O mundo virado do avesso e o Bloco de Esquerda quer discutir a eutanásia. O tema é escorregadio. Desperta temíveis fantasmas — logo, logo, o Aktion T4 nazi — e termina nas assépticas clínicas actuais onde a morte chega em celofane a troco de um cheque chorudo.
“A morte é uma puta”, desabafou António Lobo Antunes quando sentiu a morte a rondá-lo. A eutanásia seria, assim, uma espécie de puta de luxo, nos antípodas da ceifeira cadavérica retratada pelos Monty Python em O Sentido da Vida.
O argumento mais usado pelos defensores da eutanásia relaciona-se com a questão do sofrimento inútil, chegado o momento em que a expressão “enquanto há vida há esperança” perde sentido. Os opositores (deixando de lado a contestação religiosa…) invocam sobretudo o precedente aberto pela sua descriminalização.
Neste assunto, como em outros, Esquerda e Direita divergem. A última quase sempre por razões de fé, a primeira invocando razões de autonomia: o direito a uma morte digna.
Posso perceber ambas. Mas, lá pelo meio, algo me escapa: o fascínio pela legislação da Esquerda.
O Estado que tudo controla. O que se come, o que se bebe, o que se fuma… A vida privada cada vez mais enredada em regras, normas, artigos, regulamentos e adendas.
Algures pelo mundo, burocratas paranóicos vão ajustando a realidade aos seus delírios — dos babás ao rum que já não podem levar rum, às colheres de pau que passaram a ser de plástico. Interrogamo-nos: que raio de tipos serão estes que se lembram de criar leis sobre tais coisas?
O resultado está à vista: não andamos mais felizes. A paranóia alarga os seus tentáculos e um italiano é preso na Suécia por dar uma estalada ao filho; enquanto isso, as redes de pornografia infantil somem e seguem (a Casa Pia, topam?). Vivemos em regime esquizofrénico.
E a eutanásia no meio disto? Bom, a eutanásia é assim. Pela parte que me toca, gostaria que o Estado não se metesse na minha morte. Sei que não é simples, mas deveria bastar para começo de conversa.
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20 comentários:
"Posso perceber ambas. Mas, lá pelo meio, algo me escapa: o fascínio pela legislação da Esquerda.
O Estado que tudo controla."
Não é a esquerda que legisla sobre a vida íntima, uma vez que propõe legislação, não para controlar mas para permitir que cidadãos de qualquer género, orientação sexual e religião possam exercer os seus direitos, que quase sempre se opõe a direita.
Neste caso não se quer obrigar as pessoas a cometerem eutanásia, mas passarem a ter mais uma escolha.
Lembro-me de ouvir na TV a José Cardoso Pires, que saía do hospital, já no fim da vida: "Deviam ajudar uma pessoa a morrer com dignidade." E a dignidade aqui era apagar-se com uma injecção e sem medo. A eutanásia deveria ser um direito assegurado sempre que houvesse evidência inequívoca do desejo de assim morrer.
Parabéns.
Tocou exactamente no ponto me faz, já bem passado dos 50 anos, achar aberrante ser de esquerda.
"Esquerda e Direita divergem. A última quase sempre por razões de fé, a primeira invocando razões de autonomia".
Não sei se é por razões de autonomia, que se poderiam também chamar de razões de liberdade.
A mim, parecem-me razões de moral. A esquerda acha imoral não ter a liberdade de escolher quando e como (abstraemo-nos das limitações que a natureza coloca) morrer. Como acha imoral ser impedido de exercer livremente a sua orientação sexual. Mas acha imoral a liberdade de exercício de actividade económica. Acha que esta liberdade conduz à libertinagem, ao abuso, e deve ser regulada. Receio partilhado pela direita no domínio da liberdade sexual, ou de morrer quando se entende, que também considera que devem ser reguladas para não cair na libertinagem. Por razões de moral. Não necessariamente de fé, mas certamente de moral.
Não é o respeito pela autonomia, ou pela liberdade, que distingue a direita da esquerda. É o quadro de referência moral que é diferente. Naquilo que receiam que a liberdade resulte mal, correm os dois a substituí-la pela regulação pelo Estado.
Pelo que também seria aberrante, já bem passado dos 50 anos, ser de direita.
Quem gosta de liberdade não pode ser de esquerda nem de direita.
