24/04/08

Pois, amanhã é 25 de Abril

Decorridos 34 anos do golpe militar que pôs fim ao Estado Novo (durante o qual colunas rebeldes obedecem ordeiramente aos sinais de trânsito, segundo relato do capitão Salgueiro Maia), as comemorações da data tendem paulatinamente a confundir-se com as do 5 de Outubro, se não no calendário pelo menos na pompa e numa ou outra circunstância. Com uma diferença: do 25 de Abril há um pouco mais de sobreviventes.
As do ano passado chegaram assombradas pela entrega da medalha de ouro a António Oliveira Salazar no concurso televisivo Os Grandes Portugueses. As interpretações sociológicas, políticas e ideológicas do facto foram muitas e variadas. Uns defenderam, simplesmente, que o natural de Santa Comba Dão não devia estar na lista; outros desvalorizaram o resultado, considerando-o inexpressivo (contas feitas, se o vencedor chegou aos 41% e o número total de votos contabilizados não ultrapassou os 159.245, então, estiveram com ele apenas 0,6% da população portuguesa).
Houve quem falasse em manifestação de protesto, sem vínculo salazarista, pelo rumo actual do país; quem ficasse mais chateado pelo segundo lugar de Cunhal do que pelo primeiro de Oliveira; e alguma extrema-direita, mesmo cantando vitória, anunciou considerar o programa uma ofensa à História de Portugal (curiosamente, alguma esquerda disse o mesmo).
Por fim, houve quem viesse lembrar que o homem tinha vencido um concurso, não tinha ganho eleições.
O que seria, aliás, uma impossibilidade. Morreu há 37 anos, a 27 de Julho de 1970, e mandou oficialmente no país entre 1932 e 1968. Nesse ano passou o testemunho ao discípulo Marcelo Caetano, e apenas porque a tal cadeira resolveu pregar-lhe a partida de se encontrar fora do sítio. À queda, grave, sobreveio, operado e refeito do susto, uma hemorragia cerebral.
Incapacitado, vive até ao fim na residência oficial numa grotesca encenação do poder que já não tem (segundo Fernando Dacosta, por sugestão da governanta Maria). Ministros e acólitos prestaram-se ao enredo, visitando-o e dirigindo-se-lhe como se do Presidente do Conselho se tratasse ainda. E enquanto em Portugal decorria esta farsa caseira, lá fora Luther King era assassinado em Memphis, rebentava a guerra do Vietname, Paris enfrentava a intempérie de Maio e em Praga acabava a Primavera, Bobby Kennedy era baleado em Los Angeles, Nixon chegava a Presidente dos EUA, Neil Armstrong pisava a lua, Beckett ganhava o Nobel, os Beatles zangavam-se de vez, etc., etc., etc. O mundo mantinha o seu curso imparável; por cá chegava ao fim o reinado da referida Maria.
Não se pense, porém, que tudo era mau. Até final dos anos 60, Portugal manteve-se, em muitos aspectos, na pole position dos países europeus ocidentais (ver António Barreto, «Mudança Social em Portugal: 1960-2000», in Portugal Contemporâneo, coordenação de António Costa Pinto, Dom Quixote, 2004).
Assim: era o único império colonial sobrevivente; podia orgulhar-se de exibir o ditador com mais anos no poder; apresentava as mais altas taxas de analfabetismo e mortalidade infantil; o menor número de médicos e enfermeiros por habitante; o mais baixo rendimento por habitante; a menor produtividade no trabalho; o menor número de estudantes no ensino básico e superior; o menor número de pessoas abrangidas pelos sistemas de segurança social, a menor industrialização e a maior população agrícola.
No fundo, no fundo, números à parte, tratava-se de um paraíso verde. Além das paisagens bucólicas e das viúvas de portentos buços, havia Fátima, havia fado e havia futebol. E no que toca a futebol, Eusébio era o mais que tudo. Tão mais que tudo, que Salazar lhe vetou a carreira internacional, informando-o, tão simplesmente, de que ele era «património do Estado».
Só os portugueses em crise de meia-idade, ou já refeitos dela, se podem lembrar de como era antes. E a verdade é que tinha pouca graça. Antes. Claro que nos podemos rir hoje da licença de isqueiro, obrigatória desde os anos 30 e só abolida em Maio de 1970 pelo decreto-lei 237/70. Claro que mesmo os incondicionais de Chomsky ou Michael Moore já não terão de ir ao Ultramar para beber um gole pecaminoso de Coca-Cola, só comercializada entre nós a partir de 1977. Em Portugal Continental, como se dizia, fora proibida nos anos 30, dela só sobrando a prova dos dotes publicitários de Pessoa que lhe inventara um slogan: Primeiro estranha-se, depois entranha-se.
Podemo-nos rir, ainda, do Decreto-Lei nº 31247 de Maio de 1941, que regulava o uso do fato de banho, zelando pela moralidade pública (...) no sentido de evitar a corrupção dos costumes, e que obrigava, para elas, a fato inteiro sem descobrir os seios, com costas decotadas sem prejuízo do corte das cavas ser cingido na axilas e, para eles, a calção com corte inteiro, justo à perna e reforço da parte da frente, e justo à cintura cobrindo o ventre, regras a que os cabos de mar tiveram de começar a fechar os olhos quando, na década de 60, turistas bem menos atafulhados de roupa desataram a invadir o Estoril e o Algarve.
Continuamo-nos a rir desta obsessão moralista e bafienta (que fez do iconoclasta José Vilhena o autor mais censurado do antes 25 de Abril), com as calças proibidas às raparigas nos liceus e as gravatas obrigatórias para os rapazes, mais as portarias camarárias em prole do decoro vigente. O escritor Luís Sttau Monteiro, cujo pai foi embaixador em Londres até 1943, ano em que bateu com a porta a Oliveira Salazar, contava que, criança, numa audiência a que assistira, o ditador reparara nas suas botas e lhe perguntara onde as comprara. Quando lhe respondeu que fora em Londres, este comentara: Modernices! Modernices!
O sorriso começa talvez a amarelecer quando nos lembramos das cargas da polícia de choque, como as do Verão de 1969, nos Salesianos do Estoril (num festival que misturava bandas rock e os chamados cantores de intervenção), apesar da forma pícara como José Cid recorda os acontecimentos: uma das cenas mais impressionantes foi a polícia batendo num grupo de turistas japoneses. Quando os policiais começaram a agredir os jovens, que estavam ali pacificamente, numa de música, os japoneses puxaram das máquinas fotográficas e começaram a tirar fotografias; assim que a polícia viu aquilo... máquinas para cá. O sorriso desmaia à medida em que recordamos o milhão e meio de imigrantes obrigados a dar o salto, entre 1960 e 1973, sangria de pobres que o escritor José Cardoso Pires resumiria de forma lapidar: Da minha terra natal tenho uma definição simplista: deserto de Pedras, Padres e Pedintes. Aldeia emigrada, portanto.
O sorriso já se foi por completo quando chegamos aos cerca de 10 mil soldados mortos na guerra colonial e, ajudados pelo livro de Ferreira Fernandes Lembro-me que… (Oficina do Livro, 2004), nos lembramos, também nós, dos poucos ou nenhuns direitos das mulheres cujas vidas valiam penas de dois anos, como a aplicada a Adélio da Custódia pelo assassínio da mulher Maria Pais Pimenta, explicada assim pelo juiz corregedor do Círculo Judicial de Viseu: Porque se justifica perfeitamente a reacção do réu contra a mulher adúltera que abandonou o lar, o marido e dois filhos de tenra idade, para seguir um saltimbanco.

