30/05/11

As estrelas da Lídia Jorge ou do bizarro conceito de ironia da dita

Aqui há uns tempos Lídia Jorge deu uma entrevista à revista LER. A dado passo afirmava, a respeito da gravíssima redução de estrelas (de 3 para 5) aplicadas a um livro seu no Expresso:
"A Luísa Mellid-Franco deu cinco estrelas ao livro e o José Mário Silva também gostou imenso do livro e ficaram entusiasmados (...) Mas aquela coisa das estrelas, em vez de porem cinco puseram três. Houve alguém que alterou aquilo. Soube disso pelos próprios, que na altura ficaram em pânico. Na DOM Quixote ficaram... eu é que os acalmei. Claro que a rectificação já não consegue prevalecer. Conto isto porque chocou muitas pessoas que me telefonaram. Houve um sentimento de espera muito intenso em relação a este livro. E há pessoas que estão a lê-lo, parece-me a mim, com um grande entusiasmo."

A coisa, naturalmente, nada tivera de conspirativo, tratando-se tão-só de um banal erro de paginação. A senhora, contudo, preferia avançar com torpes insinuações: Houve alguém que alterou aquilo.
Ó alguém!
Confrontada, presumivelmente, com os factos, mas só depois, claro, de ter acalmado o pânico da editora, a multidão de leitores e quiçá os peixes e os canários, veio "desculpar-se" no Expresso dizendo que tudo não passara, afinal, e a minha alma pasma senhor! de um exercício de ironia.
«(..) Esta afirmação foi produzida num contexto de ironia e na tentativa de exemplificar o carácter por vezes aleatório da avaliação quantitativa dos livros, referindo-me em concreto aos erros comuns originados pela formatação informática, como terá sido o caso, sem que as minhas palavras procurassem ter outro qualquer significado ou envolvessem associações pejorativas.»
Como resume e muito bem João Gonçalves:

"O êxito de livraria e de difusão nunca foram sinal de nada em literatura. Pelo contrário, aquilo a que temos assistido é a uma profusão de péssimos escritores e de romancistas medíocres que não conseguem livrar-se de uma concepção provinciana dela ao mesmo tempo que beneficiam de uma mediatização equivalente a marcas de cerveja.
A circunstância de Lídia Jorge fascinar a mediania tribal e comádrica em vigor no pequenino mundo das letras portuguesas não passa, por isso mesmo, de um gesto de propaganda como qualquer outro em outras áreas.
A sua carta (o "assunto") é como a ostra do poema de Ponge no sentido em que revela, na perfeição, o modo de ser daquilo que passa por literatura portuguesa contemporânea em versão "romance": tout un monde opiniâtrement clos. Um mundo no qual importam mais as entrevistas certas e as "estrelas" em casos de patologia literata avançada e compulsiva, como Eduardo Pitta, a gastronomia e a vitivinicultura fazem parte da "pensão completa" do que a qualidade intrínseca da obra. É o que há."

24/05/11

"They say Wilder is out of touch with his times. Frankly, I regard it as a compliment. Who the hell wants to be in touch with these times?"

Cito o meu mestre, Billy Wilder, e proponho o visionamento disto (não aconselhável a pessoas sensíveis). Ou, pelo menos, a leitura da notícia.
Como dizia o velho xerife de Este País Não É Para Velhos: "Porque muitas das vezes que eu digo que o mundo está a ir direitinho para o Inferno ou alguma coisa do género, as pessoas limitam-se a fazer-me um sorriso e dizem-me que estou a ficar velho. Que este é um dos sintomas. Mas cá no meu entender, se alguém não vê a diferença entre violar e assassinar pessoas e mascar pastilha elástica é porque tem um problema muito mais grave do que o meu.”

