26/03/10

O caso Carrilho ou Portugal transformado no país da Alice mas sem as maravilhas

Há uns meses, Manuel Maria Carrilho recusou-se a seguir instruções. O Ministério dos Negócios Estrangeiros queria que ele votasse no egípcio Farouk Hosny — um militante anti-semita e pirómano de livros — para director-geral da Unesco.
Como as indicações de Amado lhe eram abomináveis, Carrilho ausentou-se da votação e fez-se substituir nesse dia. E como de quando em vez há justiça neste mundo, o governo socrático levou banhada e Farouk Hosny foi chumbado na mesma.
Corre, entretanto, a notícia que Carrilho terá os dias contados na Unesco e que pensam afastá-lo.
Face a essa possibilidade, tem vindo a assistir-se a uma curiosa inversão de valores. Muitos dos que na altura haviam apoiado a atitude do embaixador vêm agora dizer que o governo tem toda a legitimidade para demiti-lo porque, basicamente e postas de lado as nuances argumentativas, “em diplomacia não há estados de alma”.
A frase é de efeito e cumpre-o. Possui aquela gravitas das máximas catedráticas com montes de pedigree.
Se Carrilho não concordava, devia ter-se demitido; o governo tem de ter funcionários de confiança (que não questionem ordens?); a comparação com Aristides Sousa Mendes é um disparate porque compara o incomparável. E etc.
Talvez fosse bom lembrar que as “razões de consciência” invocadas então pelo ex-ministro da Cultura foram aceites pela tutela; este fez-se substituir e Portugal votou conforme (vergonhosamente) decidira.
Talvez fosse bom lembrar também que os funcionários do Estado (incluindo os diplomatas) não são meras correias de transmissão do poder. Que o quem não está por nós está contra nós arrasta uma história miserável. E, já agora, que Carrilho insistiu na altura explicando as suas razões e que se o tivessem ouvido o enxovalho português teria sido evitado.
Finalmente, talvez fosse bom lembrar que Aristides Sousa Mendes fez exactamente o mesmo, discordou activamente — com a diferença (que não muda o essencial do gesto) de tê-lo feito numa situação histórica mais grave e durante um governo salazarista e não socrático; e que há hoje milhares de pessoas que devem o facto de existir a esse “estado de alma”. Ah, e já agora, que também não se demitiu — foi demitido.
A reacção à notícia do eventual afastamento de Carrilho parece-me tão-só mais um exemplo do formalismo estéril que vem dominando a política cá do burgo, a transbordar de parvenus da democracia apetrechados de uma lógica sofística, maquiavélicos de pacotilha civilizados na forma, gente que faz da política uma dança de salão.
A verdade é que, se isto fosse um país (a) sério, em vez de andarmos a discutir as pressões telefónicas de Sócrates aos directores dos jornais, o primeiro-ministro teria ido ao Parlamento responder pela indicação de Farouk Hosny.
Em Portugal, porém e infelizmente, à lagarta da Alice só servem drogas maradas.

8 comentários:

Carlos disse...

Nem mais. Aliás, escrevi anteontem no meu espaço: «(...) os diplomatas, em certas circunstâncias, devem ter 'estados de alma', custe isso o que custar. Quantas vidas se teriam perdido se este diplomata [Aristides de Sousa Mendes] não os tivesse tido?»

jpt disse...

Não compreendo a razão de reduzir uma decisão (ponderação) política a um "estado de alma".

Ana Cristina Leonardo disse...

jpt, porque a frase é de efeito e cumpre-o? Porque possui aquela gravitas das máximas catedráticas com montes de pedigree?

Inês disse...

Há um ano que leio, sem opinar, porque repeito, porque são raras as emoções, é só assim o frio esclarecer... Obrigada, fosse assim a realidade plena!
Bom fim de semana!

Ana Cristina Leonardo disse...

Inês, muito obrigada por me aturar há tanto tempo e ainda por cima calada! Bom fim-de-semana para si também

Xantipa disse...

Olá,

Depois de ter escrito sobre isto no meu blogue (o que não é comum), vim comer uma bola de berlim (não o fazia há um tempo) e encontrei este post.
Muito bom.
Obrigada!

Anónimo disse...

Como é possível não terem percebido logo que o Manuel Carrilho tinha razão? Até eu (sem inteligência ministerial) percebi na altura. Questão 2, mais subtil e a discutir: queimar livros é pior do que guilhotiná-los.

Ana Cristina Leonardo disse...

1. Por causa da realpolitik, essa coisa que ao longo da história tem servido para virar as costas a muita merda
2. A discutir, sim, embora, como digo no post, eu não fosse capaz de guilhotinar nem O Segredo (mas a lógica que presidiu na Leya também nunca levaria a que guilhotinassem essa obra-prima...)