18/07/07

Viva a silly season! Viva Paris!

Tante Marie tinha uma relação problemática com os parisienses. Vivia numa pequena quinta em Cognac (sim, exactamente aí onde se destila a excelência francesa do mesmo nome), rodeada de galinhas, patos e coelhos, orgulhosa das suas couves e das suas cenouras. No quintal, lembro-me, havia uma árvore que dava dióspiros.
A partir de Novembro a lareira estava sempre acesa na sala de entrada da casa, e Tante Marie aproveitava o lume para nos preparar deliciosas galletes à maneira bretã, que exigia que comêssemos indiferente aos nossos protestos contra o presumível acréscimo de matéria adiposa, que ela assegurava ser uma garantia contra a descida das temperaturas.
Em Cognac raramente nevava, mas, ainda assim, fazia muito frio. A atmosfera tornava-se não mais do que rústica, como se terá percebido, e nesses meses invernosos as nossas almas elevavam-se na melancolia dos entardeceres prematuros degustando patés e queijos e tartes e Bordeaux, tudo de primeiríssima qualidade.
Por vezes, quando se encontrava na horta debruçada sobre os vegetais, examinando-os com o rigor que se imagina Madame Curie poria nas suas anotações científicas, o barulho de um carro mais veloz interrompia a revista às cenouras e às couves e Tante Marie exclamava em tom reprovador: Ah! voilà les parisiens!
Até poderiam não o ser, já que para esta mulher pequena e de aspecto frágil, capaz, todavia, de despachar numa só tarde dez ou mais coelhos de um golpe certeiro, parisien era, tão-só, sinónimo de citadino. E, sobre estes, tinha ideias tão definitivas como o gesto com que aviava os desafortunados albinos: pobres Bouvard e Pécuchet passeando-se pelos campos nomeando em voz alta os legumes: «Olha, cenouras! Ah, couves!», trocando sempre as referências.
Para Tante Marie, essa era a prova provada da idiotice urbana. Estivera em Paris apenas uma vez. Logo após o casamento, já Hitler estiraçava os seus tentáculos pela Europa fora. Nessa altura, o mercado Les Halles não se convertera ainda no gigantesco centro comercial que o tempo haveria de provar não ter sido uma grande ideia, o pitoresco Marais não suspeitava sequer do seu futuro gay-chic nem a rive gauche da explosão do Maio de 68. La Defense, claro, não existia, e nem nos sonhos mais megalómanos de François Mitterand lhe passaria pela cabeça vir a ser o arquitecto de La Grande Arche, sem dúvida o melhor de La Defense, esquadria perfeita com o Arc-de-Triomphe que, esse sim, Tante Marie pôde visitar, garantindo, no entanto, a quem a quisesse ouvir, que era bem mais bonito visto de longe.
Quanto à Torre Eiffel, apesar de se ter recusado a subir os 1 665 degraus que a teriam levado ao topo das suas 10 100 toneladas (contas feitas, 324 metros, incluída a antena), Tante Marie ainda agora recordava como se sentira esmagada vertigem daquele monstro de ferro.
De regresso a Cognac, comprada uma imagem da Notre Dame que os anos e o chauffage haveriam de amarelecer, pouco tempo depois os alemães fariam a sua entrada triunfal na Cidade das Luzes, para se retirarem cumprido o banho de sangue que não pouparia Tante Marie à morte de um sobrinho, alguns vizinhos e conhecidos. Nunca perdoou aos boches, a quem odiava ainda mais do que aos parisien, e isso é já dizer tudo.
Mas nem os nazis ousaram reeditar a demência de Nero, o incendiador de Roma. Apesar da carnificina, Paris nunca chegou a arder.
Sabendo-se, pois, que Tante Marie nunca mais lá voltou, podemos – no momento em que me passeio, tantas décadas decorridas, pela gigantesca Feira da Ladra que são os Puces de Clignancourt, em busca de um blusão de cabedal à Major Alvega – situá-la sem grande risco à la campagne, qual alquimista submersa em grandes panelas de ferro mexendo compotas que tardam a chegar ao ponto.
Estávamos no Outono e eu desesperava no meio de uma multidão mestiça por encontrar o «meu» blusão. O amigo que me acompanhava desesperava ainda mais do que eu.
Foi então que avistei uma tenda de chapéus. Milhares de chapéus. Chapéus de todas as formas e feitios, usáveis e menos usáveis, de colecção, de teatro, masculinos e ultrafemininos, de Verão e de Inverno, em bom ou mau estado... enfim, uma tenda-paraíso para apreciadores dos ditos. É o meu caso. Eu adoro chapéus, ainda que reconheça que é difícil usá-los.