23/05/11

Beleza é Fundamental

Podia mentir. Esquecer a sordidez de bordel em que se tornou a política e ater-me às fisionomias. À superiormente sofrida de Francisco Assis, homem que parece carregar (sempre) o peso do mundo ou, pelo menos, do PS; à vermelhusca de Catroga, senhor de cabelos alvíssimos que vem ultimamente perorando em português vernáculo sobre feitos propagandísticos.
Teorizar, quiçá, sobre o significado absconditus das diferenças nasais entre Louça e Sócrates; dois narizes de similar proeminência cujas pirâmides são absolutamente distintas (a importância dos narizes na História ficou provada naquela obra de Albert Uderzo e René Goscinny, na qual César, o imperador romano e não o açoriano, confrontado com a fúria de Cleópatra diz, de si para si, É bela, mas a mostarda sobe-lhe facilmente ao nariz; convicção idêntica à do filósofo Pascal que, também ele, dissertou com elegância sobre o mesmo: le nez de Cléopâtre: s'il eût été plus court, toute la face de la terre aurait changé).
Em minha defesa (ou seja, do tema desta crónica) – que muitos entenderão fútil dada a situação do país – invoco Wilde: Só as pessoas superficiais não julgam pelas aparências. E usando o irlandês como âncora, chego ao ponto: os políticos portugueses são, maioritariamente, muito feios. Este facto pode parecer despiciendo mas não é. Já que entrámos em recessão, já que nos vamos ver gregos, ao menos que nos ofertassem algum consolo estético.
A estética anda subavaliada. Será por isso, por ex., que a submersão de parte da lindíssima Linha do Tua não suscitou mais do que uns quantos suspiros nostálgicos, rendidos os lesados à frieza (vil) das compensações.
Num país decente, ou até na Itália de Berlusconi, aquilo era capaz de fazer vir charters carregadinhos de chineses. Por cá, uma velharia a descartar em nome da modernidade e dos negócios. Mas desvio-me do assunto que, em verdade e resumindo, era isto: eu prefiro homens bonitos (não me interpretam mal; o meu estilo é o Gregory Peck).

19/05/11

A book a day keeps the doctor away: "A Humilhação", Philip Roth

Do último representante do romance clássico norte-americano — assim se poderia definir (um pouco genérica e pomposamente, é certo) Philip Roth — foi há pouco publicado entre nós A Humilhação, texto datado de 2009. Depois disso, Roth já deu à estampa Nemesis e acaba de receber (há um dia) o prémio Man Booker Internacional 2011.
A Humilhação é, como a maioria dos seus trabalhos mais recentes, um texto curto. Uma novela. Uma história contada em poucas páginas totalmente centrada no seu protagonista, Simon Axler, actor sexagenário que, de súbito, se vê desprovido de talento e incapaz de subir ao palco: “Em vez da certeza de que ia ser espantoso, sabia que ia fracassar. Aconteceu três vezes seguidas e, na última, já ninguém estava interessado, ninguém apareceu. Não conseguia chegar ao público. O seu talento estava morto”.
Velhice, sexo, dinheiro, fama — temas caros a Roth — conduzem a acção que, neste caso, se constrói como uma sucessão de cenas expurgadas de acessórios. A América está lá, mas filtrada pelas personagens que valem por si, quase sem enquadramento.
A recepção crítica a A Humilhação não foi muita boa, para não dizer que foi má. O escritor viu-se acusado de ter perdido fôlego, de ter publicado um trabalho esquemático, quiçá programático. Uma banal fantasia sexual masculina travestida de ficção.
No “Guardian”, William Skidelsky (que também se dedica à gastronomia) chegou a aconselhá-lo a sair um pouco mais de casa (o que me pareceu descabido, a não ser que Skidelsky estivesse a referir-se a comer mais vezes fora).
O livro é muito bom e, sobretudo, tremendamente simples. Conciso. Preciso. Como sempre, claro, expurgado de matéria adiposa, seco, irónico e implacável: os bons sentimentos não fazem a boa literatura, muito menos a do autor de Pastoral Americana.
A tantas vezes invocada “misoginia” de Roth não deve ter ajudado. Após uma passagem voluntária por um hospital psiquiátrico (momento ficcional em que se desanca numa série de lugares-comuns ligada às contextualizações psicológicas: “Uma pessoa chega a um ponto de desespero em que tenta tudo para explicar o que lhe está a acontecer, mesmo que saiba que isso não explica coisa nenhuma e que as explicações falhadas se sucedem”), Axler pensa ter encontrado a salvação na relação amorosa que inicia com Pegeen, a filha de um casal de actores amigo, agora com quarenta anos e um passado de lésbica.
Humilhado pela debandada inexplicável do seu talento no início — o que acarretaria o fim do seu casamento com Victoria —, o velho actor é humilhado de novo no final, ao ser abandonado por Pegeen, a maria-rapaz que o seu dinheiro havia conseguido transformar numa boneca de luxo: “O que estava a fazer era apenas a ajudar Pegeen a ser uma mulher que ele desejasse, em vez de uma mulher que outra mulher desejasse”. Mas a fantasia masculina de converter uma lésbia aos prazeres da heterossexualidade terminará num pesadelo de vexame e solidão. Por fim, numa tragédia.
A salvação mostra-se impossível, como bem o prova o comportamento radical de Sybil Van Buren, doente psiquiátrica que se cruza com Axler no início da novela (mãe de Alison, uma menina molestada pelo próprio pai) e que se mostra incapaz de lidar com o sucedido até encontrar a solução final, inesperada e desesperada. E é nessa personagem secundária, franzina e frágil, que parece residir a chave de A Humilhação: como se qualquer tentativa de suprir o sofrimento apenas servisse para o reproduzir — “o que vai ser o sofrimento de Alison”, pergunta-se depois de Alison ter sido vingada.
Hipótese de recurso? A de transformar a dor em arte; fingir representar, por exemplo, uma peça de Tchekov.