E sem motivo aparente vem-nos à cabeça o drama privilegiado do poeta Alexandre O’Neill, que em Nora Mitrani encontrara l’amour fou. Uma francesa de passagem por Lisboa espera agora por ele em Paris, mas a PIDE nega-lhe o passaporte e O’Neill nunca tornará a rever Nora que se suicida em 1961.
Chegamos, assim, à parte de que já ninguém fala: a censura e a polícia política do regime, com os pides a receberem actualmente boas reformas, supõe-se que pelos serviços prestados à nação.
Em entrevista a António Ferro, Dezembro de 1932, a propósito dos boatos que punham em causa o bom-nome da polícia, Salazar explicara-se bem: (…) quero informá-lo de que se chegou à conclusão de que as pessoas maltratadas eram sempre, ou quase sempre, temíveis bombistas, que se recusavam a confessar, apesar de todas as habilidades da polícia, onde tinham escondido as suas armas criminosas e mortais.
Linhas à frente, surge a prova mil vezes repetida da brandura dos meios e rectidão evidente dos fins: Eu pergunto a mim próprio (…) se a vida de algumas crianças e de algumas pessoas indefesas não vale bem, não justifica largamente, meia dúzia de safanões a tempo nessas criaturas sinistras. E nesta “meia dúzia de safanões” se fundaria o mito urbano que continua a rever e a absolver a tortura, desrespeitando os mortos com nome próprio.
Quanto à censura (uma prática que, em Portugal, verdade seja dita, recua aos tempos da Inquisição praticamente sem interrupções), prévia e de lápis azul em riste, no caso da imprensa, preferia a apreensão ulterior quando se tratava de livros.
Segundo a Comissão do Livro Negro sobre o Fascismo, o regime de Salazar/Caetano proibiu cerca de 3300 obras e até o velho Aquilino Ribeiro foi alvo de um processo-crime, pelo crime de ter escrito Quando os Lobos Uivam. O Secretariado Nacional de Informação (SNI) mostrava-se quase sempre de uma eficácia imbatível: em 1965, em apenas quatro dias, apreendia 70 mil títulos à Europa-América, em dois anos subtraía à Seara Nova milhares de contos de livros; quanto à editora Minotauro, era simplesmente encerrada.
Música, artes plásticas, filmes (de acordo com os dados recolhidos aqui só entre 1964 e 1967 foram apresentados à censura 1301 filmes, dos quais 145 foram proibidos e 693 autorizados com cortes) e TV a preto e branco (a cores só em 1980!), nada escapava à mutilação.
A justificação para o zelo recuava ao Decreto-Lei 22469 de Março de 1933: A censura terá somente por fim impedir a subversão da opinião pública na sua função de força social e deverá ser exercida por forma a defendê-la de todos os factores que a desorientem contra a verdade, a justiça, a moral, a boa administração e o bem comum e a evitar que sejam atacados os princípios fundamentais da organização da sociedade.
Apesar da bondade expressa dos censores, alguns jornalistas insistiam em alvoroçar os dias. Uma vez, no República, Vítor Direito discorria a propósito da densidade das nuvens: Manhã de nevoeiro transforma a cidade (…) Não se vê um palmo à frente do nariz (…) Andam por aí certos senhores, feitos meteorologistas de trazer por casa, a prever “boas abertas”. Mas o nevoeiro persiste.
Afinal, eram tempos divertidos. Acabaram com o 25 de Abril.

