Em minha casa foi tudo preso pelo menos uma vez. A qualidade das estadias na cadeia variou muito, com o meu pai a bater o recorde de mais ou menos três anos entre os Fortes de Caxias e de Peniche — o de Peniche, consideravelmente mais húmido.
A história que quero contar diz respeito à minha mãe.
A minha mãe foi levada para a sede da PIDE, local onde se ergue agora um condomínio de luxo com vista, ouvi dizer, sobre um marco de suplícios, exactamente há 40 anos. Foi no dia em que o Oliveira bateu asas e voou, apesar de na altura a Coca-Cola estar proibida e ninguém ainda ter inventado o Red Bull.
A história que quero contar diz respeito à minha mãe.
A minha mãe foi levada para a sede da PIDE, local onde se ergue agora um condomínio de luxo com vista, ouvi dizer, sobre um marco de suplícios, exactamente há 40 anos. Foi no dia em que o Oliveira bateu asas e voou, apesar de na altura a Coca-Cola estar proibida e ninguém ainda ter inventado o Red Bull.
A minha mãe trabalhava então numa editora anti-regime, a "Seara Nova", que a ânsia pelo poder (absoluto) do PC haveria de levar à falência no pós-25 de Abril. Oficialmente, ninguém sabia que o ditador já tinha ido para os anjinhos. Mas a malta não era parva e também tinha informadores.
Alguém chegou à "Seara..." com a notícia fresquinha, testemunhada com estes que a terra há-de comer pela equipa que tratava Salazar desde que este falhara a cadeira. Transposto o cepticismo, que o homem parecia eterno, bateram-se palmas e gritou-se Hurra! Hurra! (esta parte do Hurra! Hurra! sou eu agora a inventar).
A minha mãe dirigiu-se ao telefone e telefonou ao meu pai (que já não era hóspede em Peniche): "Prepara uma garrafa de champanhe, hoje temos que comemorar!" No meio da excitação, uma colega, quase tropeçando nos fios, arranca-lhe o bocal do ouvido e acrescenta: "Acabaram as filmagens do Solar das Oliveiras. À noite há festa!"
O meu pai correu à Baixa a comprar uma gravata vermelha. Não chegou a haver arraial. Passado pouco mais de meia hora, a "Seara..." era invadida por agentes da polícia política que solicitam — sem grandes faz favor ou por obséquio — que a minha mãe e a amiga os acompanhem à sede. Os nomes coincidiam rigorosamente com as vozes sob escuta, e acabam as duas nas instalações da PIDE ao Chiado. Verdade seja dita que lhes serviram jantar.
A minha mãe, sempre desconfiada, recusou educadamente o repasto "não fosse aquilo ter para lá alguma droga!" A amiga, alentejana folgazona que hoje seria catalogada de obesa, comeu e apenas não repetiu porque não quis abusar de tamanha hospitalidade.
A minha mãe trejurou um evento sentimental para justificar o champanhe. A amiga disse que sofria de amnésia e que não se lembrava sequer da última vez que tinha ido ao cinema. Entretanto, a minha mãe devia estar com uma fome dos diabos, e foi quando deu entrada em cena o sempre impecável subdirector Sacchetti (ainda vivinho da costa, pelo menos até há bem pouco estava) que se lhe dirigiu com a costumada eloquência: "A senhora não tem vergonha! Ainda agora saiu de cá o marido e nem isso lhe serviu de lição!"
Agit-prop e lições de moral à parte, quem lhes passou a carta de alforria foi ele, não sem antes invocar repetidamente o sagrado nome do falecido, esse "grande homem de quem já sentimos saudades!"
À porta da António Maria Cardoso esperava-as o meu pai, um pequeno saco na mão. Dentro não havia champanhe. Convencido que a madrugada seria longa para a mulher, juntara à pressa algumas mudas de roupa e julgo que uma escova de dentes. Usava a gravata vermelha, o que a minha mãe considerou certamente um repto desnecessário. Depois a amiga disse que nem se comera assim tão mal e foram comemorar na mesma.
À porta da António Maria Cardoso esperava-as o meu pai, um pequeno saco na mão. Dentro não havia champanhe. Convencido que a madrugada seria longa para a mulher, juntara à pressa algumas mudas de roupa e julgo que uma escova de dentes. Usava a gravata vermelha, o que a minha mãe considerou certamente um repto desnecessário. Depois a amiga disse que nem se comera assim tão mal e foram comemorar na mesma.
Isto agora contado tem graça mas na altura imagino.
9 comentários:
Eu diria, «...mas na altura duvido».
Seria bom que se lembrassem desse tempo difícil e de quem sentia, como parte de si, o dever de revolta. Mas agora o país é dos betinhos democratas com gravata, que logo negarão esse dever se a coisa apertar. Tenha uma boa noite.
ó fallorca, duvidas?!
nd, muito obrigada. a mãe agradece
:)
Devia ter batido as botas 40 anos antes...somos um país marginal e excluido graças a esse tacanho
Loira!!!
«...Isto agora contado tem graça mas na altura imagino.»
Duvido que tivesse qualquer graça. só isso
Maravilhoso, como sempre, este seu texto.
Tomei a liberdade de colocar no meu mural do Facebook um link para este seu post.
Rui, assino por baixo
fallorca, não passas de um peixe loiro que morde todos os anzóis...
:)
David, muito obrigada. a mãe mais uma vez manda agradecer
:)
Euuuuuuuuuuuu? Fiufiu...
O que falta ao pessoal, hoje em dia, são objectivos consistentes. Anda tudo iludido com a TV, os telemóveis, as férias não sei onde, etc
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