A eutanásia é proibida, o exercício da actividade económica é permitido e não vejo como poderia deixar de o ser. É uma falsa questão, uma confusão, objectivamente um desvio que cerceia a liberdade individual que não fere o colectivo. Não vejo de que modo a morte por eutanásia possa ser imoral, desde que rigorosamente regulamentada, se a sua decisão pertence ao foro íntimo de cada um e não à doutrina da ICAR, que agita no caso o quinto mandamento. Porque aqui é que está a questão. NÃO MATARÁS. Um argumento medieval, uma sinédoque abusiva. Quem gosta da liberdade (a real e não a programática) tem que ser, além de justo, inteligente, para não confundir a sua própria visão política e religiosa com justiça.
Não matarás, um argumento medieval, uma sinédoque abusiva?! Essa escapa-me completamente.
É que eu que pensava que a coisa era mais antiga...
Pedro M., quase me apetecia responder-lhe: qual escolha? Mas isso levar-nos-ia para demasiado longe.
nd, acho que depois disso o Cardoso Pires ainda escreveu um livro, não foi?
Manuel, em matéria de moral sou muito rígida. Tenho 2 ou 3 princípios inflexíveis. Os outros, como diria o Groucho Marx, "se não gostarem arranjo outros". E mais a sério: o que seria de nós sem moral?! E sim, a moral discute-se e não vale toda o mesmo. No limite, se a espécie humana não fosse o que é, o anarquismo seria a melhor solução.
Ana
Engana-se repetidamente.
1º
Não é a esquerda que legisla. A eutanásia está legalmente proibida PELA DIREITA.
2º
Não me retire o direito a uma morte digna, se a vida não a permitir.É UM DIREITO MEU que me está a ser retirado por uma lei da direita.
3º
Como é que você consegue ver semelhanças entre a eutanásia e um tabefe?
Não percebe que o crime de ofensas à integridade física nada tem a ver com o caso, e a lei nunca poderá suprir a estupidez de um juiz?
Pois suponha ou mesmo fique certa de que sou um zero no Velho Testamento. Mas como não vim aqui de má-fé (nem a cabeça se me confunde ou necessite cantar de alto), explico o que estou certo entendeu. A moral fundamentada na doutrina, no nosso caso católica, é politicamente retrógrada, condiciona o bem-estar humano a um pensamento arcaico (medieval, milenar, etc. não discerniu a metáfora, disse). Também afirmou não ter entendido que é um abuso tomar a parte - isto é, os proibidores da eutanásia apoiados numa base político-religiosa - pelo todo, que é sociedade inteira, que inclui aqueles que, no fim, desejam uma morte assistida. Porque é a estes que a morte diz respeito e a mais ninguém. Intrometerem-se nela é o último abuso. Daí a sinédoque abusiva. E ainda outro abuso, de resto dado conta no seu post: então uns morrem em paz nas tais clínicas e outros nos hospitais públicos, a pensar que vão arder no Inferno?
Sim, José Cardoso Pires, ainda escreveu De Profundis. Mas depois, na vez seguinte, não o ajudaram a morrer.
Ana,
Eu em questões de moral também sou muito rígido. Mas, sem cuidados excessivos de precisão matemática, tenho um único princípio inflexível: a minha (nossa) liberdade deve ter por limite apenas a limitação da liberdade de outros. Quando há conflito entre liberdades, arbitre-se (o Estado pode servir para isso, não tenho nada a opor).
O problema não está no moral, nem na sua variedade. O problema está quando se legisla com orientação moral, com um objectivo moral. Não só se ofende a liberdade dos que não partilham do princípio moral subjacente a cada lei específica, como normalmente o resultado da existência da lei é contra-producente relativamente aos objectivos que a motivaram (suponho que não vale a pena ilustrar, mas posso ilustrar se alguém sente necessidade de ver a coisa concretizada).
Para tranquilizar outros comentadores, sendo mais claro, que se deixe morrer antes da sua hora quem quer morrer antes da sua hora, e que se deixem em paz os que ajudam nessa morte desejada. Por sofrimento, ou apenas por (livre) vontade.
henriquedoria, o que não é digno é os velhos morrerem como cães (lançados para lares/canis municipais ou de luxo), ou apodrecerem nos corredores dos hospitais de bocas abertas e tortas. Essa conversa da morte digna porque nos dão uma injecção (será atrás da orelha?) é uma treta na minha modestíssima opinião. Uma civilização que inventou "lares para a terceira idade" bem pode limpar o cu (pardon my french) à morte digna. Dignos eram os índios que iam sozinhos esperar a morte.
Então como se há-de esperar a morte, senão sozinho? A morte é o acto mais solitário da vida. E os velhos nos lares, como diz, não pensam, não poderiam escolher? Morte digna - que veio a propósito do que disse José Cardoso Pires - é por medo não capitular à porta do Inferno ou às mãos de Deus, como queira. Parece não abranger esta situação quando fala dos índios, uma sociedade que não questionava, como hoje a nossa, as bases de carácter religioso sobre que assentava. A morte assistida corta o medo prolongado de morrer, tão usado pelos ministros divinos como fonte de poder.