A mulher atrás do improvisado balcão aproximou-se de mim naquele jeito nonchalance que só as temíveis consièrges parisienses parecem não praticar. Explico-lhe que vim à procura de um blusão de cabedal e que não posso agora trocá-lo por um objecto tão inversamente delicado como um chapéu. A resposta saiu-lhe pronta: Ah, mais justement, ça serait très féminin!
A incoerência convence-me. Regresso de Clignancourt com um chapéu negro de amazona de véu comprido a flutuar ao vento....
Nessa noite, ao entrar no Le Mazet, bar que então frequentávamos no Quartier Latin (mesmo ao lado do Le Procope, o café mais antigo de Paris, eleito de Rousseau e Voltaire, só para não ir mais longe), e onde nos deliciávamos com balões aquecidos de Cognac que nos provocavam arroubos de nostalgia à lembrança de Tante Marie, o dono precipita-se do balcão e dirige-se-me de braços abertos:
Mademoiselle, vous êtes ravissante!
Em que outra cidade do mundo nos acolheriam desta forma, só por trazermos na cabeça um despropositado chapéu visivelmente encombrant?
E outra pergunta. Poderá o Canal Saint-Martin, anacronismo perfeito de uma cidade frenética, precipitar uma declaração de amor?
Foi precisamente aí, numa das suas margens, que Flaubert marcou o encontro decisivo entre os dois manga-de-alpaca (Tiens: des carottes! Ah! Des choux!), aquele que os levaria depois à comunhão suspirosa de quão bem estariam no campo!
Quanto a nós, há já alguns parágrafos que abandonámos Tante Marie, rendidos à beleza desta cidade que guarda, para além dos imensos boulevards rasgados por Haussmann, recantos como este, onde o tempo se submete ao ritmo lentíssimo do escoar das águas pelas comportas abertas, fazendo-nos recuar a essa tarde novecentista em que Bouvard e Pécuchet iniciam o mais maravilhoso de todos os livros inacabados.
Paris. Decididamente burguesa. Ostentatória. Por vezes arrogante e demasiado formal. Cidade onde até o garçon de café se crê herói da Comuna, isto sem demérito para os garçons nem excessiva admiração por aquela, que, como se sabe, fez bastante mais vítimas para além de Antonieta, rainha que terá subido ao cadafalso na que hoje se chama Place de la Concorde sem perceber sequer o que lhe acontecia. Cidade onde já foi o tempo em que «as coisas não acontecem de todo se não acontecem em Paris». Mas caramba! Mesmo enterrada a boémia que caracterizou durante anos esta capital, quem não se comover com o we always have Paris! que mande este texto às urtigas.
Porque eu só queria contar isto: era uma tarde de Primavera num jardim de que esqueci o nome. Dois namorados aproximam-se e, o tempo de acender o meu Bastos legère sans filtre (um marca entretanto desaparecida), sentam-se no banco em frente ao meu. Lia um livro (não, não era Proust), e quando voltei a página já eles se confundiam, beijando-se, abraçando-se e escorregando irremediavelmente para a posição horizontal, cegos aos olhares que, diga-se em abono da verdade do que agora escrevo, se mostravam bastante complacentes para com a efusividade primaveril do jovem casal.
Foi então que fez a sua aparição o clochard, encarnação perfeita de Michel Simon em Boudu Sauvé des Eaux.
Isto passa-se, portanto, no tempo em que ainda existiam Bastos legère sans filtre e vagabundos por conta própria. O homem dirige-se para os corpos confundidos. Toca nas costas do rapaz. Não há resposta. Toca de novo. Nada. Abana-o já com algum vigor quando um rosto ruborizado e de cabelos desgrenhados se destaca no meio da confusão de braços e pernas.
Oui? Tens um cigarro? O rapaz está levantado e revista os bolsos enquanto a namorada compõe a blusa. Não tinhas deixado de fumar?, diz-lhe ela. Ah! Mais oui, mais oui, responde-lhe ele às voltas com as mãos inúteis. O clochard encolhe os ombros e segue. Passa por mim. Eu estou ainda a fumar. Tu as vu les amoureux?, confidencia-me en passant. Não repara sequer que lhe estendo o maço.
Paris, uma punhalada no coração, escreveu Jack Kerouac que era um viajante solitário e nunca conheceu Tante Marie.
FOTO: Robert Doisneau

