30/12/22

PARA MEMÓRIA FUTURA


 

MEDITAÇÂO DE SEXTA: «DA CIDADE E DO CAMPO»

«Se a vida lhe der limões, faça uma limonada, recomendam os aficionados do doutor Pangloss. E agora numa versão pessoalíssima, que me absolvam os vegans irredutíveis: se um vizinho lhe der um galo descabeçado, depene-o!

(...) Mas não seria sequer tema – o tema do galo descabeçado com penas – se não aproveitasse a ocasião para invocar os versos iniciais do conhecido e certeiro poema As Pessoas Sensíveis de Sophia de Mello Breyner: “As pessoas sensíveis não são capazes / De matar galinhas /Porém são capazes / De comer galinhas”.

Há coisas que, parecendo que não, batem sempre certo. Por exemplo. Quando perguntada há dias sobre qual o livro que gostaria de receber de presente no Natal, Catarina Martins, do Bloco de Esquerda, referiu a este jornal Misericórdia de Lídia Jorge, acrescentando: “Presumo que seja emocionalmente duro, mas também por isso mesmo”. E como assim se prova, a distância entre literatura, leitores sensíveis e galinhas sem cabeça não é tão grande quanto imaginar se possa. (...)»

23/12/22

«ATRÁS DOS LIVROS, VÊM LIVROS»

«... Tenho para mim que se a actual ditadura do relativismo gnosiológico teve início há décadas, quando a frase “isso é a tua opinião” começou a ganhar foro de cidadania nos jantares de família ainda os adeptos da teoria da Terra Plana cabiam todos numa garagem aos Olivais em Lisboa, a decadência da crítica acentuou-se visivelmente com a atribuição de “estrelas” aos livros, uma ideia roubada ao star system que, por volta dos anos 20 do século passado, se apercebeu que a promoção da imagem das estrelas de cinema fazia bilheteira. Além de ser uma ideia provecta, permito-me duvidar da sua eficácia no que respeita a literatura. Afinal, que escritor se poderá reclamar do glamour de James Dean ou Grace Kelly, ou mostrar-se capaz de impingir cápsulas de café com a competência de um Clooney? (...)»

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «UF! 2022 CHEGA AO FIM»

 «... Por falar em camelos, se há notícia recente capaz de nos dar a dimensão real do estado a que isto chegou é a do anúncio feito por Donald Trump de que iam ser postas à venda cartas digitais coleccionáveis em que ele próprio, ex-presidente dos Estados Unidos (sublinho, dos Estados Unidos) aparece vestido, entre outras figuras, à John Wayne, Super-Homem, astronauta ou com um modesto fato e gravata. O anúncio foi antecedido de grande expectativa.

Havia quem apostasse que Trump ia finalmente anunciar a sua recandidatura à Casa Branca, cogitou-se que anunciaria o fim da guerra na Ucrânia para o Natal, alguns ufólogos trumpistas garantiam que iria reconhecer em público ter sido raptado em pequenino por extraterrestres e daí os seus superpoderes. (...)»

16/12/22

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «É A VIDA»

 «... Um parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (sublinho: do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e não do Episcopado Católico Português…) levanta pertinentes e fundamentadas questões [no que respeita aos projectos-lei sobre a morte medicamente assistida]. (...)

 Terminada a leitura do parecer (parecer 116, [respeitante aos projectos-lei sobre a morte medicamente assistida] disponível online no site do CNECV), ressurge a atanazar-me, qual mãe de Woody Allen no céu de Nova Iorque, o debate sobre o famigerado Acordo Ortográfico que resultou na sua aprovação pelos deputados da República — apesar de todos os sinais de alarme e críticas devidamente sustentadas e especializadas —, teimosia cingida por um clima insuflado de fanatismo em que os críticos da decapitação a eito das consoantes mudas eram acusados de conservadorismo serôdio e mimoseados com a invectiva de “Cambada de Velhos do Restelo!”, enquanto os seus defensores brandiam o antigo PH de farmácia (desprezando o facto do antigo PH, lendo-se F, em nada alterar a fonética…) com a mesma exaltação com que se imagina os antigos Cruzados branderiam a cruz de Cristo. Tristezas! (...)»

02/12/22

MEDITAÇÃO DE SEXTA: «E A MELANCOLIA TOMOU CONTA DA CRONISTA»

«... Embora não existam livrarias seja qual for o ponto cardeal para onde me vire, vou mantendo contacto com os livros. Confesso que a maioria me deixa indiferente. E sim, não são poucas as vezes que sinto pena das árvores.

O sentimentalismo, dissimulado por uma carreira literária – seja isso o que for –, ou visivelmente primário – ambos abertamente mercantis – convoca Baudelaire que, a propósito do processo movido a Les Fleurs du mal, corria o ano de 1857 – há quanto tempo! – concluía que só se devem escrever livros virtuosos e com finais felizes.

E perdoar-me-á o leitor desta crónica a falta de actualidade da mesma. Quem diz actualidade, diz foco, palavra ainda assim mais aceitável do que “focalização”.

Claro que temas não faltam. O Qatar continua na ordem do dia. Têm sucedido revoltas na China, com os chineses a fartarem-se – apesar da sua renomada e milenar paciência – da política de Covid Zero, fora o resto. António Lobo Antunes publicou recentemente um novo romance (ainda não li). Evidentemente, há o tema intemporal do Acordo Ortográfico que veio esfrangalhar de tal maneira a língua que o português de Portugal corre o sério risco de se vir a transformar numa versão abastardada – e sem graça – do português do Brasil.

Se eu tivesse um décimo do talento de Eça de Queirós, já teria inventado, ou reinventado, um bei de Tunes. Afinal, não há cronista que um dia, pela manhã, não sonhe em ouvir bater-lhe à porta o bei de Tunes. (...)» 

01/12/22

EDIÇÃO & TAL.

Aquela cena de calarem a Ursula no vídeo e lhe colarem o discurso com nova edição lembra um bocado a história dos tipos que o Staline mandava tirar das fotografias.

Calma! Não se enervem já. Eu sei que há diferenças. Normalmente os tipos que o Staline mandava apagar das fotografias já tinham morrido e a Ursula continua viva e nos nossos corações.

CENAS IBÉRICAS VIVIDAS NO MONTE

Hoje acordei e da cozinha vi o carro do meu querido vizinho atravessado na rua junto ao forno a lenha a precisar de restauro, estacionado no sentido contrário. Ele nunca entra pela parte de baixo da rua, na verdade uma minúscula viela onde só circulam cães e gatos, dá habitualmente a volta e deixa-o na direcção oposta. Quando o abandona assim, de rabo virado à lua, é sinal que já lhe tolda a visão e lhe emperram as mudanças. 

Quando dei pela coisa, pensei: "Ah! Homem! Isso ontem deve ter sido tão tamanho que hoje os rins se te colaram às costas, as costas ao colchão e bem podem esperar por ti lá nas obras que o Sísifo que carregue as pedras..."

Naturalmente, o pensamento não foi assim tão elaborado como agora o registo porque não tinha tomado café. Ainda.

Chegada ao café, as habituais picardias e comento: "Então o M. nem se conseguiu levantar!"

Lá me lembram que, sendo embora o meu raciocínio isento de desacerto, em defesa de M. se registe que o dia de hoje é feriado. O tal 1º de Dezembro em que tiveram a infeliz ideia de defenestrar o traidor enquanto a Duquesa de Mântua se enfiava num armário. 

Entretanto, por aqui e por fim choveu. E como dizem os espanhóis: "A mal tiempo buena cara". E como eu gosto de espanhóis, minhas senhoras e meus senhores!