Desculpe voltar à vaca fria. Morte digna não é treta nenhuma. O poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto que, pelo menos de nome, deve conhecer, era um velho ateu empedernido, e, na hora de morrer, borrou-se como uma criança de colo: converteu-se. Esta foi uma morte indigna. O contrário, com os mesmos pressupostos de vida, é uma morte digna. Isto não são palavras, são atitudes.
"O problema não está no moral, nem na sua variedade. O problema está quando se legisla com orientação moral, com um objectivo moral."
ACL, pois, dignos deviam ser os índios, que (provavelmente) após uma vida bastante mais saudável do que a nossa (ocidental), aventuro-me a adivinhar que morriam já muito velhinhos (haverá estatísticas?), sem aquela terrível doença que é o cancro (por exemplo), que nos faz sofrer meses a fio, ou a esclerose múltipla, só para citar doenças comuns entre nós os ocidentais, "vítimas" da fartura e do sedentarismo.
Se eu tiver a certeza que vou morrer mesmo muito velhinha, de corpo muito cansado, apagando-me sem dor... Quem me dera morrer a dormir. Ou então, morrer a meditar, como o pai do médico indiano, Deepak Chopra, que disse: vou morrer. Pôs-se a meditar e morreu, velhinho, enquanto meditava. Assim. Sem mais nem menos.
Mas eu não tenho essas certezas e tenho pavor à dor física, ao confinamento à cama, à dependência dos cuidados dos outros. Sei bem o que tudo isso é. Conheço bem a logística. Já vivi o suficiente para o saber.
Portanto, antes que seja tarde, acho muito bem que protejam (com legislação) quem quiser morrer assistido. Não me interessa de quem vier a proposta de lei. Não sou contra o suicídio.
F, eu também não sou contra o suicídio
Volta
Volta a confundir as coisas: os lares não são degradantes em si. São-no por aquilo que fazem deles: depósitos de caricaturas de seres humanos.
Mas certas casas de filhos ainda mais degradantes.
É por uns e por outros( lares e casas degradantes) que a eutanázia deve ser legalizada.
Dêem-me a beber cicuta quando me tornar numa caricatura de mim mesmo se eu a não conseguir beber por mim mesmo.
Sócrates também a bebeu
@ACL
"Qual escolha?"
A escolha pela morte assistida legal.
Como é que a esquerda está errada em criar "legislação sobre a vida íntima" quando o que é proposto diz respeito a trazer mais liberdade e igualdade na legislação?
Descriminalização do aborto, união civil dos cidadãos do mesmo sexo, educação sexual e acesso a contraceptivos são tudo coisas em que era preferível existirem somente na clandestinidade, para não "legislar sobre coisas íntimas"?
"Não habia nexexidade"...
Ana Cristina, eu queria que um dia o meu amor me desse uma injecção. Atrás da orelha não, que não é eficaz. Quando? Num momento que deixei definido, num documento que gravei. Se o meu amor não tiver coragem ou não estiver para isso pode ser qualquer pessoa, desde que saiba a dose e use luvas descartáveis.
Ora bem, Luís, é por isso que gosto de si. Porque vai sempre ao essencial.
http://marsalgado.blogspot.com/2010/12/depressao-repressao-xxii-antecipar-o.html
1 de Dezembro de 2011
"Se eu tiver Alzeimer e o sol me bater na cara e eu não sentir prazer, estiver (hipótese altamente improvável) com o homem que me ame e o estiver a fazer sofrer lentamente até ao desespero por não o reconhecer e por ter que me trocar a fralda até a exaustão. Eu queria que alguém tivesse a coragem de me dar uma dose letal de potássio. Eu queria, muito.
Isto é ser digno na morte.
Mas julgo que não acontecerá.
A discussão mais fácil está em 3 aminas, ventilação assistida e critérios de morte cerebral, se os amam deixem-nos morrer.
...henedina
"Sem ser essa mariquice de morrer a dormir, como é que preferia morrer?"
Depressa e Bem!
Subscrevo na íntegra a "Morte" da Filomena Mónica.
E se eu não pedi para nascer, concedo-me o direito de pedir para morrer se o meu estado for irreversível.
E já disse à família que: livrem-se de me ligarem a máquinas... rogo-vos uma praga de todo o tamanho (do inferno, já que o paraíso reserva-se o direito de admissão a uma desalmada como eu)
E pronto, é assim.
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