o 25 de Abril não foi um passeio jovial ao Largo do Carmo.
E transcrevo o "acento" porque erros de português são inadmissíveis quando se sai a espadeirar tão bravamente em defesa da Pátria.
Ricardo Costa diz que Mário Soares se vai arrepender. A convicção de Ricardo Costa soa a anátema (e, acrescente-se, soa também um pouco ridícula dada a idade de Costa — há frases que só podem ser pronunciadas a partir dos 50 anos...), tanto mais cruel quanto Mário Soares, a não ser que siga o exemplo de Manoel de Oliveira, já não terá assim tanto tempo para ritos penitenciais.
Pedro Passos Coelho diz, com a profundidade costumeira, estar "habituado a que figuras políticas queiram assumir protagonismo em datas especiais". Não sei se ele se refere à teimosa ausência de Teófilo Braga nas comemorações do 5 de Outubro ou à presença do seu próprio pai na data do aniversário do filho, mas confesso que as declarações de Pedro Passos Coelho já há muito deixaram de me interessar.
O facto é que Mário Soares tem todo o direito (o dever?) a não ir abrilhantar uma palhaçada.
Post-scriptum: os tempos da "União Nacional" já lá vão e, apesar dos cravos de antanho e da treta actual do "somos todos irmãos", o 25 de Abril não foi um passeio jovial ao Largo do Carmo.
23/04/12
Na mouche ou do espírito de síntese do Luís M. Jorge
Há cerca de dois anos os socialistas escolheram o deputado Ricardo Rodrigues (do gangue) para liderar um combate sem tréguas à corrupção. A estratégia deve ter dado frutos, porque este mês o PS já homenageou Paulo Campos nas jornadas parlamentares e propôs Conde Rodrigues para juiz do Tribunal Constitucional. Em marketing chama-se a isto um posicionamento: o PS procura diferenciar-se como o partido dos bandidos na opinião pública portuguesa.
DAQUI
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22/04/12
A pão e água e era pouco
Não há fome que não dê em fartura. Vem o ditado popular a propósito de uns dias me faltar assunto, em outros ser uma avalanche (espero poder continuar a escrever avalanche e não, obrigatoriamente, avalancha). Quando o assunto é isso, pois, fica uma pessoa em apuros para focalizar, verbo que tem vindo paulatinamente a substituir o démodé dissílabo focar e que me faz sempre lembrar alguém a espancar outrem na cabeça com binóculos, resultado talvez de ter consumido BD em excesso durante a juventude.
A semana passada, por exemplo, gostaria de ter falado da medida anti-tabágica anunciada por Paulo Macedo para proteger as crianças do fumo dos progenitores dentro de veículos fechados (nada foi dito, que eu saiba, sobre descapotáveis), medida que, naturalmente, faz o pleno com outra – a de querer encerrar a Maternidade Alfredo da Costa – esta última por razões obscuras (tão obscuras que nem a sagacidade de Marcelo Rebelo de Sousa as conseguiu desvelar).
Ia eu comentar as louváveis prioridades do ministro da Saúde quando tropeço noutro tema (neste caso musical): o hino do Movimento Zero Desperdício, com música de João Gil e letra de Tim, interpretado por cerca de 50 artistas de um largo espectro político (como sói dizer-se).
Começa assim:“Eu não sei o teu nome mas sei que te posso ajudar/Sei que andas a passar fome mesmo andando a trabalhar/ O que eu não aproveito ao almoço e ao jantar/ A ti deve dar jeito/ Temos de nos encontrar”.
Não vou falar da miséria das rimas nem dos pobrezinhos do antes do 25 de Abril (cada família tinha o seu…). Vou limitar-me, educadamente, a citar Mário Cesariny: afinal o que importa não é haver gente com fome// porque assim como assim ainda há muita gente que come.
A semana passada, por exemplo, gostaria de ter falado da medida anti-tabágica anunciada por Paulo Macedo para proteger as crianças do fumo dos progenitores dentro de veículos fechados (nada foi dito, que eu saiba, sobre descapotáveis), medida que, naturalmente, faz o pleno com outra – a de querer encerrar a Maternidade Alfredo da Costa – esta última por razões obscuras (tão obscuras que nem a sagacidade de Marcelo Rebelo de Sousa as conseguiu desvelar).
Ia eu comentar as louváveis prioridades do ministro da Saúde quando tropeço noutro tema (neste caso musical): o hino do Movimento Zero Desperdício, com música de João Gil e letra de Tim, interpretado por cerca de 50 artistas de um largo espectro político (como sói dizer-se).
Começa assim:“Eu não sei o teu nome mas sei que te posso ajudar/Sei que andas a passar fome mesmo andando a trabalhar/ O que eu não aproveito ao almoço e ao jantar/ A ti deve dar jeito/ Temos de nos encontrar”.
