24/04/10

A book a day keeps the doctor away: Livros & Cigarros de George Orwell

Aos leitores que começam a ler os livros logo pelo princípio, um aviso. Não se deixem enganar pela contabilidade do primeiro texto: Livros & Cigarros não é sobre o preço dos livros (ou dos cigarros) em libras, xelins ou dinheiros. Os ensaios aqui reunidos versam sobre variadíssimos assuntos, da edição e crítica literária à liberdade de expressão, do totalitarismo às memórias de infância.
Este último tema, desenvolvido em ‘Ah, Ledos, Ledos Dias’, o texto mais extenso, invoca a experiência de George Orwell, nascido Eric Arthur Blair (1903/1950), no colégio interno de St. Cyprian. Por indicação do próprio só seria publicado após a sua morte, e é um libelo contra a educação assente nos castigos corporais e na estratificação classista. Lê-lo é compreender melhor a génese das posições políticas de Orwell, a sua defesa intransigente da liberdade e desprezo assumido pelo autoritarismo.
Comum a todos os textos, a inteligência do autor de “Mil Novecentos e Oitenta e Quatro” assente, sobretudo, num olhar corajoso que não recusa a complexidade do real, desprovido de preconceitos ideológicos e ilações simplistas.
Inimigo feroz do artificialismo, político ou intelectual, Orwell seria um profícuo e influente ficcionista, memorialista e ensaísta (cf. por exemplo, Por Que Escrevo e Outros Ensaios, também publicado pela Antígona em 2008).
Em Livros e Cigarros o que mais nos atrai é o facto de, seja qual for o assunto abordado, Orwell nos remeter sempre de forma tocante para a própria vida, seja esta a do pobre crítico literário que, apesar do seu amor genuíno à literatura, não deixará de ceder à “intrujice”; seja a do alfarrabista que, sob o romantismo aparente da sua profissão, não pode deixar de reconhecer a “escassez dos verdadeiros amantes de livros”. “Um, Dois, Esquerda ou Direita – o Meu País” ainda hoje escandalizará muito internacionalista cheio de boas (ou más) intenções; “A Prevenção da Literatura” é uma reflexão definitiva sobre os vícios do totalitarismo e em defesa da imaginação, muito superior à chusma de banalidades que se escreveu desde então sobre o tema; “Assim Morrem os Pobres” relata a sua experiência num hospital francês, em que à miséria dos doentes se alia a desumanidade do pessoal médico. Em resumo: sete ensaios actuais e obrigatórios publicados há cerca de 50 anos, de uma actualidade e brilhantismo inultrapassáveis.
"(...) a história das sociedades totalitárias, ou dos grupos de pessoas que adoptaram a perspectiva totalitária, sugere que a perda de liberdade é inimiga de todas as formas de literatura. A literatura alemã quase desapareceu durante o regime hitleriano, e o mesmo sucedeu, ou quase, em Itália. A literatura russa, pelo que nos é dado avaliar com base nas traduções, degradou-se acentuadamente desde os primeiros tempos da revolução, embora alguma poesia pareça ser melhor do que a prosa. Poucos ou mesmo nenhuns romances russos que possamos levar a sério foram traduzidos, digamos, nos últimos quinze anos. Na Europa Ocidental e na América, largas franjas da intelligentsia literária passaram pelas fileiras do Partido Comunista ou são fervorosos simpatizantes do comunismo, mas este movimento generalizado em direcção à esquerda produziu um número extraordinariamente reduzido de livros dignos de ser lidos. Também o catolicismo ortodoxo parece ter um efeito deletério sobre certas formas literárias, mormente sobre o romance. Ao longo de um período de trezentos anos, quantos indivíduos foram a um tempo bons romancistas e bons católicos? A verdade é que certos temas não podem ser glorificados pela palavra, e a tirania é um deles. Nunca ninguém escreveu um bom livro a louvar a Inquisição. (...) Num qualquer momento futuro, caso o espírito humano se transforme em algo de totalmente diverso do que é neste momento, talvez aprendamos a separar a criação literária da honestidade intelectual. Hoje em dia, sabemos apenas que a imaginação, à semelhança de certos animais selvagens, não vinga em cativeiro" (in "A Prevenção da Literatura").
Livros & Cigarros, George Orwell, Antígona, 2010, tradução de Paulo Faria

3 comentários:

fallorca disse...

Haverá melhor dueto, casal? Acrescentava um café, mas receio ser mal interpretado ;)

obscuro tempo disse...

gosto muito de ler nesta pastelaria.

F disse...

Pronto. Mais um para a minha lista de compras.