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O Carlos Cruz!!! E sim, ponham pontos de exclamação nisso.
Também eu fiquei de boca aberta. Depois vi-o chorar no ecrã e a coisa cheirou-me a esturro: cá para mim, que já li muitos livros e assisti a muitos filmes embora desconfie visceralmente da psicologia e possa estar enganada, um homem acusado de pedofilia não chora. Fica em estado catatónico, enfurece-se, gagueja ou pragueja, mas não chora. E não estou a citar Sttau Monteiro nem o Gonçalo Amaral.
Culpado ou inocente, confrontar-se com a simples eventualidade de um Carlos Cruz pedófilo terá sido para todos o que de algum modo simpatizavam com ele (e eram quase todos) tão devastador como (imagina-se) o encontro de Maiakovski com a besta estalinista. Mas enquanto o poeta russo se foi com um tiro certeiro no coração, os portugueses continuaram a reproduzir-se.
Carlos Cruz era, pois, um tipo simpático. Excelente comunicador, encarnava uma espécie de good neighbor next door, género Tom Hanks mas mais baixo. E também ele transversal a todos os géneros, gerações, e credos.
Resumindo: a participação no velho Zip Zip garantia-lhe uma aura anti-fascista (palavra muito em voga a dada altura); a locução do programa humorístico Pão com Manteiga — onde lia com sotaque brasileiro a memorável frase Este já está liquidado. O tiro foi bem na testa. Não comerá mais criancinhas no caminho da floresta — garantia-lhe uma aura libertária; a apresentação de Quem Quer Ser Milionário alargou-lhe a zona de influência e, finalmente, ao dar o rosto pelo euro tornou-se num valor unânime (a malta do PCP, que era contra o euro, estava garantida por causa do Zip Zip...).
Carlos Cruz era assim uma espécie de Mário Soares dos pequeninos pró maior, porque nem lhe era necessário descontar o ódio persistente dos taxistas.
Agora imaginem comigo. O que é que aconteceria se alguém descobrisse que a própria mãe — que lhe ensinara coisas tão inócuas como comer sem pôr os cotovelos na mesa — escondia dentro de si um Hannibal Lecter?
Pondo de lado a hipótese reconfortante de tal pessoa se converter ao vegetarianismo, é provável que o seu sistema de valores ficasse um tanto baralhado.
Tenho para mim que foi isso que aconteceu a Portugal. Seja Carlos Cruz condenado ou não pela justiça, a mera suspeita abriu a caixa de Pandora e não há como fechá-la.
Pondo as coisas em perspectiva.
O que é o inglês técnico de Sócrates comparado com pedofilia? O que são os submarinos de Portas comparados com pedofilia? O que é um sobrinho na Suíça comparado com pedofilia? O que são as offshores do BPN comparadas com pedofilia? O que são os robalos de Vara comparados com pedofilia? O que é um centro comercial em Alcochete comparado com pedofilia? O que é o gamanço de dois gravadores comparado com pedofilia? O que são as lutas intestinas no Ministério Público comparadas com pedofilia? Etc.
Comparado com pedofilia, talvez mesmo só as SCUTs. Isto atendendo, pelo menos, à projecção da polémica, cuja dimensão interclassista e catastrofista já levou muitos comentadores, ou pelo menos eu, a antevê-las como o (contra)ponto G que fará cair o governo.
Entretanto, a reflexão sobre o caso das SCUTs, matéria que parece indiciar uma estranha fixação automobilística do povo lusitano — talvez só comparável à fase anal definida por Freud — remeteu-me, sem eu querer até porque não conduzo, para uma frase do Sena: O problema não é salvar Portugal, é salvarmo-nos de Portugal.
Eu sei que Sena tinha mau feitio. Mas com feitio ou sem feitio, tenho para mim que o homem estava certo. O que me cria um problema novo: a frase foi escrita muito antes do libelo a Carlos Cruz. Ou seja, talvez não resida nele a explicação que eu buscava e, assim sendo, este post não tem pés nem cabeça. Ou terá? Em verdade vos digo que não sei.
O que sei resumidamente é isto.
O Sócrates aborrece-me. O Passos maça-me. Cavaco anestesia-me. Quanto ao resto, Portas tem boa voz mas não me encanta; o PCP idolatrou anos e anos a Zita e só isso é quanto basta; por fim, o fracturante Louçã: demasiado beato.
Apesar de tudo e parafraseando o outro, we'll always have Cormac. Melhor dizendo, no country for old ladies que quanto à decadência já Antero falava disso e antes de haver televisão.