Não vou falar da miséria das rimas nem dos pobrezinhos do antes do 25 de Abril (cada família tinha o seu…). Vou limitar-me, educadamente, a citar Mário Cesariny: afinal o que importa não é haver gente com fome// porque assim como assim ainda há muita gente que come.
21/04/12
Vamos lá aproveitar então o tempo livre e febril antes que a virose se vá de vez
Excerto pequenino da obra-prima intitulada O Legado de Humboldt, Saul Bellow, Quetzal, Tradução de Salvato Telles de Menezes
(assim ao calhas, pp 218-219)
"Sentaram-se juntos nos cavaletes de madeira, dois corpos cobertos de gotas de humidade, e o Pai Swiebel disse:
— O que é que fazes na vida?
O homem da barba estava pouco disposto a dizer o que fazia. O Pai Swiebel insistiu com ele para que falasse. Foi um erro. Era, na gíria demencial das pessoas cultas, contra o «ethos» do lugar. Ali, como no Downtown Club, não se falava de negócios. George gostava de dizer que os banhos de vapor eram o último refúgio na floresta em chamas, onde os animais hostis observavam uma trégua e a lei das presas e das garras estava suspensa. Temo que tenha retirado esta comparação de Walt Disney. O aspecto que fazia questão em recordar-me é o de que não estava certo que alguém se ocupasse de negócios ou fizesse ofertas comerciais enquanto se tomavam banhos de vapor. O Pai Swiebel foi responsável pela situação e assim o reconheceu.
— O tipo das barbas não queria conversar. Puxei por ele. Por isso, tive o que merecia.
Num lugar em que os homens estão tão nus como os trogloditas das cavernas do Adriático da Idade da Pedra e se sentam juntos, a pingar e enrubescidos, como o pôr-do-sol através da névoa, e, como no caso vertente, um tem uma barba cerrada, castanha e cintilante, e os olhares se cruzam no meio de ondas de suor e vapor, é muito possível que se fale de coisas estranhas. Acontecia que o desconhecido era uma caixeiro-viajante que vendia criptas, campas e mausoléus. Quando o Pai Swiebel ouviu tal coisa, tentou recuar. Mas já era demasiado tarde. Com as sobrancelhas franzidas, os dentes brancos e lábios expressivos rodeados pela densa barba, o homem disse:
— Já tratou do seu último repouso? Tem uma parcela de família? Já tomou as providências necessárias? Não? E porque não? Pode dar-se ao luxo de tanta negligência? Sabe como o vão enterrar? Impressionante! Já alguém lhe falou das condições dos novos cemitérios? Pois não passam de barros da lata. A morte merece dignidade. A exploração é tremenda. É uma das maiores fraudes imobiliárias que existem. Enganam toda a gente. Nunca dão as medidas estipuladas por lei. Vai jazer encolhido para todo o sempre. A falta de respeito é atroz. Mas já sabe como é a política... e as negociatas. Grandes e pequenos, andam todos a sacar. Um dia destes haverá uma investigação judicial e rebentará o escândalo. Muita gente irá parar à cadeia. Porém, será demasiado tarde para os mortos. Ninguém vai abrir túmulos para enterrar os mortos outra vez. De modo que continuará a jazer na sua tumba tapado com uma diminuta mortalha. Com os pés de fora. Como os miúdos nos acampamentos de Verão. E lá vai ficar, com centenas de milhares de corpos, numa morada definitiva aplanada, de joelhos levantados. Será que não tem direito a jazer com as pernas esticadas? E nesses cemitérios nem uma lápide é permitida. Terá de se contentar com uma placa de latão com o nome e as datas. Depois vêm as máquinas que aparam a relva. Costumam usar aquelas que têm lâminas múltiplas. É como estar enterrado num campo de golfe público. As lâminas riscam as letras do latão, que depressa ficam apagadas. E então deixará de poder ser localizado. Os seus filhos não conseguem encontrar o sítio. Está perdido para sempre...
— Pare! — gritou Myron, mas o homem continuou.
— Num mausoléu é muito diferente. Não custa tanto como se pensa. Estes novos modelos são pré-fabricados, mas são cópias dos melhores, a começar pelos túmulos etruscos, passando por Bernini e acabando na art nouveau de Louis Sullivan. As pessoas agora andam loucas com a art nouveau. Pagam fortunas por um candeeiro Tiffany ou por um lustre. Comparativamente, um túmulo art nouveau pré-fabricado sai barato. E assim uma pessoa distingue-se da multidão. Está no que é seu. Ninguém quer ficar encerrado para toda a eternidade no meio de um engarrafamento de trânsito numa autoestrada ou numa enchente do metropolitano."
(assim ao calhas, pp 218-219)
"Sentaram-se juntos nos cavaletes de madeira, dois corpos cobertos de gotas de humidade, e o Pai Swiebel disse:
— O que é que fazes na vida?
