17/07/07

Viva a silly season! Viva Paraty!

Há palavras cujo uso - ad nausea - banalizou de tal forma o seu significado que, quando nelas tropeçamos, o fundo de censor que habita cada um de nós, se menos reprimido, não resistiria a puxar do lápis azul, numa versão moderada do outro que puxava do revólver.
Paraíso, por exemplo. Sobretudo se se trata de um texto de viagens, logo ali apetece amaldiçoar o hiperbólico escriba, condenando-o, por exemplo, a três meses de férias na Quarteira. Para além de, quase sempre, se tratar de uma descarada patranha, deixa-nos sem distintivo face ao que poderá ser um resquício desse Eden primordial. Digo resquício, visto que - é do Livro -, do Paraíso não se sabe a geografia, na certeza de que para lá não há passagens low cost.
O caso é este: Paraty poderia caber nessa categoria. Só que, dado o desgaste linguístico (bastante mais obnóxio que a ferradela na maçã, sublinhe-se), ninguém iria acreditar. Abandonem-se, pois, os predicados e exponham-se os factos. E o facto é que chegámos lá de noite.
Com sonos acumulados, tanto eu como o fotógrafo concordámos em dormir cedo. Uma batida tremenda despertava-me passadas escassas horas, como se a minha cama (comigo lá dentro, e aí residia o problema) tivesse sido catapultada para um sambódromo adventício.
Não era Carnaval. Obrigada a regressar a uma dimensão do real onde todos, menos eu, pareciam divertir-se altamente ao ritmo de intermináveis cirandas – na origem, bailes de roça assistidos por viola, violão, cavaquinho e pandeiro de adufo, as mulheres rodando as saias e os homens sapateando tamancos de madeira enquanto o mestre virandeiro marca a cadência improvisando versos: imagine-se o estardalhaço! –, e quando já me dispunha, ensonada porém pragmática, a render-me ao «se não podes derrotá-los junta-te a eles», eis que a toada se torna mais tranquila, invocando sucessos melosos lá da década de 40... Eram umas três da manhã, eu ressuscitara ao som de um ô si balança/ ô si balança/ no si balançá/ ô si balança/ ô si balança/ prà lá e prà cá repetido à exaustão, por isso que se me seja dispensado o rigor discográfico.
No dia seguinte deslindava-se o motivo da festança: a cidade comemorava 335 anos de emancipação política e o que eu estivera a ouvir fora a Grande Ciranda de Paraty, e depois a Orquestra New York Society Band, a actuarem no Mercado do Produtor Rural, por acaso MESMO atrás do meu hotel. O fotógrafo, que não dera por nada, alojado noutra estalagem fora do centro histórico, nem por isso foi poupado ao ô si balança/ ô si balança/ no si balançá/ ô si balança/ ô si balança/ prà lá e prà cá que trauteei toda a manhã. Aguentou estoicamente até à hora do almoço. À sobremesa, depois de uma irrepreensível galinha de cabidela (a tradução local é «ao molho pardo«), arremeteu-me com um «Não se canta à mesa!» fulminante. E ameaçou amordaçar-me.
A primeira referência conhecida ao sítio de Paraty recua a 1554, data em que Hans Staden foi feito prisioneiro pelos índios desta região localizada no extremo Sul do Estado do Rio de Janeiro (a 248 quilómetros do Rio e 330 de São Paulo), aventura que deixou registada em Diário. Os seus habitantes originais eram os índios Guaianá, que se ficavam pela serra no Verão e desciam ao litoral durante o Inverno, ao encontro de clima mais ameno. A desova dos cardumes de tainhas e piratis (não confundir com parati) durante o tempo fresco, era outra das razões que levava os Guaianá a acercarem-se do mar, que por aqui forma uma baía protegida.
Em língua tupi «parati» significa golfo e, conhecido o costume dos indígenas de recorrerem aos acidentes geográficos para baptizar os lugares, fica esclarecida a toponímia da cidade. Desses ocupantes primitivos restam as aldeias de Tekoa Araponga, na Vila do Patrimônio, que reúne 40 Guarani, e a Aldeia de Tekon Tatim, onde vivem cerca de 100, ambas em Reservas Florestais Federais.
Foi esta última que tentámos visitar. A caminho de Paraty Mirim – lugarejo encantador a 17 quilómetros de Paraty, cujo porto serviu durante muito tempo para o desembarque ilegal de escravos, até entrar em decadência a partir do século XIX –, à beira da estrada de terra, não havia a certeza de lá podermos entrar. Dependia do pajé.
Esclareço. Aqui, os índios não vivem no meio das outras pessoas. A má consciência dos políticos levou-os a «ceder-lhes» terras onde, apesar das eventuais boas intenções, residem condenados a um ostracismo proteccionista. Assim, a gente vai na estrada, vê uma placa a dizer Propriedade Privada - Reserva Federal, umas pessoas sentadas junto a umas casas mesmo ali, e se quiser perguntar que dia é hoje?, por exemplo, tem de mandar um fax para Brasília pedindo autorização à FUNAI (Fundação Nacional do Índio). Isso, ou esperar que o pajé, que é o índio responsável pela aldeia, esteja bem-disposto e nos deixe aproximar.
Parado o jipe, Armando (guia credenciado), conhecido por Vagão, e Miriam Cutz (a nossa incansável cicerone) avançam para tentar falar com o cacique (o termo não tem aqui sentido pejorativo). É então que uma criança se aproxima da viatura junto da qual eu e Henrique, o fotógrafo, aguardamos o resultado das negociações.