13 comentários:

Anónimo disse...

Excelente!

Ademar Santos

Anónimo disse...

Memorável memória. Felizes os mais jovens frequentadores da pastelaria que não viveram esse INFERNO, mas não confundem a realidade que nos era permitida com histórias da "joaninha".
Como não tenho cravos no quintal, um sincero kiss nas teclas e um raminho de alecrim.

Anónimo disse...

Texto fulgurante e trabalhado por escrita muito dinâmica e ágil, como é timbre da autora. No entanto, discordo frontalmente da referência a Aquilino Ribeiro, que classifica de velho...Com efeito, a vida e a obra de Aquilino Ribeiro- de quem Saramago disse que era o único escritor que o teria batido para a conquista do Nobel -são no microscosmo lusitano absolutamente geniais e gigantescas. A sua vida aventurosa entre Lisboa, Paris e Berlim, antes da eclosão da I Guerra Mundial,é qualquer coisa de impensável para a época dos "aleijadinhos" que se passeavam entre a Havaneza e a Bertrand do Chiado . A filiação suprema na Carbonária e na Maçonaria primeva, nos anos 20, prova uma consciência revolucionária admirável. E a prodigiosa obra romanesca, histórica e até de Literatura Infantil, que nos legou, são, como diz Jorge de Sena,em notas sem parcimónia ou seguidismo estéril," um simbolo da dignidade e da vitalidade das letras pátrias, que honrou e tem continuado a honrar com obras que ficarão como das mais belas da literatura portuguesa, não só pela magnificência poética do seu estilo, como pela pujante energia, pelo humor sadio, pelo amor da vida, que delas transbordam raros e quase únicos numa literatura de empáfia melada ou de lágrimas de crocodilo sobre a vida que não houve a coragem de viver ".

Pessoalmente, considero " A Casa Grande de Romarigães ", que leio todos os anos, um dos maiores romances da Literatura Portuguesa. E para se perceber bem o Camilo, é incontornável ler a Novela de Camilo,em dois volumes deliciosos, onde tudo se esclarece sobre o mistério da escrita e da vida. Bom
vento e um encorajador 25 de Abril, hoje. FAR

Ana Cristina Leonardo disse...

FAR, «velho» pode ser uma palavra muito enternecedora...
além disso, Quando os Lobos Uivam só foi publicado em 1958, e o Aquilino nasceu em 1885. É só fazer as contas.
Muito obrigada aos anteriores comentadores.