O homem da barba estava pouco disposto a dizer o que fazia. O Pai Swiebel insistiu com ele para que falasse. Foi um erro. Era, na gíria demencial das pessoas cultas, contra o «ethos» do lugar. Ali, como no Downtown Club, não se falava de negócios. George gostava de dizer que os banhos de vapor eram o último refúgio na floresta em chamas, onde os animais hostis observavam uma trégua e a lei das presas e das garras estava suspensa. Temo que tenha retirado esta comparação de Walt Disney. O aspecto que fazia questão em recordar-me é o de que não estava certo que alguém se ocupasse de negócios ou fizesse ofertas comerciais enquanto se tomavam banhos de vapor. O Pai Swiebel foi responsável pela situação e assim o reconheceu.
— O tipo das barbas não queria conversar. Puxei por ele. Por isso, tive o que merecia.
Num lugar em que os homens estão tão nus como os trogloditas das cavernas do Adriático da Idade da Pedra e se sentam juntos, a pingar e enrubescidos, como o pôr-do-sol através da névoa, e, como no caso vertente, um tem uma barba cerrada, castanha e cintilante, e os olhares se cruzam no meio de ondas de suor e vapor, é muito possível que se fale de coisas estranhas. Acontecia que o desconhecido era uma caixeiro-viajante que vendia criptas, campas e mausoléus. Quando o Pai Swiebel ouviu tal coisa, tentou recuar. Mas já era demasiado tarde. Com as sobrancelhas franzidas, os dentes brancos e lábios expressivos rodeados pela densa barba, o homem disse:
— Já tratou do seu último repouso? Tem uma parcela de família? Já tomou as providências necessárias? Não? E porque não? Pode dar-se ao luxo de tanta negligência? Sabe como o vão enterrar? Impressionante! Já alguém lhe falou das condições dos novos cemitérios? Pois não passam de barros da lata. A morte merece dignidade. A exploração é tremenda. É uma das maiores fraudes imobiliárias que existem. Enganam toda a gente. Nunca dão as medidas estipuladas por lei. Vai jazer encolhido para todo o sempre. A falta de respeito é atroz. Mas já sabe como é a política... e as negociatas. Grandes e pequenos, andam todos a sacar. Um dia destes haverá uma investigação judicial e rebentará o escândalo. Muita gente irá parar à cadeia. Porém, será demasiado tarde para os mortos. Ninguém vai abrir túmulos para enterrar os mortos outra vez. De modo que continuará a jazer na sua tumba tapado com uma diminuta mortalha. Com os pés de fora. Como os miúdos nos acampamentos de Verão. E lá vai ficar, com centenas de milhares de corpos, numa morada definitiva aplanada, de joelhos levantados. Será que não tem direito a jazer com as pernas esticadas? E nesses cemitérios nem uma lápide é permitida. Terá de se contentar com uma placa de latão com o nome e as datas. Depois vêm as máquinas que aparam a relva. Costumam usar aquelas que têm lâminas múltiplas. É como estar enterrado num campo de golfe público. As lâminas riscam as letras do latão, que depressa ficam apagadas. E então deixará de poder ser localizado. Os seus filhos não conseguem encontrar o sítio. Está perdido para sempre...
— Pare! — gritou Myron, mas o homem continuou.
— Num mausoléu é muito diferente. Não custa tanto como se pensa. Estes novos modelos são pré-fabricados, mas são cópias dos melhores, a começar pelos túmulos etruscos, passando por Bernini e acabando na art nouveau de Louis Sullivan. As pessoas agora andam loucas com a art nouveau. Pagam fortunas por um candeeiro Tiffany ou por um lustre. Comparativamente, um túmulo art nouveau pré-fabricado sai barato. E assim uma pessoa distingue-se da multidão. Está no que é seu. Ninguém quer ficar encerrado para toda a eternidade no meio de um engarrafamento de trânsito numa autoestrada ou numa enchente do metropolitano."
20/04/12
19/04/12
18/04/12
17/04/12
16/04/12
A book a day keeps the doctor away: "A Filha do Optimista", Eudora Welty
O que escrever e como escrever sobre um livro ao qual assenta como uma luva o atributo perfeito? Porque é de perfeição que falamos quando falamos de A Filha do Optimista de Eudora Welty (apenas uma nota de perplexidade: a Relógio D’Água optou por manter o “p” de “optimista” no título embora no corpo do romance se opte pela grafia segundo o (des)acordo ortográfico).
Eudora Welty (1909-2001) é um dos muitos nomes “sulistas” que fazem grande a literatura dos EUA. O romance agora traduzido, vencedor do Pulitzer em 1973 mas já publicado numa versão curta de conto em “The New Yorker” no ano de 1969, narra o confronto entre duas jovens mulheres separadas pela geografia e pela cultura: Laurel e Fay. A primeira é filha do juiz McKelva, a segunda é a sua actual mulher, com quem o juiz casou há ano e meio após enviuvar da mãe de Laurel.