Philip Roth, A Humilhação, D. Quixote, 2011

16/05/11

Ainda Dominique

A imagem exibida pela polícia americana do presidente do FMI merecia uma atenção demorada. Quatro linhas de reflexão, como diria o outro.
Primeiro: o homem está algemado e rodeado por um número considerável de polícias (o campo foi reduzido). A acusação é de "acto sexual criminoso", segundo o Libération. Porque está algemado? Espera-se que salte para cima dos polícias e tente violá-los? Que tente furtar-se à justiça? Não, DSK é mostrado a todos os povos do mundo como símbolo da justiça americana, universal, não poupando os poderosos. Se o cadáver de Bin Laden podia chocar os bons cidadãos, tomai então este outro vilão.
Segundo: a imprensa responsável da Europa já publica tudo. O passado íntimo, a transcrição de tablóides, a citação de bloguers e o comentário anónimo de "pessoas bem informadas".
Terceiro: este homem, que umas horas antes era tudo, está agora desprovido de toda a dignidade (aos justicialistas que acharem a frase excessiva aconselho que se façam algemar). Foi-lhe retirada a gravata e os atacadores. Ele, que convenceu tanta gente com a palavra, não pode recusar as câmaras assestadas sobre a face. Olhem a face de DSK: é a face de Saddam, o diabo iraquiano, no cadafalso de Bagdad. O lisboeta informado, humilhado pela troika há oito dias, pode agora exultar.
Quatro: o presumível crime de DSK é pouco referido. Mas, como é evidente, o homem não foi preso por administrar o FMI. O puritanismo hipócrita exulta e, desta feita, a imprensa europeia está toda sentada no chá americano.
DAQUI, um sítio que me reconcilia com o mundo.

Evolução

Na Roma antiga, o Coliseu lá do sítio organizava espectáculos que, por vezes, se mantinham em cartaz mais de um trimestre. Os seus actores costumavam durar bastante menos.

Um programa típico organizava-se assim: de manhã, combate entre animais exóticos, de bom porte e quanto mais ferozes melhor; a hora do almoço era reservada à execução de prisioneiros; à tarde chegavam os gladiadores que lutavam entre si até um deles ficar sem cabeça. Tudo cenas para homens de barba rija, mesmo se as mulheres também podiam assistir, embora, a partir de determinada altura, em zonas reservadas apenas ao sexo fraco. Os espectáculos no Coliseu terminaram em 523, por serem considerados bárbaros, mas, durante séculos, a “caça às bruxas e aos hereges” (com as suas fogueiras a céu aberto) continuaria a animar as turbas sedentas de recreação.

O advento da televisão veio alterar tudo isto. A violência passou a ser servida a frio a qualquer momento do dia (com incidência ao jantar), editada por profissionais e mediada pela passagem do tempo: o morto do ecrã não é morto – ali – na hora. E este intervalo tornou-se, entre outras coisas, num elemento facilitador das digestões de quem assiste às notícias enquanto trinca.

Guerras mais recentes (Golfo, Iraque, etc.) optaram por um estilo mais gráfico, gerando imagens que mais pareciam saídas de um jogo de computador com muito poucos cadáveres, chamados agora “danos colaterais”. Estávamos neste ponto, quando as gravações por telemóvel voltaram a alterar tudo outra vez. É o massacre na escola registado por uma vizinha, é o óbito de um ditador difundido em pormenor, é a bebedeira de um estilista a servir de justa causa para o seu despedimento.

“O meio é a mensagem”, abreviou McLuhan nos idos de 60. Seja qual for o meio, uma questão me encanita: quanta violência conseguirá um humano visualizar sem que se lhe fechem as pálpebras e dispare o neurónio da compaixão? E é aqui que entra Elliot: “Vai, vai, vai, disse a ave: o género humano/ Não pode suportar muita realidade”.

