19/03/10

E por falar em folhetim [vide post anterior] quando uma boa prosa é um boa prosa é uma boa prosa

Confesso com desgosto que a falta de tempo não me tem permitido acompanhar a nova telenovela da TVI. É unânime que o nível das telenovelas portuguesas tem subido drasticamente nos últimos anos. Mas subiu no sentido em que sobe o nível das águas, deixando a povoação de Reguengo do Alviela isolada. Hoje, o horário nobre está rodeado de telenovelas por todos os lados e não há protecção civil que nos valha. É certo que temos o Mário Crespo, mas o homem guardou a melhor actuação para a AR TV e não aprecio o papel que ele representa no noticiário, a fingir que é imparcial e isento. Achei o indiano do Rogério Samora muito mais convincente. Ontem, por acaso e porque o Barcelona já estava a dar quatro ao Estugarda, dediquei alguns minutos à telenovela Mar de Paixão. Tentarei resumir o enredo: Paula Lobo Antunes é a protagonista. Fala como uma personagem da TVI, move-se como uma personagem da TVI, pensa como uma personagem da TVI mas, garantem-nos os adereços (bóias, redes de pesca e um fogão antigo e imaculado) e alguns passeios à beira-mar, é pescadora, da zona de Setúbal, embora não carregue nos erres (falha imperdoável do guionista). Comunidade piscatória, Setúbal, começa a fazer lembrar aquela telenovela em que separaram o Caniço da sua masculinidade. No entanto, Paula Lobo Antunes não corre o risco de uma excisão. Ela precisava de um coração novo. E arranjou-o. A anterior proprietária do coração morreu num acidente. A rapariga era noiva de José Carlos Pereira e filha de Rogério Samora, fatalidades que atingem praticamente todas as personagens femininas das telenovelas da TVI. Os cenários até podem mudar (Douro, Açores, Alentejo) mas, num determinado momento da narrativa, a rapariga sabe que ficará noiva de José Carlos Pereira e descobrirá que é filha de Rogério Samora, ou vice-versa. A esta, coube-lhe o duplo infortúnio e, como se a quisesse poupar a padecimentos suplementares, o guionista dá-lhe o golpe de misericórdia. A partir daqui, o objectivo do guião é encontrar uma noiva para José Carlos Pereira e uma filha para Rogério Samora. Como o coração vai parar à personagem de Paula Lobo Antunes, já se sabe o que aí vem. Porém, o caminho até esse desfecho é longo e pavimentado de metáforas cardíacas: “o teu coração é novo, mas a bondade é a de sempre”, entre outras subtilezas poéticas. Nesta fase pré-noivado com José Carlos Pereira, Paula Lobo Antunes apaixona-se por um golfinho: “se calhar a pessoa que me deu o coração era tratadora de golfinhos”. Não era, mas era noiva de José Carlos Pereira, um actor muito menos expressivo do que qualquer golfinho e do que a maioria das alforrecas que costuma invadir a praia de Sesimbra. O episódio de ontem terminou com o golfinho na praia, emaranhado em redes de pesca e com um ar de sofrimento muito realista. Não ponho de parte a hipótese de ter sido agredido por um José Carlos Pereira movido pela inveja. Eunice Muñoz também participa na telenovela. É a matriarca da comunidade piscatória (chama-se Ti’Alice) mas fala como se fosse a Eunice Muñoz com as roupas de matriarca de uma comunidade piscatória: “esta é nossa família, à qual vocês também pertencem”. E não se fica por aqui: “lá está o rapazinho que não anda, ali, sentado numa cadeira de rodas” e a câmara, para provar que da boca da Ti’Alice só saem verdades, mostra o rapazinho que não anda, sentado numa cadeira de rodas. Era bem possível que, sendo esta uma vila de pescadores (ICHTUS, que em grego significa peixe, acrónimo de Jesus, etc), a Ti’Alice pudesse dizer “lá está o rapazinho que não anda, a correr pela praia”, mas o único milagre a que temos direito é a um advérbio de modo proferido pela personagem de Helena Laureano: “sabes que eu trabalhei arduamente” (isto provavelmente é da telenovela da SIC, fiz zapping). Nas telenovelas ninguém trabalha como uma cadela, como uma moura ou como uma galega. Trabalham arduamente, ao contrário de alguns guionistas.

4 comentários:

CNS disse...

Gostei especialmente da parte do golfinho. Pareceu-me ser a personagem mais densa.

fallorca disse...

Ai, rapariga, tu das-me cabo da vista! Mas leio-TE, custa, mas leio, fiufiu...

Reflexos disse...

Outra novela??? Afinal quantas são?
è a de MAcau, a dos Arcos, a não sei bem onde com a Alexandra lencastre e agora esta?
Isto é maratona...

Anónimo disse...

Obrigado, Ana


Bruno Vieira Amaral