As três personagens encontram-se de momento em Nova Orleães, cidade onde McKelva veio a uma visita médica que acabará por complicar-se tragicamente. Pai e filha são nascidos no Mississípi, embora Laurel viva e trabalhe em Chicago; quanto a Fay, é originária do Texas e apenas se mudou para Mount Salus após o casamento. Muito mais nova do que o marido, não leva a sério o problema de saúde do juiz, ao contrário da filha deste que, intuindo a gravidade do caso, se metera no primeiro avião para o acompanhar ao médico.
O triângulo do conflito fica magistralmente desenhado no primeiro parágrafo: “Uma enfermeira segurou a porta para eles entrarem. Primeiro o juiz McKelva, em seguida a filha, Laurel, e por último a esposa, Fay, penetraram no gabinete sem janelas onde o médico ia observá-lo. O juiz McKelva era um homem alto e pesado, de setenta e um anos, que habitualmente usava os óculos presos a uma fita. Com eles na mão desta vez, sentou-se na cadeira elevada, como um trono, mais alta do que o banco do médico, com Laurel de um lado e Fay do outro.”
A mesma economia e aparente simplicidade narrativas atravessarão as cerca de 130 páginas de A Filha do Optimista, decididamente o melhor texto longo de Eudora Welty, conhecida, sobretudo, pelos seus contos. O romance está dividido em três partes distintas e atravessa-o uma contenção desprovida de qualquer sentimentalismo, apesar de o tema se prestar a isso: um homem justo e velho casa-se com uma mulher jovem de poucos escrúpulos. Após a sua morte, a filha, dedicada, culta e bem-formada, confronta-se com a memória do passado (o que inclui, naturalmente, a memória da sua própria mãe), acabando por, nesse processo, confrontar também a provinciana madrasta com o seu comportamento condenável. O risco de se cair num registo maniqueísta e moralista é, porém, completamente evitado por Welty que consegue com mestria deixar-nos com uma obra aberta, na qual o contraste moral entre as duas mulheres – fundado nas suas origens culturais e geográficas – se deixa ler na sua absoluta individualidade e humanidade, sem recurso a quaisquer ardis extraliterários.
O mais impressionante em A Filha do Optimista residirá, aliás, na forma sage como consegue manter em suspenso o conflito entre as duas personagens femininas principais, criando no leitor uma sensação de incomodidade que se vai avolumando, à semelhança de uma onda gigante que se nega a rebentar, preferindo desfazer-se em espuma. E mesmo na cena final em que Laurel e Fay se enfrentam, o resultado é surpreendente (dramática e moralmente surpreendente), preferindo Laurel guardar a memória dos mortos a vingar-se dos vivos. Uma pequena obra-prima.
A Filha do Optimista, Eudora Welty, Relógio D’Água, 2012, tradução de Margarida Periquito
Eudora Welty (1909-2001) é um dos muitos nomes “sulistas” que fazem grande a literatura dos EUA. O romance agora traduzido, vencedor do Pulitzer em 1973 mas já publicado numa versão curta de conto em “The New Yorker” no ano de 1969, narra o confronto entre duas jovens mulheres separadas pela geografia e pela cultura: Laurel e Fay. A primeira é filha do juiz McKelva, a segunda é a sua actual mulher, com quem o juiz casou há ano e meio após enviuvar da mãe de Laurel.
As três personagens encontram-se de momento em Nova Orleães, cidade onde McKelva veio a uma visita médica que acabará por complicar-se tragicamente. Pai e filha são nascidos no Mississípi, embora Laurel viva e trabalhe em Chicago; quanto a Fay, é originária do Texas e apenas se mudou para Mount Salus após o casamento. Muito mais nova do que o marido, não leva a sério o problema de saúde do juiz, ao contrário da filha deste que, intuindo a gravidade do caso, se metera no primeiro avião para o acompanhar ao médico.
O triângulo do conflito fica magistralmente desenhado no primeiro parágrafo: “Uma enfermeira segurou a porta para eles entrarem. Primeiro o juiz McKelva, em seguida a filha, Laurel, e por último a esposa, Fay, penetraram no gabinete sem janelas onde o médico ia observá-lo. O juiz McKelva era um homem alto e pesado, de setenta e um anos, que habitualmente usava os óculos presos a uma fita. Com eles na mão desta vez, sentou-se na cadeira elevada, como um trono, mais alta do que o banco do médico, com Laurel de um lado e Fay do outro.”
