Terminado o almoço, os sentidos, viciados no prazer da nicotina, reclamam por um Monte Cristo. O amigo do fotógrafo acende a cigarrilha com manifesta volúpia e o cheiro intenso do tabaco sobrepõe-se ao aroma discreto do café solo - que em Espanha bebem-no de preferência con leche. Na mesa ao lado, um homem de provecta idade termina, também ele, a refeição. O fotógrafo faz um sinal ao amigo que logo tenta contrariar a direcção do fumo, sacudindo desajeitadamente a mão em movimentos nervosos. Ao notar o embaraço, o caballero ― mais do que o dramatismo da língua, o que aqui nos surpreende é o recorte preciso das palavras ― logo exclama: No se preocupe! Fume usted lo que quiera. Yo ya no puedo fumar pero el humo me estimula... Este é o espírito da coisa.
Os espanhóis, é dos livros, falam alto e vivem na rua. O termo ― espanhóis ―, ao qual torcerão o nariz alguns nacionalistas mais politicamente correctos, ganha um sentido maior em Madrid, onde cerca de 80% da população é proveniente de outras regiões, ou do estrangeiro. Gentes de Castela, Astúrias, Andaluzia, Galiza, Málaga, Catalunha, País Basco... (no total, são 20 possibilidades) mesclam-se nesta cidade, capital de um país feito de geografias e idiossincrasias várias. Tal mestiçagem é antiga. Notava já Calderón de la Barca, dramaturgo madrileno do século XVII, que Es Madrid, patria de todos/ (pues en su mundo pequeño/ son hijos de igual cariño/ naturales y extranjeros...).
Apesar da gravidade arquitectónica e da escala esmagadora (para um peão, atravessar uma avenida quando o sinal passou a intermitente requer, no mínimo, bravura de espírito e destreza de pernas), Madrid só pode orgulhar-se do seu estatuto há relativamente pouco tempo. Porque embora a sua fundação pelo V Emir independente de Córdoba, Mohamed, recue à ocupação árabe da Península, a elevação a capital do reino apenas se dá em 1556 quando Filipe II (I dos nossos) assim o decide.
Henrique Garcia Pereira, um português adepto do ethos espanhol, sugere no seu livro Arte Recombinatória que a escolha terá recaído sobre Madrid, e não sobre Lisboa, por, dizia-se, aí não haver mosquitos. Subtraída ao título entre 1601 e 1606, por decisão de outro Filipe (III, II dos nossos), no ano seguinte retoma a ordenação que mantém até hoje.
Seria agora chegado o momento de desenvolver matérias eruditas e listar datas e acontecimentos relacionados com esta villa, que não ciudad, mas que me perdoem o conselho: qualquer guia menor os informará, melhor do que eu, dos meandros historiográficos. Cite-se antes Antonio Ferres, romancista e poeta madrileno que assim pontificou à saída da livraria Casa del Libro, onde marcáramos encontro: Madrid es un disparate. Na língua do autor de Los Confines del Reino isto quer dizer: um excesso.
Não nos precipitemos, contudo. Porque o rendez-vous com Ferres apenas se deu três dias após a partida. Por enquanto, ainda estou no Aeroporto da Portela às voltas com um B.I. caducado.
Foi só à chegada ao check-in que uma funcionária zelosa repara na data prescrita e me recusa o embarque. Em vão protestei e em vão supliquei. À tentativa frustrada de a convencer da relatividade einsteiniana, seguiu-se uma corrida rocambolesca contra o tempo entre o aeroporto e a Praça do Areeiro, pontuada por telefonemas ao fotógrafo, de guarda à minha mala, a dar-lhe conta das manobras. No Arquivo de Identificação, onde em meia hora me resolvem o problema, não podiam ser mais prestáveis.
Acalme-se! Acalme-se! Vamos fazer os possíveis! Dê cá o dedo! Vai ver que consegue! E as fotografias? Não tem?! E está à espera de quê? Vá já aí ao lado! Deixe isso, nós preenchemos! Despache-se, despache-se! Poupo-vos ao stress. Numa hora fui e voltei ― devidamente identificada ― e à hora prevista sentava-me no avião rumo a Madrid. Tudo está bem quando acaba bem, mas, por agora, ainda estamos nos preliminares.
A correria terá sido premonitória. Uma espécie de ritual de iniciação ao que me esperava. Felizmente, por melhores motivos. Assim, e para abreviar: na primeira noite recolhemos ao hotel à 01h30m. Chegáramos ao aeroporto de Barajas por volta das 13h00 e, visto tanto eu como o fotógrafo acumularmos sonos atrasados, tornou-se humanamente impossível prosseguir com as digressões madrilenas que, todavia, iniciámos logo na primeira noite com inegável espírito de missão. No segundo dia, desistimos pouco antes das 03h00; no terceiro, perto das 04h00; no quarto.... Creio que me faço entender. Numa manhã de domingo, no Rastro, submersos num mar de cabeças ondulantes entre dois flashs e incontáveis cafés sempre solos, não soube o que responder ao fotógrafo quando este, atónito, me interpelou: Ele é de noite, ele é de dia. Mas quando é que estes tipos dormem?