6 comentários:

FerMarPin disse...

Viagens ao ano 1900 (2)
A FAMILIA
Factual efabulado
Escrito em Setembro de 2000
por Fernando Marques Pinheiro

(Neste espaço a respectiva fotografia)

O sorriso da Engrácia é ainda mais bonito do que este.
No Verão, durante a chamada época balnear, várias famílias de Lisboa vêm a banhos, gozar as praias e o mar, e engrossam consideravelmente a população de Cascais, que durante o Inverno parece despovoada.
Algumas dessas famílias tornaram-se habituais aqui, já há muito tempo. São caras que todos os anos voltam a aparecer.
A Engrácia vende peixe durante o Verão. De porta em porta. Principalmente a senhoras de cidade. Algumas já ela conhece bem e gostam dela.
Todas as manhãs percorre ruas e vielas apregoando, de canastra a cabeça como esta sua vizinha que recentemente alguém fotografou. Tem uma bonita voz. No silêncio muito puro que cobre toda a povoação, ouve-se a voz dela entre outros pregões, às vezes um aqui perto, outro ou outros mais além. Muito espaçados, alternando calmamente e como a responderem uns aos outros por cima dos telhados.
Ela nem precisaria de apregoar. Dirige-se às casas onde já é conhecida e bate às portas. Arreia a canastra no chão e começa a destapar o peixe, para por à vista o que traz.
Bom dia ! Ó freguesa, veja isto ! Veja esta maravilha !, grita ela alegremente a uma cliente mal ela abre a porta. Com ar contristado a freguesa diz-lhe que hoje não quer nada.
Mas, ó minha querida, olhe para isto !... Não paga nada, só por ver não paga nada ! Olhe bem ! Já viu coisa mais linda ?
A troca de palavras vai prosseguir e prolongar-se-á um pouco, podendo até transitar para assuntos do quotidiano da freguesa ou da vendedeira. Quando tal acontece, ou eventualmente atinge vidas alheias, a conversa muda para um andamento lento e a Engrácia baixa a voz. Como a conversar com uma amiga intima.
É muito simpática, a Engrácia. Muito alegre, muito risonha. As clientes mesmo que não estejam compradoras vêm sempre à porta, para a verem e para lhe falarem. E também chalaceiam e riem-se, emparelhando com ela.
O falatório parte da Engrácia sempre com laivos de ingenuidade. E a sua voz a veicular pensamentos simples ecoa no labirinto das ruas e ruelas como numa caixa de ressonância. E atinge pontos distantes. O seu pregão, bastante mais forte do que o seu falatório, chega a ouvir-se na praia do peixe, quando ela anda lá para aqueles lados.
Se o marido não está no mar, está na praia com certeza, ou na taberna ali perto. Há já muito tempo ele disse-lhe que às vezes ouve-a ao longe, e que a voz dela distingue-se bem entre as vozes das outras que também andam na venda. Foram palavras que não caíram em cesto roto. De então para cá, não são poucas as vezes em que ao apregoar ela lembra-se e ri-se, e pensa Talvez hoje ele também me ouça. Nessas ocasiões vê o marido em imaginação e grita o pregão com mais força, como a chama-lo de longe.
Cada Verão que passa deixa boas recordações na Engrácia. Conversas que teve, coisas que aprendeu. E algum dinheiro amealhado.