A mesma economia e aparente simplicidade narrativas atravessarão as cerca de 130 páginas de A Filha do Optimista, decididamente o melhor texto longo de Eudora Welty, conhecida, sobretudo, pelos seus contos. O romance está dividido em três partes distintas e atravessa-o uma contenção desprovida de qualquer sentimentalismo, apesar de o tema se prestar a isso: um homem justo e velho casa-se com uma mulher jovem de poucos escrúpulos. Após a sua morte, a filha, dedicada, culta e bem-formada, confronta-se com a memória do passado (o que inclui, naturalmente, a memória da sua própria mãe), acabando por, nesse processo, confrontar também a provinciana madrasta com o seu comportamento condenável. O risco de se cair num registo maniqueísta e moralista é, porém, completamente evitado por Welty que consegue com mestria deixar-nos com uma obra aberta, na qual o contraste moral entre as duas mulheres – fundado nas suas origens culturais e geográficas – se deixa ler na sua absoluta individualidade e humanidade, sem recurso a quaisquer ardis extraliterários.
O mais impressionante em A Filha do Optimista residirá, aliás, na forma sage como consegue manter em suspenso o conflito entre as duas personagens femininas principais, criando no leitor uma sensação de incomodidade que se vai avolumando, à semelhança de uma onda gigante que se nega a rebentar, preferindo desfazer-se em espuma. E mesmo na cena final em que Laurel e Fay se enfrentam, o resultado é surpreendente (dramática e moralmente surpreendente), preferindo Laurel guardar a memória dos mortos a vingar-se dos vivos. Uma pequena obra-prima.
A Filha do Optimista, Eudora Welty, Relógio D’Água, 2012, tradução de Margarida Periquito
15/04/12
A Balada do Desempregado Lusitano
Creio que foi através de Kundera que tomei conhecimento das sonoras gargalhadas que terão dado Kafka e seus amigos quando o autor de A Metamorfose leu em voz alta as aventuras de Gregor Samsa, o pobre caixeiro-viajante que um dia acorda transformado num insecto.
Veio a guerra e o humor foi sendo varrido da leitura dos textos do judeu de Praga, para dar lugar ao pesadelo da angústia e do absurdo que a sua obra premonitoriamente antecipara.
Kafkianos nos tornámos, kafkianos somos. Mas porque o humor, por muito negro, não pode ser descartado, dei por mim a levar à letra o haiku do Millôr Fernandes (o cético sábio sorri só com um lábio), ao tropeçar nas declarações de Peter Weiss, chefe-adjunto da missão da troika em Portugal, que, a dado passo, sugere que o aumento do desemprego se deverá, quem sabe, ao facto de os trabalhadores portugueses andarem a pedir encarecidamente para serem despedidos:
“Pode até acontecer a pedido dos trabalhadores, que é claro que estão interessados em ter uma maior duração do subsídio de desemprego, que pedem em vez de me despedir em Abril, despeça-me em Março – pode ser isso. Isto está sempre aacontecer: quando se aumenta os impostos sobre o tabaco, as pessoas começam a comprar cigarros. É um comportamento normal. Não temos quaisquer provas disso, avancei isso como uma das razões, porque, como disse, nós não entendemos completamente os números”.
Não tenho provas se este Peter Weiss fuma (o outro era dramaturgo e cachimbava), mas se o faz, anda decerto a fumar substâncias não homologadas. Só isso explicará o seu extraordinário raciocínio.
E dado que somos bem entrados em Abril, o mais cruel dos meses, deixo a pergunta: já foi despedido (ao preço antigo) o chefe-adjunto?
Veio a guerra e o humor foi sendo varrido da leitura dos textos do judeu de Praga, para dar lugar ao pesadelo da angústia e do absurdo que a sua obra premonitoriamente antecipara.
Kafkianos nos tornámos, kafkianos somos. Mas porque o humor, por muito negro, não pode ser descartado, dei por mim a levar à letra o haiku do Millôr Fernandes (o cético sábio sorri só com um lábio), ao tropeçar nas declarações de Peter Weiss, chefe-adjunto da missão da troika em Portugal, que, a dado passo, sugere que o aumento do desemprego se deverá, quem sabe, ao facto de os trabalhadores portugueses andarem a pedir encarecidamente para serem despedidos:
“Pode até acontecer a pedido dos trabalhadores, que é claro que estão interessados em ter uma maior duração do subsídio de desemprego, que pedem em vez de me despedir em Abril, despeça-me em Março – pode ser isso. Isto está sempre aacontecer: quando se aumenta os impostos sobre o tabaco, as pessoas começam a comprar cigarros. É um comportamento normal. Não temos quaisquer provas disso, avancei isso como uma das razões, porque, como disse, nós não entendemos completamente os números”.
Não tenho provas se este Peter Weiss fuma (o outro era dramaturgo e cachimbava), mas se o faz, anda decerto a fumar substâncias não homologadas. Só isso explicará o seu extraordinário raciocínio.