A biologia explicará, ou não, o meu instinto maternal exacerbado. Na circunstância, deu-me para pegar na criança ao colo e afastar-me do jipe, com a intenção de a entregar a alguém e desviá-la da estrada. Ao fim de meia dúzia de passos, sai-me ao caminho uma mulher mal-encarada – e mal oxigenada. Olha-me como se reconhecesse em mim um membro de alguma organização dedicada ao tráfego de menores e rosna: «Não podem tirar fotografias sem autorização».
Eu não tenho máquina, carrego apenas um pequenino índio. Controlo um desejo primitivo de a esbofetear (que a biologia também explicará) e respondo que só pretendo proteger o bebé, que uma irmã (presumo) acaba de levar de volta. Entretanto, as negociações prosseguem. Vagão e Miriam não conseguem falar com o pajé. Barrados pelos dois responsáveis da FUNAI (além da mulher há um outro elemento, menos desagradável mas igualmente inflexível), acabamos todos por nos vir embora. «Se quiserem entrar (mas onde verá o homem a porta?!) mandem um fax para Brasília», relembra o sujeito da Fundação.
Solto a animosidade: «Isto é ofensivo! Tratam-nos como se fossem débeis mentais!» Vagão, até agora calado, sugere, expedito: «Eles ao final do dia estão sempre em Paraty a beber cerveja e a pedir esmola, tiram as fotos que quiserem». Ninguém responde e, em silêncio, dá-se por encerrado o episódio que lamentavelmente se convertera em «ir ver os índios».
Coisas menos desagradáveis. Aparecida, por exemplo. Se a vida fosse um pouco mais cor-de-rosa, quem sabe ela partilhasse as passerelles com a própria Gisele Bundchen! A jovem surgiu-nos como uma aparição na cozinha do Sr. Arlindo Sacramento, velho de incríveis olhos azuis que tem como máxima de vida, Brincar e caçoar não pega nada.
Moradores de uma pequena casa na serra, a caminho da Cachoeira da Pedra Branca, nos arredores de Paraty, recebem-nos com um hospitaleiro Sejam bem chegados!, oferecem-nos água e bananas doces e indicam-nos o caminho da queda de água onde não somos os únicos a mergulhar.
Tínhamos partido de manhã para conhecer a Estrada da Serra, nome pelo qual é conhecida a Estrada Real (ou Caminho do Ouro), troço de engenharia viária que explica por que razão Paraty teve importância fundamental na história brasileira, chegando a ser o segundo maior porto do país (e um segredo de Estado durante todo o século XVIII).
Dispomo-nos a repisar a via por onde os portugueses transportavam (obrigatoriamente, já que este era o único itinerário permitido) o ouro vindo do interior, de Minas Gerais, até ao porto de Paraty, e daí para Portugal via Rio de Janeiro. Calcetado por pedras enormes (a que chamam estilo pé-de-moleque), que o tempo e os elementos não conseguiram vencer, visitamos um trecho preservado de oito quilómetros.
Tudo parece ter tido início com a expedição de Martim Correa de Sá, em 1597, à frente de 700 europeus e 2 000 índios, visando refazer um antigo trilho dos Guaianás, que, por sua vez, teriam usado caminhos abertos pelos animais. Essa autêntica «via romana» (chegou a alcançar 1 200 quilómetros), viveu em permanente engarrafamento durante a febre do ouro que começou em 1700, juntando homens e animais de carga, escravos e salteadores, tropas e aventureiros, numa viagem que durava mais de 45 dias. No final do século XVIII, com a abertura do Caminho Novo, que chegava ao Rio via Petrópolis (onde se instala a Corte), mais o enfraquecimento do negócio do ouro, o Caminho de Paraty entra em declínio.
O silêncio é de chumbo. É difícil imaginar a azáfama que por aqui já se viveu, os gritos, os assaltos, as mortes, a fúria e o sangue dos homens arrebatados pelo metal precioso. As árvores têm um porte extraordinário, há plantas que se enroscam mal lhes tocamos, a água requebra-se em riachos cristalinos, um musgo vermelho-vivo garante a pureza absoluta do ar. A meio de uma subida mais íngreme, uma placa assinala «Canela Fedorenta». Ultrapassada a árvore, o insólito letreiro ganha todo o sentido: faz-se sentir um cheiro intenso a estrume, de que o nosso guia se diverte a testar o efeito. Uma vista belíssima sobre a baia de Paraty espera-nos no alto. Nesse dia almoçamos na Fazenda Murycana, que recua ao século XVII, eleita de D. Pedro I que nela pernoitou várias vezes acompanhado da amante, a Marquesa de Santos. Uma visita ao antiquíssimo engenho onde ainda hoje é produzida de forma artesanal a aguardente, envelhecida depois em pipas de carvalho e cerejeira, encerra o repasto.
Este é um dos seis engenhos que restam em Paraty, que já contou com mais de 100. Porque ao ciclo do ouro seguiu-se o da aguardente (depois, ainda, o do café), permanecendo esta a mais afamada do Brasil. Fazem os locais questão de precisar que na região «nunca se produziu cachaça mas pinga – que vem a ser aquela aguardente fabricada exclusivamente a partir da garapa, do caldo de cana fermentado e destilado, depois da fervura e evaporação, que pinga na bica do alambique».