15/05/11

Não consigo parar de rir [sim, eu sei que não devia]

O Presidente do Fundo Monetário Internacional, o socialista francês Dominique Strauss-Kahn, foi detido em Nova Iorque acusado de abuso sexual sobre uma empregada de hotel.
Lido aqui, por cortesia do Nuno.

07/05/11

Quem me dera Las Vegas!

Um dia ia acontecer. A angústia da página em branco.
“All work and no play makes Jack a dull boy”, como escreveu desalmadamente Jack Torrance durante aquela estadia na neve que acabaria com ele frozen e bem frozen dentro do labirinto, imagem que me conduz vá lá saber-se porquê – insondáveis são os caminhos da memória — a uma viagem a Las Vegas em que estando eu a tomar nota de um pormenor qualquer no átrio do Casino Royal — enquanto uma voz metálica repetia a espaços precisos “three, free, frozen margaritas now!” — um dos porteiros do casino me perguntou e não era para meter conversa: “Are you writting a poem?”.
(Escrito este primeiro parágrafo — demasiado longo para um artigo de jornal, eu sei, eu sei — a angústia volta de novo: “a minha cabeça estremece com todo o esquecimento” e o Herberto que me perdoe).
O mais simples seria falar do FMI e citar o Zé Mário Branco apesar de o contexto ser outro. O contexto é importante. O contexto chega a ser fundamental. Fenomenal. O que justificaria o ensejo de sacar agora da fenomenologia do Heidegger (viva a cultura!), ou de referir pelo menos o espanhol que, assim como assim, sempre dá para transcrever no original (um dos autores preferidos do nosso primeiro-ministro embora demissionário), Ortega Y Gasset: “el hombre es él y su circunstancia”.
A circunstância é que, no caso, o nosso primeiro-ministro embora demissionário terá gostado muito de ler A Rebelião das Massas só que entretanto a massa foi-se e quanto à rebelião — a ser — talvez lá mais para Agosto que como cantava o Zé Mário, apesar do diferente contexto: “Não há português nenhum que não se sinta culpado de qualquer coisa, não é filho? Todos temos culpas no cartório, foi isso que te ensinaram, não é verdade? (…) A culpa é de todos, a culpa não é de ninguém, não é isto verdade? Quer isto dizer, há culpa de todos em geral e não há culpa de ninguém em particular!”.
Assim sendo, resta-me plagiar Quincas Borba (“ao vencedor, as batatas”) e aguardar por alguma ideia de jeito.
Publicado no caderno "Actual" do Expresso de hoje.

01/05/11

Cada país tem a música que merece


Com um muito obrigada à Charlotte e ao Senhor Comentador

A book a day keeps the doctor away: "Contos Carnívoros", Bernard Quiriny


Se gosta de Borges, Poe, Marcel Aymé… vai gostar de Bernard Quiriny.
Belga francófono, acaba de ser traduzido pela primeira vez em Portugal. Uma antologia de 14 histórias a que se acrescenta uma 15ª assinada por Enrique Vila-Matas, em jeito de posfácio.
Imaginação é a palavra-chave. Um jovem, ainda (n. 1978), Quiriny tem-na para dar e vender. A prova vem logo a abrir, com “Sanguínea”, o relato de um caso de amor entre um homem e uma mulher cujo corpo está coberto por casca de laranja.
As ficções que se seguem não desiludem. O escritor sabe manter-nos em suspenso, e cada conto vale por si. À imaginação, alia um conhecimento aprofundado da literatura do género, usando-o com subtileza e escapando ao mero pastiche.
O seu “alter-ego” Pierre Gould, personagem que tem o exclusivo de uma das narrativas, “O Extraordinário Pierre Gould”, fascina com razão Vila-Matas que, em posfácio (“Um catálogo de ausentes”), não deixa de dialogar com o autor de “um romance intitulado História de um Adormecido, que era, no seu dizer, o lipograma mais restritivo do mundo: proibira-se o uso de todas as palavras do alfabeto, com a excepção do z. O que dava ‘Zzzz, zzzz, zzzz’, e assim sucessivamente, ao longo de trezentas páginas.”
O conto que dá título ao livro (embora grafado no singular) põe em cena Latourelle, botânico que se enamora por Dionaea, “rainha de entre todas as plantas carnívoras”. Há um padre cuja alma se passeia entre dois corpos. Há uma tribo amazónica com uma língua incompreensível. Há um assassino a soldo que tem de levar a cabo um suicídio. Há um “escritor em formação” desprovido em absoluto de ideias…
Aliando a clareza matemática ao terror carnal, os contos de Quiriny são… para comer.
Contos Carnívoros, Bernard Quiriny, Ahab