E dado que somos bem entrados em Abril, o mais cruel dos meses, deixo a pergunta: já foi despedido (ao preço antigo) o chefe-adjunto?
14/04/12
Corrente "Passos Coelho ama-te" — envia a 10 pessoas e verás que pelos 9 vão mandar-te à merda*
Abaixo a lista dos incréus a quem envio a corrente. Lêde e multiplicai!
João Lisboa (Provas de Contacto)
Joana Lopes (Entre as Brumas da Memória)
Luís Januário (A Natureza do Mal)
Morgada de V. (5 Dias)
José Simões (Der Terrorist)
Sérgio Lavos (Arrastão)
Luís Rainha (Vias de Facto)
MCS (No Vazio da Onda)
Luís M. Jorge (Vida Breve)
(????) (ShavenPudenda)
* Corrente iniciada com retumbante êxito no caradelivro por Leonilde Santos
13/04/12
Declaração de interesses ou como dizia o Quincas Borba "Ao vencedor, as batatas"
Febre dos fenos do colectivo dos juízes pode estar na origem da sentença do caso Portucale
O mistério das árvores que se auto-suicidaram — todas elas Quercus suber, espécie declarada em 2011 pela Assembleia da República "Árvore Nacional de Portugal" — foi ontem a enterrar numa cerimónia presidida pela juíza Laura Maurício e onde dominaram os beijos, abraços e parabéns.
João Almeida, rapaz do CDS que à altura dos acontecimentos que dariam origem ao caso Portucale ainda andaria de fraldas, veio contudo garantir que se fez justiça: "A Justiça produziu os seus resultados ao fim de sete anos, mas produziu o resultado que sempre dissemos que seria o único que poderia produzir (...)"
Entretanto, fontes que preferiram o anonimato sugeriram que a sentença se terá devido ao facto do colectivo de juízes sofrer maioritariamente da chamada "febre dos fenos", o que logo à partida indiciava uma grande desvantagem para os sobreiros.
Uma testemunha presente na leitura da sentença jurou mesmo que um dos dos juízes, entre dois espirros e vários assoadelas, terá dito: "Por mim abatia-as a todas". Às árvores, subentenda-se.
12/04/12
Que bom que a família da Helena Matos a conseguiu tirar do gueto do enquadramento socio-económico ou da relação entre a falta de empatia e a estupidez
Para se ser reaccionário não é preciso negar o óbvio, ó Helena.
Já vos terei eu dito alguma vez o quanto gosto da Morgada?
(...)
Fast forward para o presente: Portugal, 2012. A Troika ocupou o país. Aconselhado pelos burocratas da Comissão Europeia e do FMI, o ministro da Saúde fecha hospitais e maternidades. Relatos na imprensa dão conta de gente a morrer com cancro por não conseguir pagar os tratamentos. O povo deixa de ter dinheiro para as urgências. Estar de baixa passa a ser um luxo reservado a doentes ricos. Comer também: criancinhas vão para a escola sem terem jantado, e pequeno-almoço, viste-lo. Mas o Governo está atento à saúde dos menores: vai proibir os paizinhos de fumar no carro, e exigir além disso a colocação de “advertências mais explícitas nas embalagens que mostrem e exemplifiquem as consequências do tabagismo na saúde”, Paulo Macedo dixit. Não sei o que é que este ministro anda a fumar, mas deve ser MUITO fixe.
09/04/12
A book a day keeps the doctor away: "O Doutor Glas", Hjalmar Söderberg
Com introdução assinada por Margaret Atwood em 2002, chega-nos O Doutor Glas, novela do sueco Hjalmar Söderberg (1869-1941) publicada originalmente em 1905. Nela estão presentes temas como o aborto e a eutanásia, o que talvez explique o escândalo que acompanhou a sua primeira edição.
Como bem sublinha a escritora canadiana, o “escândalo”, porém, é apenas uma parte ínfima do interesse que O Doutor Glas desperta até hoje.
Escrito sob a forma de um diário pelo próprio protagonista, Tyko Gabriel Glas, o livro descreve de forma contida, e aparentemente muito simples, a escolha (moral) de Glas, médico que, indiferente aos valores subjacentes à sua profissão, se sente obrigado a escolher entre uma mulher e o seu “repugnante” marido, o reverendo Gregoruis.
O arbítrio, neste caso, exige radicalismo, e entre reflexões racionais e ansiedades inexplicáveis, vamos assistindo ao adensamento da trama, mas com tal subtileza (e leveza) que é como se tudo se passasse numa espécie de anticlímax contínuo.
A acção decorre num plano quase silencioso, onde o não-dito assume papel fundamental. Não há crime e castigo e, nesse sentido, Glas é bem mais moderno que Raskólnikov.