Explicação dada, estamos agora a corroborá-la no Refúgio, onde se bebe a melhor caipirinha local. Dirigido por Zé Paulo, um conversador nato, o restaurante ocupa local privilegiado frente ao porto, em terreiro largo. O lugar certo para se estar ao final da tarde. «O meu avô era de Beirute, e com esta minha cara de rato árabe do deserto confundem-me com o Bin Laden. O Amyr Klink, por causa do nome, pensam que é parente do Sadam», graceja Zé Paulo.
Precisamente hoje, durante um passeio pelo mar, tinhamos avistado a ilha onde mora Klink, apenas uma entre as 65 que povoam a costa.
As serras, envolvas em névoa, vão-se aclarando à medida que a escuna avança, multiplicando-se ad infinito, como se deslizassemos num cenário pintado por Wang Fo. O recorte doce da paisagem, as formas arredondadas, as águas calmas, tudo isso explicará muito da leveza dos brasileiros, expostos a elementos que, longe de se oporem aos homens (como no México, oh lá lá!), antes parecem acolhê-los. Apesar do gigantismo dos morros que avistamos, é a mansidão que predomina sobre o medo que podemos imaginar ter assaltado os primeiros europeus aqui chegados.
Aparecida acompanha-nos e mergulha enquanto Henrique lhe testa a fotogenia. Um dos membros da tripulação regressa à superfície com estrelas-do-mar, explicando-nos que não se podem virar ao contrário porque morreriam. Uma mãe procura o filho à beira da histeria: «Meu filho afundou!» São apenas paulistas viciados no stress da cidade grande. Na ilha do Mantimento, do presidente da Fiat brasileira, junto à qual estamos ancorados, descobrem-se micos-leão dourados, uma espécie de macaco raríssima e em vias de extinção. Na ilha da Sapeca, o prazer do ócio degusta-se num tasco de madeira, enquanto um gato de olhos azuis disputa os restos do almoço a uma cadela chamada Menina.
A poucos metros, num outro ilhéu, adivinha-se uma construção de gosto duvidoso, misto de Taj Mahal e pagode chinês. Um dos tripulantes do barco explica-me que foi uma oferta a Collor de Melo, que teve um sonho de marajá. A casa terá envolvido corrupção, o nome de António Carlos, ex-governador da Bahia (petit nom, Toninho Malvadeza), a empresa de construção viária OAS (vulgarmente conhecida por «Obras Arranjadas pelo Sogro») e uma doação a um funcionário, entretanto falecido, cuja viúva decidiu não cumprir o «contrato». Ficou com a casa para ela. Um provérbio local garante: «Brasileiro estraga de dia, Brasil recupera de noite». Por enquanto, o sonho de marajá continua de pé.
Exactamente por motivos inversos é que Paraty foi declarada Monumento Histórico Nacional em 1966, segundo a UNESCO «o conjunto arquitectónico mais harmonioso do século XVIII no Brasil». O centro histórico, de planta em leque e cobrindo grande parte da cidade, é habitado e vivido pelos locais (não se tratando, portanto, de postal ilustrado para turistas).
Explode numa panóplia de cores formidável, com as casas listadas por azuis, bordeaux, verdes e amarelos, janelas protegidas por um delicado entrançado de madeira (muxaribe), símbolos maçónicos nas fachadas e nas esquinas, «calçamento pé-de-moleque» nas ruas cuja leve depressão central permite que as águas entrem e saiam de Paraty banhando-a nas marés de lua cheia, pequenas lojas, bons restaurantes de cozinha caiçara (um misto da culinária trazida pelos europeus e paladares índios), vegetação exuberante tombando do interior das casas, como é o caso da Rua do Fogo, assim conhecida por ter sido ponto de encontro de marinheiros e mulheres de «vida fácil».
E se foi o Caminho do Ouro que trouxe fama a Paraty, foi também, paradoxalmente, o seu declínio que a preservou. Quando, em 1885, é inaugurado o caminho de ferro entre São Paulo e o porto do Rio de Janeiro, Paraty apenas vê confirmada a sua queda.
Até há pouco tempo chegava-se aqui como no passado: de barco, vindo de Angra dos Reis, ou, a partir de 1950, por terra, via Cunha, por uma estrada que apenas era transitável quando não chovia, em parte decalcada sobre o velho caminho do ouro e do café. Fora já por esta que chegara, em 1929, o primeiro automóvel, incapaz, contudo, de fazer o percurso de volta. Um ano depois, a estrada seria destruída por tanques militares que se dirigiam a São Paulo durante a Revolução dos Trinta, só reabrindo ao fim de duas décadas.
«É sempre pelos caminhos que Paraty se salva e se perde», cita Diuner Mello, historiador local autodidacta, conhecedor dos meandros da cidade como poucos. E salvar-se-á novamente, já na década de 70, com a abertura da Rio/Santos, que a subtrai a quase um século de isolamento.
A poucos quilómetros, as praias da Trindade, em tempos famoso destino hippy, também só há pouco têm acesso por estrada alcatroada. Alternativa banhista às ilhas, trata-se de uma vila de pescadores sujeita a forte pressão imobiliária nos anos 70, quando foi palco que uma rocambolesca ocupação por parte de uma empresa multinacional, que meteu jagunços e tiroteio. O conflito foi parar à justiça e a Associação dos Moradores Nativos e Originários da Trindade conseguiu preservar a vila, encravada hoje no Condomínio de Laranjeiras, um casario de luxo privado guardado a metrelhadora e onde os moradores só usam helicóptero.

