A palavra intelectual já foi mais bem vista. A história recente da Europa terá contribuído alguma coisa para isso. Julgo. Ainda assim, haverá quem a reverencie. Por exemplo, o passageiro que este fim-de-semana se me dirigiu no comboio:
― A senhora parece-me uma intelectual. Acho que pode ajudar-me.
A adjectivação resultaria de dois factos meramente circunstânciais. Um, é que vinha a ler um livro no comboio; o outro é que estava a usar os meus óculos de ver ao perto sem os quais qualquer obra-prima se esfuma inevitavelmente no mais denso hermetismo.
Surpreendida ― não foi assim há tanto tempo que os taxistas me chamavam menina e eu dispensava óculos ― olhei para o homem e depois olhei para o panfleto que ele exibia para que eu o lesse. No título, a bold, estava escrita uma frase que acabava em ortopedia.
O homem explicou-se:
― Tem que ver com ossos, não tem? É que eu gostava de aprender sobre isso, sobre músculos e massagens e assim...
Não sei porque carga de água, embora estivesse a ver com toda a clareza a palavra ortopedia escarrapachada na folha, pensei em oftalmologia. Respondi:
― Não, tem que ver com olhos...
― Ah! ― suspirou ele ― e avançou profundamente abatido (pareceu-me ler isso na curvatura das suas costas) na direcção da saída.
Estava o dedo do homem a meia dúzia de centímetros do botão de abrir as portas, quando me dei conta do disparate. Larguei o Bullet Park do John Cheever no banco (e abro aqui um novo parênteses para o recomendar), corri para o homem e quase gritei:
― Desculpe, desculpe! O senhor tinha razão. A ortopedia trata os ossos, oftalmologia é os olhos... Enganei-me... Desculpe...
Fez um sorriso rasgado.
― Bem me parecia! Bem me parecia! Mas muito obrigado! Muito obrigado!
E desceu em Alcântara, continuando a agradecer-me da gare, enquanto eu permanecia de pé no comboio, confesso que invadida por um certo desconforto sem saber o que fazer às mãos.
― A senhora parece-me uma intelectual. Acho que pode ajudar-me.
A adjectivação resultaria de dois factos meramente circunstânciais. Um, é que vinha a ler um livro no comboio; o outro é que estava a usar os meus óculos de ver ao perto sem os quais qualquer obra-prima se esfuma inevitavelmente no mais denso hermetismo.
Surpreendida ― não foi assim há tanto tempo que os taxistas me chamavam menina e eu dispensava óculos ― olhei para o homem e depois olhei para o panfleto que ele exibia para que eu o lesse. No título, a bold, estava escrita uma frase que acabava em ortopedia.
O homem explicou-se:
― Tem que ver com ossos, não tem? É que eu gostava de aprender sobre isso, sobre músculos e massagens e assim...
Não sei porque carga de água, embora estivesse a ver com toda a clareza a palavra ortopedia escarrapachada na folha, pensei em oftalmologia. Respondi:
― Não, tem que ver com olhos...
― Ah! ― suspirou ele ― e avançou profundamente abatido (pareceu-me ler isso na curvatura das suas costas) na direcção da saída.
Estava o dedo do homem a meia dúzia de centímetros do botão de abrir as portas, quando me dei conta do disparate. Larguei o Bullet Park do John Cheever no banco (e abro aqui um novo parênteses para o recomendar), corri para o homem e quase gritei:
― Desculpe, desculpe! O senhor tinha razão. A ortopedia trata os ossos, oftalmologia é os olhos... Enganei-me... Desculpe...
Fez um sorriso rasgado.
― Bem me parecia! Bem me parecia! Mas muito obrigado! Muito obrigado!
E desceu em Alcântara, continuando a agradecer-me da gare, enquanto eu permanecia de pé no comboio, confesso que invadida por um certo desconforto sem saber o que fazer às mãos.
11 comentários:
a mim parece-me que ele estava a tentar namoriscar-te, mas depois dizes que tem que ver com os olhos... e ele fica acabrunhado pensando que o estás a gozar! Aposto que já com o pé na gare e ao ouvir desfazendo o engano (deve ter-lhe soado a violino)ele odiou-se por lhe ter faltado a confiança.
Coitado por esta altura deve andar a fazer a mesma viagem num vaivém...
ah! (li há pouco e não deu logo para comentar, agora perdi-me num detalhe no comentário que fiz) o violino ouviu ele ainda de dedo no botão da porta, mas a compreensão e a emoçao que lhe sucede retarda ao momento de colocar o pé na gare.
Não tem a ver com isto...
Este senhor foi meu professor no Porto:
http://santosdacasa.weblog.com.pt/arquivo/2004/12/antonio_jose_de.html
O seu opus magnum:
http://1.bp.blogspot.com/_PNQSxicgg04/SLrkImde2EI/AAAAAAAAACY/_xD0L6My1Y4/s1600-h/Contra-Revolucion%C3%A1rio.jpg
Músculos e massagens e tal... e gostava de aprender sobre ossos!?
É sabido que os intelectuais, além de ler livros e usar óculos, também tendem para a distracção. Ficou definitivamente rotulada.
A mim, "invadida por um certo desconforto sem saber o que fazer às mãos", fez-me lembrar E.Andrade:
"Que tristeza tão inútil essas mãos
que nem sequer são flores
que se dêem:
abertas são apenas abandono,
fechadas são pálpebras imensas
carregadas de sono."
Embalada pelo comboio, compenetrada e de óculos, para se infiltrar sem desconfortos na paisagem da leitura. Acordada para a realidade por um desconhecido proferindo palavras que a obrigaram a uma sintonia mais apurada a um mundo onde não se encontrava naquele momento.
Ora, tratando-se de uma moça bem intencionada, o que poderíamos esperar senão uma reacção destas?
Muito obrigada a todos pelas vossas contribuições para a explicação da coisa.
Com um bocado de sorte vais ter um em Santos. Persevera!
Pode ficar descansada, Ana. Como dizia o Schoenberg: mais vale ser considerado um intelectual do que um imbecil...
A quantidade de vezes que isso me acontece... uma vez, estava a caminho de casa, interpela-me um senhor, em tudo semelhante a esse: "onde é que fica o centro comercial X"? Mandei-o, literalmente, dar uma volta (enorme). Dei mais alguns passos na direcção de minha casa, portanto, ao lado do centro comercial X, e a evidência caiu-me toda em cima. Não sabia o que fazer: parecia-me estúpido ir a correr atrás do homem para trazê-lo de volta, parecia-me desumano ignorar o assunto.
Tinha conseguido com sucesso apagar o episódio da minha consciência, obrigadinho por isto
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