O livro, e não há forma de discordar de Atwood, é, em si mesmo, absolutamente moderno, na medida em que recorre a todas as estratégias literárias que fazem o grande romance do último século: papel ao inconsciente, derivas narrativas, cortes burlescos, anti-heróis individualistas, crítica da hipocrisia social, desejo e sexo…
Tudo isso está em Hjalmar Söderberg, mais os terrores nocturnos que terá ido buscar a Poe, exposto sem alarde nem espalhafato, num registo elegante que esconde um vulcão prestes a explodir. Belíssimo.
O Doutor Glas, Hjalmar Söderberg, 2012, Relógio D’Água, tradução de Miguel Serras
Pereira
08/04/12
Do Camões ao valter passando pelo Herberto [descubra as diferenças]
Os escrevedores que me perdoem mas talento é fundamental.
É preciso que haja um barco bêbedo, um erro de gramática, uma mulher de quem se possa dizer: Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis (ou então que a mão confesse com lucidez etílica: no se puede vivir sin amor). É preciso que o sentimento não se dirija ao coração mole das pessoas sensíveis que não são capazes/ de matar galinhas...
É preciso lembrar Wilde: “A sentimentalist is simply one who desires to have the luxury of an emotion without paying for it”.
É preciso que o artificio não mate o pacto narrativo e que o lirismo não desculpe os “cagalhões líricos que por aí andam, passeiam e triunfam”.
Talento é fundamental (não confundir a sordidez de Celine com a vulgaridade de Houellebecq).
Mundo é fundamental (não confundir ter mundo com descargas confessionais).
Imaginação, precisa-se. Distanciamento, exige-se. Oficina, idem mas sem oferta de garantia (“o estilo é uma dificuldade de expressão”). Quanto ao que faz a coisa literária, permanece um “je ne sais quoi” cuja receita é tão ou mais secreta do que a dos pasteis de Belém.
O maior mistério, contudo, é escrever-se “valter hugo mãe” no Google e em poucos segundos surgirem 468 mil referências e fazer o mesmo para Herberto Helder e não se ir além das 77 700.
Lê-se a poética do primeiro (“… algo em ti me puxa/ sempre ao sentimento, mesmo antes de/ te conhecer, lembras-te, uma propensão para/ te tratar bem, cuidar, vulnerabilizar os meus/ modos…”), depois o segundo (“Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra/ e seu arbusto de sangue. Com ela/ encantarei a noite…”) e só Camões nos impede de cortar os pulsos: UM MILHÃO E VINTE MIL entradas.
07/04/12
06/04/12
Peter Weiss, se te encontrasse na rua dava-te uma lamparina
«Quanto ao aumento do desemprego, que atingiu os 15% e superou as previsões da própria “troika”, a explicação [de Peter Weiss, o chefe adjunto da missão da “troika”] é, no mínimo, peculiar: “Pode até acontecer a pedido dos trabalhadores, que é claro que estão interessados em ter uma maior duração do subsídio de desemprego, que pedem ‘em vez de me despedir em Abril, despeça-me em Março’ - pode ser isso. Isto está sempre a acontecer: quando se aumenta os impostos sobre o tabaco, as pessoas começam a comprar cigarros. Isto é um comportamento normal. Não temos quaisquer provas disso, mas avancei isso como uma das razões, porque, como eu disse, nós não entendemos completamente os números”.»
AQUI
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O valentão do Chiado ou das regras da pancadaria
Não era no tempo em que os animais falavam, mas decerto bastante anterior à decisão de proibir o fumo à mesa dos restaurantes. Veneziana, há muito que seria de mau-gosto perguntar-lhe a data de nascimento e, ainda assim, a sua presença não passaria despercebida ao mais míope dos comensais.
Mistura improvável de Anna Magnani com Monica Vitti, tendo terminado le pere al vino rosso, lançou-me um wildeano le dispiace se fumo? e eu, incapaz de contrariar uma senhora que teria sobrevivido pelo menos a duas guerras mundiais, limitei-me a um gesto de assentimento por ter a boca cheia e a infeliz mania de confundir italiano com espanhol. Acendeu o cigarro com o que me pareceu uma boa dose de volúpia e rematou enfumaçada: “Hábito novo, o de perguntar. Afinal, eu sou do tempo em que os homens fumavam charuto e andavam a cavalo”.
A primeira vez que presenciei a polícia de choque em manobras os homens já não andavam a cavalo, salvo a força da GNR e os campinos da lezíria ribatejana.
Festival de Jazz de Cascais, creio que 1973. A polícia carregou e um dos espectadores, intercalando a fuga com paragens momentâneas para insultos à autoridade, perdeu sucessivamente terreno até acabar no chão sob uma saraivada de golpes.
Não seria a única vez que tive o desprazer de ver cassetetes ao vivo e a cores. Confesso que nunca me habituei. Ainda hoje é uma coisa que me chateia. Afinal, até a pancadaria tem regras.