A nossa viagem está a chegar ao fim. Tomamos um copo de despedida no Refúgio e à terceira caipirinha uma enorme luz desaparece no firmamento sem deixar rasto.
Um parênteses. Para além de tudo o resto, que é imenso, Paraty é também conhecida pelo seu «clima peculiar». Abreviando: OVNIS, pessoas que se passeiam compulsivamente de madrugada pelas ruas curvas do centro, «cavalos de Diana que pastam nas praças a dor alheia» (e é verdade que os animais andam soltos à noite), passado maçónico, esquisites templárias, enfim, a habitual panóplia new age... Naquele momento, a beleza do lugar, o céu tão estranhamento aceso e, concedo, as caipirinhas, terão permitido que me enredasse nessas coisas improváveis.
O fenómeno gera controvérsia à mesa. Miriam reconhece não saber do que se trata, mas a verdade é que lhe pareceu grande de mais para estrela cadente. Henrique, positivo, recusa mistérios. Eu, a única que estava de costas para o «objecto», não sei o que dizer. Cito Zé Paulo, o rato do deserto: «Não existem problemas. Existem enigmas», uma frase roubada já nem ele se lembrava onde.
E é quando proponho a última caipirinha. Aquela. A tal. A one for the road. Juro. Mas ninguém me acredita. Vá-se lá saber porquê.
FOTO: Aparecida, fotografada por Henrique Seruca, com o fato de banho que lhe emprestei para a ocasião e que ainda no outro dia levei à piscina.
NOTA: Este texto é para Zé Paulo