O marido também é poupado. Mas durante o Inverno não ganha. As embarcações passam em seco os meses em que o mar anda revolto e há temporais de respeito, desde meados do Outono até meados da Primavera. Mas durante o resto do ano o trabalho não lhe falta e ele ganha bem. Embora ultimamente o peixe pareça andar um tanto arredio.
Até ao Verão que vem viverão do que ele e ela amealharam durante o Verão passado. E será sempre assim, enquanto puderem mexer-se.
Quando o Verão acaba a Engrácia troca a canastra pela enxada. Tem uma pequena horta que ela amanha, num terreno com um poço. Confina com a Ribeira das Vinhas. Herdou-o por morte da mãe. Mas dá pouco. É só uma pequenina ajuda. Nem a Engrácia teria corpo para uma horta maior.
O marido nunca põe os pés na horta. Diz que de hortas não percebe nada e que o mar é que lhe dá pão, a ele e aos seus. E ele não diz, mas compreende-se : não se sentiria bem longe dos seus companheiros.
Durante os meses em que as embarcações estão em seco, ele entretem-se na conservação das redes e em beneficiações da embarcação, juntamente com os colegas.
Têm um menino e uma menina. E não desejam ter mais.
Ela receia que o marido venha a querer levar o filho para o pé dele, para as lides do mar. Porque ela tem outras ideias. Gostaria que o filho estudasse e que um dia saísse daquela miséria, fosse viver para Lisboa. Viria de visita e, já casado, a mulher dele seria como aquelas senhoras a quem ela no Verão bate à porta de canastra à cabeça. Quanto à filha, não lhe parece que ela possa sair dali. Mas há-de aprender a ler e a escrever, se Deus quiser. Há-de pelo menos ficar a saber fazer o seu nome.
Depois dos filhos e do marido, o que dá mais alegria à Engrácia é a posse da sua máquina de costura, que comprou a prestações. É verdade. A sua habilidade não lhe causa vaidade, mas ter em casa uma máquina de coser, disso sim, tem vaidade. E usa-a muito. Pedala constantemente, durante o tempo que lhe sobra da venda do peixe ou do trabalho na horta, e da lida da casa.
A Engrácia até sabe fazer camisas de homem.
Numa noite destas, estando os dois deitados e ele com o ritmo da respiração já abrandado, ela segredou-lhe a um ouvido, com uma mão ainda nas costas dele e a outra a afagar-lhe a nuca, Já tens a camisa pronta, acabei-a esta tarde depois do almoço. No domingo já a podes levar à missa.
Não compreendeu o que ele murmurou. Mas não sentiu necessidade de compreender. Sabe que ele se orgulha dela. FIM

fmarquespinheiro@gmail.com

Anónimo disse...

"Il n'y a jamais de fin à Paris et le souvenir qu'en gardent tous ceux qui y ont vécu diffère d'une personne à l'autre. [...] Paris valait toujours la peine, et vous receviez toujours quelque chose en retour de ce que vous lui donniez".

Ernesto em francíu.

(não gosto deste livro porque ele diz mal das ostras portuguesas)

A certa altura do texto lembrei-me do The Four Horsemen of the Apocalypse!

João Lisboa disse...

Tu as "vu", não "vue".

Ana Cristina Leonardo disse...

Obrigada João, coro vou corrigir imediatamente

lili disse...

Mas é a verdade, a maioria de nós always have Paris :)

Anónimo disse...

...Et moi, madame, je vous aime!