Se der um estalo não é suposto levar um tiro em resposta. Se tirar uma fotografia, não é suposto levar chibatadas ou acabar no hospital. Jornalista ou não jornalista. Falo da regra da proporcionalidade de que já falava Aristóteles, um apreciador da arte equestre que nada sabia de charutos.
Mistura improvável de Anna Magnani com Monica Vitti, tendo terminado le pere al vino rosso, lançou-me um wildeano le dispiace se fumo? e eu, incapaz de contrariar uma senhora que teria sobrevivido pelo menos a duas guerras mundiais, limitei-me a um gesto de assentimento por ter a boca cheia e a infeliz mania de confundir italiano com espanhol. Acendeu o cigarro com o que me pareceu uma boa dose de volúpia e rematou enfumaçada: “Hábito novo, o de perguntar. Afinal, eu sou do tempo em que os homens fumavam charuto e andavam a cavalo”.
A primeira vez que presenciei a polícia de choque em manobras os homens já não andavam a cavalo, salvo a força da GNR e os campinos da lezíria ribatejana.
Festival de Jazz de Cascais, creio que 1973. A polícia carregou e um dos espectadores, intercalando a fuga com paragens momentâneas para insultos à autoridade, perdeu sucessivamente terreno até acabar no chão sob uma saraivada de golpes.
Não seria a única vez que tive o desprazer de ver cassetetes ao vivo e a cores. Confesso que nunca me habituei. Ainda hoje é uma coisa que me chateia. Afinal, até a pancadaria tem regras.
Se der um estalo não é suposto levar um tiro em resposta. Se tirar uma fotografia, não é suposto levar chibatadas ou acabar no hospital. Jornalista ou não jornalista. Falo da regra da proporcionalidade de que já falava Aristóteles, um apreciador da arte equestre que nada sabia de charutos.
03/04/12
Caraças, a mim aconteceu-me o mesmo
Ainda não vi ninguém queixar-se (e, que diabo!, não acredito que seja só eu o eleito e o escolhido): fui atacado por um "hacker" anónimo ao serviço da Kultura e do dr. Malaca Casteleiro e, em silêncio, sem aviso, o meu Word adoptou o celerado Acordo Ortográfico. Mesmo agora acaba de sublinhar a vermelho a palavra "adoptou" (e voltou a fazê-lo!)
Não tenho conhecimentos de informática nem tempo para tentar desactivar (outra vez!) no corrector (de novo!) ortográfico o cavalo de Troia nele alojado não sei por que sinistro Torquemada linguístico, e irrita-me saber que alguém vigia o modo como escrevo pois, a seguir a isso, há-de vir também a vigilância sobre aquilo que escrevo. (O biltre sublinhou o "há-de" a vermelho; só falta notificar-me, como nas cartas de condução, de que já cometi x ou y infracções (outra vez!) ortográficas graves e de que ficarei impedido de escrever durante um mês ou, sabe-se lá, para sempre). Que fazer? A quem pedir satisfações? Ao Windows Update? Ao dr. Miguel Relvas? Ao SIS? À Loja Mozart?
Por que obscura porta se terá infiltrado a Coisa no meu computador? Poderá entrar igualmente pela minha consciência e pela minha vontade dentro, censurando a vermelho o que penso e o que quero como censura o que escrevo? Já pensei voltar a escrever à mão, mas temo que até esferográficas e lápis tenham já sido programados pelo dr. Casteleiro para não me deixarem escrever consoantes mudas.
Manuel António Pina, A Conspiração Ortográfica
Não tenho conhecimentos de informática nem tempo para tentar desactivar (outra vez!) no corrector (de novo!) ortográfico o cavalo de Troia nele alojado não sei por que sinistro Torquemada linguístico, e irrita-me saber que alguém vigia o modo como escrevo pois, a seguir a isso, há-de vir também a vigilância sobre aquilo que escrevo. (O biltre sublinhou o "há-de" a vermelho; só falta notificar-me, como nas cartas de condução, de que já cometi x ou y infracções (outra vez!) ortográficas graves e de que ficarei impedido de escrever durante um mês ou, sabe-se lá, para sempre). Que fazer? A quem pedir satisfações? Ao Windows Update? Ao dr. Miguel Relvas? Ao SIS? À Loja Mozart?
Por que obscura porta se terá infiltrado a Coisa no meu computador? Poderá entrar igualmente pela minha consciência e pela minha vontade dentro, censurando a vermelho o que penso e o que quero como censura o que escrevo? Já pensei voltar a escrever à mão, mas temo que até esferográficas e lápis tenham já sido programados pelo dr. Casteleiro para não me deixarem escrever consoantes mudas.
Manuel António Pina, A Conspiração Ortográfica
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