3 comentários:

FerMarPin disse...

Viagens ao ano 1900 (1)
A FESTA
Factual efabulado
Escrito em Setembro de 2000
por Fernando Marques Pinheiro


Hoje é dia de festa em Cascais.
Nesta gente humilde que vive da pesca, o dinheiro escasseia frequentemente e as bandeiras que hoje ornamentam as suas embarcações representam um dispêndio que poderá parecer excessivo se pensarmos em bolsas mal providas.
Talvez tenham sido cedidas para este dia, talvez alguém as tenha trazido emprestadas esta manhã.
De qualquer modo, depois de fixadas nas adriças e içadas, encontram-se arvoradas bem alto, como se vê. Lá estão elas, desfraldadas ao sol, a bater ao vento, a mostrar as suas cores vivas e variadas, a dar alegria a quem olha para elas.
As embarcações, já vetustas, ganharam um ar prazenteiro que não lhes é habitual.
Assim a festa é mais festa.
Quem olhar bem, pensará que não há gente a bordo.
É verdade. Os pescadores estão em terra, na Igreja de Nossa Senhora dos Navegantes, que é a deles. Há missa rezada por alma dos parentes e companheiros falecidos. É fácil perder-se a vida na perigosa faina da pesca.
Alguns pescadores não morrem nas suas camas, como há quem diga.
Ora retraindo-se, ora dilatando-se avassalador e medonho em vagas gigantescas de misteriosos tons escuros, e avançando traiçoeiro sob mantos de espuma branca acumulada, coagulada, o mar, numa das suas fúrias frequentes, roubou a vida de alguns na presença dos que neste momento estão ajoelhados no lajedo frio e duro da igreja. Mas os que o mar privou da vida continuam vivos na memória dos que sobreviveram. Por isso, de joelhos estes pedem contritos à Virgem que interceda a favor dos que o mar chamou a si.
E lembram-se também deles próprios, agradecendo a Nossa Senhora a graça de continuarem vivos.
Logo à tarde a imagem da Virgem sairá da igreja no seu andor e virá à praia. As embarcações aguardam-na desde o princípio da manhã, em formatura, ao longo da linha da arrebentação. Nossa Senhora será passeada diante delas. E o padre lançará a bênção, aspergindo-as.
Os pescadores nunca perdem a fé.
Entre muitas tragédias ocorridas no mar contam-se nesta terra vários milagres de que ninguém se esquece. A autora está ali, nesta sua igreja, ao pé deles, a velar por eles. Eles sabem a quem pedir nas horas de aflição.
Senhora dos Navegantes, velai por nós.
Em todas as casas e durante todo o dia, hoje a comida é melhor. Nalgumas mesas haverá doces. Não faltará aguardente de bagaço para os homens. Raramente de medronhos. E vinho abafado ou bastardinho para as mulheres. Mais raramente anis escarchado.
A banda tocará na praia enquanto a imagem de Nossa Senhora lá estiver. E serão lançados foguetes. Foguetes de três respostas e morteiros também.
Depois, nas tabernas, aqui ou acolá alguém tocará guitarra, a acompanhar-se a si próprio ou a acompanhar um outro. Serão cantadas velhas toadas dos tempos antigos, com voz roufenha e vacilante e os versos talvez já estropiados. E durante todo o dia serão bebidos uns copitos de vinho tinto ou branco mais do que habitualmente. Com pevides e tremoços a acompanhar, como é costume.
À noite, já escuro, haverá mulheres que verão os seus maridos entrar em casa a cambalear. Algumas ao vê-los assim nesse caminhar grotesco, por se ter tornado costume chorarão sentidas. E entre soluços haverá as que praguejarão, primeiro baixinho, como se falassem sozinhas, e a seguir gritando, para que as oiçam bem, Maus raios que te partam !... Sem consideração. Com raiva mesmo. Longe do antigo orgulho escondido, da antiga admiração feliz. E se numas resta ainda algum gostar deles, noutras o ódio já se instalou.
Umas e outras chorarão impotentes a fraqueza dos seus homens. E o seu pensamento irá também para o dinheiro mal gasto nas tabernas. No vinho que eles beberam a mais e nas rodadas de copos que pagaram aos amigos.
Amigos. Sim. Esclareça-se. Amigos nas boas e nas más horas.
Mas nem todos se terão embriagado. Em muitas casas as famílias irão para a cama sem arrelias, contentes.
E assim terminará mais uma festa anual dos pescadores desta terra.
Sem doenças, este ano, graças a Deus. Tirando algum catarral, que não é coisa que impeça alguém de ir para o mar como vai quem não está queixoso. FIM

Ana Cristina Leonardo disse...

gosto mais do texto do estoril

Leonor disse...

Excelente :-)