Esta cidade podia servir de mote a um anúncio do Red Bull. Tente, pelo menos a partir de 5ª feira, apanhar um táxi às 05h00 da manhã e compreenderá do que falo (acrescente-se que, ao contrário de Paris, táxis é o que não falta). Ou jantar sem fazer marcação. Ou ir a um espectáculo sem ter reservado bilhete. O ritual começa pelas tapas ― termo que, segundo a tradição, terá resultado do sensato despacho do rei Alfonso X que obrigava a acompanhar o vinho servido nas estalagens de Castela por um pequeno prato de comida que era colocado a tapar o copo, diminuindo assim efeitos etílicos indesejáveis (e não será por acaso que este rei é conhecido pelo cognome de O Sábio) ― continua com as copas, prossegue nas discotecas e termina nos after-hours.
No domingo, por volta da uma da tarde, na Casa António La Cebada, rostos protegidos por impenetráveis óculos escuros denunciam muitas horas sem dormir. Enquanto uns bebem a última caña, outros aguardam (como nós) uma suculenta tortilla servida ao som de ritmos flamencos, confesso que um pouco estridentes...
Foi assim que, incautos, nos vimos obrigados a desistir do restaurante Los Girasoles, ao fundo da calle Hortaleza, zona de nítida renovação urbana, contígua à Chueca, bairro onde a comunidade gay marca pontos e prova o seu talento para fazer reviver as cidades. Não havia hipótese. Na noite anterior trocáramos, em boa hora, o jantar por uma ida ao Café Central, a que chamam a catedral madrilena do jazz, mas hoje queríamos sentarmo-nos e comer de faca e garfo. Eram quase 10h00 da noite ― cheio ― e as reservas estavam completas, mesmo para as 23h00. E para amanhã?
Si, claro, por mañana, si. O dono, de uma simpatia e profissionalismo à prova de bazuca, passeia-me pelas duas salas, pergunta-me que mesa prefiro, toma nota da reserva. No dia seguinte acolhe-me como se me reconhecesse da minha primeira infância. Pronuncia o meu nome com as letras todas ― Cris-ti-na!
Si, claro, por mañana, si. O dono, de uma simpatia e profissionalismo à prova de bazuca, passeia-me pelas duas salas, pergunta-me que mesa prefiro, toma nota da reserva. No dia seguinte acolhe-me como se me reconhecesse da minha primeira infância. Pronuncia o meu nome com as letras todas ― Cris-ti-na!
Nada do indistinto e tristonho «Crestina» português. Depois de sentados (eu e o fotógrafo), um telefonema. É Isabel, uma jornalista espanhola que se propõe fazer-nos companhia esta noite. Passamos a ser três a jantar. Sugerem-nos trocar de mesa. Passados cinco minutos, do meio da sala, ouço o meu nome ser novamente enunciado de forma claríssima: Cris-ti-na!, seguido de um gesto que me indica o novo lugar: Venga! Levanto-me de um ápice. Obedeço. E aqui terei que esclarecer, para se entender o insólito da coisa, que eu persisto em ser mais do género a que se chama rebelde.
Vem-me à cabeça um álbum de Lucky Luke e o entusiasmo de Rantanplan obedecendo à mã Dalton que lhe ordena que se sente: Finalmente alguém que sabe mandar! As línguas, como a geografia, explicam muita coisa.
Dir-se-á que do conceito que fez fama à Movida madrilena ― a noite como espaço de liberdade ― se passou aos copos como forma de negócio. Sem querer entrar em polémicas, o que é indiscutível é que, pelo menos para quem chega de fora, eles ― os madrilenos ― continuam tremendamente frenéticos. Movendo-se. E arrastam-nos.
Há lugares que resistem. Escueto reabriu depois de um longo interregno (só ao fim-de-semana) precisamente no mesmo local onde a Movida começou, em torno da Plaza Dos de Mayo no bairro de Malasaña ou de Maravillas. No Berlin Cabaret, numa ruela do La Latina, uma das zonas mais castiças de Madrid, insiste-se em espectáculos independentes que pontuam noites de boa música e melhor ambiente. Por três vezes ― a primeira, à 01h00 ― abre-se o palco e sobem à cena três coelhinhas travesti, irreverentes e um pouco gordas. José María Calafat, um dos sócios do Berlin Cabaret, esclarece-me, antes mesmo de ter tempo de lhe ser apresentada: No hablo de sexo! E quando, na continuação da conversa, lhe peço para hablar mais despacio, interroga-me sobre a minha compreensão do espanhol. Com la graciosa irrespetuosidad que es característica del madrileño (nas palavras de Ortega y Gasset) quer saber se percebi o que perguntara a um dos presentes: se deixara o namorado por ser importante ou por ser impotente. Esclareço-o que em português as palavras só divergem na pronúncia e não no significado.
