06/08/09

A book a day keeps the doctor away

Nasceu no mesmo dia e no mesmo mês do que eu (e do que uma das personagens de "Bullet Park"): será isso uma curiosidade que só a mim interessará. Assinalo-a, naturalmente, porque o norte-americano John Cheever (1912-1982) foi um mestre. Tivesse sido ele um escritor medíocre e evitaria o assunto.
"Bullet Park", considerada uma das suas obras mais conseguidas, mistura com brilhantismo lirismo e ambiente noir, experimentalismo e técnica realista. Ao longo das quase 200 páginas do romance, Cheever consegue a proeza de tanto nos lembrar a delicadeza de Chekhov como a crueldade de Patricia Highsmith; o sensualismo de John Updike e o rigor minimal de Edward Hopper.
Precisamente Updike, de quem foi amigo, classificá-lo-ia como o maior estilista da sua geração. Brilhante na narrativa curta (obrigatória a leitura dos seus "Contos Completos", cujo Volume I foi traduzido já este ano pela Sextante), Cheever mantém em "Bullet Park" o mesmo gosto pelos mistérios inesperados dos subúrbios, dos quais foi retratista exímio.
Elliot Nailles e Paul Hammer (note-se a brincadeira entre a sonoridade de nailles, similar a pregos, e hammer, de martelo) são as personagens condutoras da acção. Conhecem-se em Bullet Park, e o segundo não é exactamente o que parece.
A vida monótona de Bullet, que quase lembra a de uma aldeia, com homens casados a viajarem diariamente de comboio para o trabalho, esperando-os no lar donas de casa, tranquilas umas, outras desesperadas, será abalada pela chegada de Hammer. Não de imediato. Só na Parte II nos aproximaremos mesmo da tragédia, que será anunciada ao leitor sem grandes cerimónias.
Vidas duplas (a bissexualidade de Cheever podia ser agora invocada, mas as explicações biográficas pouco mais são do que precárias e pretensiosas), crises existenciais, comportamentos fora das regras, tudo isto sob um fundo de normalidade burguesa que pode tornar-se explosiva. Embora a contenção defina o tom. Porque mesmo a maior violência é descrita com uma mansidão que lembra, de facto, aqueles tempos evocados por Cheever no prefácio a "Contos Completos", em que "quase toda a gente usava chapéu". Cheever não é, porém, um moralista. É só que, terá ele percebido, a condição humana ultrapassa em muito a filosofia sonhada por Horácio. Nada de novo, portanto. Apenas um enorme talento pictórico, um humor corrosivo e moderno, uma imaginação atenta ao real e uma preocupação extrema com a "palavra justa". Ou seja, muito bom.

John Cheever, Bullet Park, Relógio D'Água, 2009

4 comentários:

Anónimo disse...

Então a menina é signo Gémeos?! Hum, estou a perceber...

Pedro Correia

Ana Cristina Leonardo disse...

Pedro, o menino não está a perceber nada. Como diria a grande Maya, o ascendente é muito importante.
Mas fico contente se a conclusão, embora astrológica, resultou da leitura do Cheever. É um grande escritor.

fallorca disse...

Obrigadinho por mais um «rombo» no orçamento. Gira, essa coincidência, ou não as há, como diria a loira?

Táxi Pluvioso disse...

O doctor não sei, mas o oftamologista vem our way.