Anónimo disse...

Velho é bom, contém uma imensa ternura e muita sabedoria. Quem tem medo da ternura, da sabedoria, de se sentir envelhecer? Quem?
(Aposto que o post não vai dar cerejas, porque ainda é cedo, mas o ano está a ser pródigo em néspera, daquelas mirraditas, pespenetas e muito docinhas)

Anónimo disse...

ACL: Essas questões de idade fazem-me lembrar aquelas " poses " fascistóides " do "Independente" de Portas-Falcão e ME Cardoso, este último, todavia, retratando-se mais tarde dessas tropelias.

Chamar " velho " ao Aquilino é uma ofensa, do meu ponto de vista. Aquilino tem uma obra gigantesca e diversificada. Ainda hoje se lê muito bem. Apostou sempre no Camilo contra o esteticismo de Eça. De certa forma, é um dos escritores portugueses mais nietzschianos que existem. Ainda conheci um seu companheiro de Coimbra, de quem descreve a generosidade nas " Abóbaras no Telhado ". Privaram nas conspiratas nas " Repúblicas " da Lusa Atenas, nos anos conturbados da I República, e eram nados e criados da mesma zona, onde o meu interlocutor foi advogado de sucesso naqueles tempos.Os pais do Luís Filipe Castro Mendes iam passar férias amiúde para lá, a Terras do Demo, com um vinho branco divino e onde se caçava todos os dias...
O livro " Quando os lobos uivam " deu uma polémica internacional. Salazar dizia aos jornalistas estrangeiros," ele é contra o regime mas é um grande escritor, por isso, falem com ele
se fizerem o favor". O livro era um panfleto contra o regime, na precisa altura da candidatura do general Humberto Delgado, de quem me lembro ver multidões a correrem atràs do carro descapotável...

Questões de idade, não, por favor. Veja-se a CNN, onde os seniores continuam a dar cartas: Jim Clancy, M. Dobb,Larry King, a nata da nata. Na Literatura passa-se o mesmo, mas os heróis estão a morrer. FAR

José Manuel Dias disse...

Por tudo isso valeu a pena o 25 de Abril!

Anónimo disse...

«Segundo a Comissão do Livro Negro sobre o Fascismo, o regime de Salazar/Caetano proibiu cerca de 3300 obras e até o velho Aquilino Ribeiro foi alvo de um processo-crime, pelo crime de ter escrito Quando os Lobos Uivam. O Secretariado Nacional de Informação (SNI) mostrava-se quase sempre de uma eficácia imbatível: em 1965, em apenas quatro dias, apreendia 70 mil títulos à Europa-América(...)»

Não me quero armar em advogado de defesa mas, sinceramente, sou admirador confesso do escritor, e não vejo aqui alguma ofensa ao «velho Aquilino».
Quanto ao resto, elogio a qualidade do texto, hábito que já vem do «Expresso» e que se revelou, maravilhosamente, nesse pequeno livro para crianças(?) tão diferente da modorra instalada a que já nos estávamos a habituar...

Cristina Gomes da Silva disse...

E o que não queremos lembrar, ou que nos fazem esquecer é o pior de tudo. Le Pen, em França, também voltou a dizer que os campos de extermínio são apenas um detalhe da história.

Anónimo disse...

É natural que o asqueroso Le Pen considere que «os campos de extermínio são apenas um detalhe da história», convicto de que ele, acolitado pela encortiçada BB (com mais um processo de xenofobia às costas), contarão para terra queimada que sobra do vergonhoso e repugnante "detalhe".
Ai, valha-me a santa, que já não há pachorra

Táxi Pluvioso disse...

O resto também é fácil de resumir. Os militares, na eminência da derrota na guerra colonial, apostam no honroso empate. E no regaço das chaimites trouxeram a liberdade.

Os políticos, produtores de mais História que o cérebro consegue assimilar, abananam os jovens que não lhes conhecem os extraordinários feitos, e o Cavaco, não encontrando outro assunto para discursar, encomenda um estudo à sua universidade do coração, sobre uma evidência lapalisse – que os jovens se estão a borrifar para ele e as outras catatuas da banda filarmónica no poder. Hoje já é dia 26 de Abril.

Jay Dee disse...

E hoje é 26 =D

Beijo e bom fim de semana

Anónimo disse...

Por ter adorado, tomei a liberdade de fazer uma ligação a este texto a partir desta entrada no Voz do Seven.
Espero que a autorização me tenha sido concedida.
Abraço transatlântico
Neves, AJ