No Búho Real, abençoado por uma colecção de mais de um milhar de mochos, continuam a servir-se as melhores caipirinhas de Madrid sob o lema sigue disfrutando de la noche. E foi o que fizemos... No táxi, ainda no mesmo quarteirão, avistamos um espaço sem história, o KWAI, que nos definem como o sítio de Madrid que vende as copas mais baratas. Garantem-nos que não têm efeitos secundários indesejáveis. Depois das discotecas (mais do que a música, o que surpreende é a beleza de locais como o Palacio Gaviria ou Joy Eslava no antigo Teatro Eslava, clássicos da noite madrilena), e dos clubes, que mudam de designação conforme o som, da responsabilidade de diferentes DJs, é forçosa uma ida à Chocolatería San Ginés, aberta desde 1894 e toda la noche, destino de peregrinação obrigatória na passagem de ano. O chocolate quente é óptimo e os churros acompanham.
O que mais pasma nesta villa é, não só a imensa diversidade de opções, mas a mistura de gentes e géneros que encontramos nos locais mais distintos. A ser verdade o que me dizia Antonio Ferres ― que em matéria de oferta hay El Corte Inglés e hay los outros ―, somos obrigados a concluir, ao fim de pouco tempo, que os outros ainda devem ser ainda muitos.
No Mercado de Fuencarral e ruas adjacentes, sentimo-nos catapultados para o que uma «atmosfera londrina» tem de mais livre e criativo. Lojas de roupa alternativas, jovens descomplexados, pelo menos no que respeita à cor dos cabelos, ruas pejadas de gente nova das mais diversas origens, contrastam radicalmente com o «ambiente Champs Elysées» que se vive, por exemplo, no Bairro de Salamanca, a excelência em matéria de compras.
Tenho para mim, contudo, que a perspectiva de comer bem é ainda uma razão maior que traz muitos portugueses à capital espanhola.
A gastronomia do país vizinho tem vindo a marcar pontos e alguns dos seus chefes actuais ganharam fama internacional. Mas mesmo aos fãs mais convictos dos novos sabores se impõe uma passagem pelo centenário Lhardy.
Foi aí, por volta das 07h30m da tarde, que deparei com um grupo de madrilenas já na casa dos 60 e vestidas a rigor ― calculo que em trânsito para o teatro, porque, mesmo para o padrão local, o esmero era exagerado ― tomando chá em pé, encostadas ao belíssimo aparador do fundo. Estranhei a hora e o desconforto. E também a falta de acompanhamento. Onde estavam as torradas?
O Lhardy é conhecido pelo seu cocido, especialidade madrilena superior, a fim do nosso quase homónimo cozido ― mas que não se deixe de provar também um cochinillo ou um cordero assados no forno de lenha do Botin, ao que parece o restaurante mais antigo do mundo, cuja origem remonta a começos do século XVII. Diz a tradição que Goya aí lavou pratos na cozinha e Hemingway, um cliente fiel, referiu-se-lhe no seu romance Fiesta. E, já agora, confirme-se o humor madrileno na porta quase ao lado, no El Cuchi, restaurante-bar mexicano que anuncia que Hemingwai never ate here. Avisam-nos também que ali não se fala francês, inglês ou alemão, prometendo-nos, em contrapartida, não se rirem do nosso espanhol.
Voltemos ao Lhardy. De arquitectura e decoração românticas, abriu as portas em 1839 e o nome deve-o ao fundador, um suíço que se radicou em Madrid. Como um fama que vem de longe, já uma personagem de Pérez Galdós o descrevia como el primero en las artes del comer fino. À entrada, uma tremenda panóplia de tapas e charcutaria vária recebe os comensais que podem, assim, ou tapear, ou levar para casa uma iguaria mais rara, ou aguardar mesa para o restaurante. Tinham-me falado também do hábito madrileno de vir aqui beber um caldo (do cocido, precisamente), a qualquer hora do dia. Quando interrogo uma empregada sobre o assunto, ela aponta-me simpaticamente um samovar. Abro a torneirinha e sirvo-me. Cumpro o ritual e esclareço o mistério do chá. Como já devem ter concluído, tratara-se de um equívoco. Afasto-me para deixar passar as damas de estômago proletariamente aconchegado pelo caldo caliente e, por momentos, regresso à descontraída Casa Ciriaco, outro dos lugares de referência da cidade (La más deliciosa y menos solemne de las doctrinas, es la gastronomía, diz a publicidade deste Restaurante-Taberna), pejado de imagens de famosos (comovente uma fotografia de Picasso cujo magnífico olhar se percebe rendido ao peso dos anos), célebre pela sua garrafeira e por ser um dos lugares eleitos da família real, e recordo o à-vontade, o tu cá, tu lá desafectado e simultaneamente admirativo com que nos guiam pela adega e falam do rei... e das suas amantes. Nem sei se serão monárquicos. Porque nesta terra pátria do pícaro, tudo é possível. Luísa, por exemplo, uma espanhola apaixonada por Lisboa, resumira a questão à mesa de um almoço: El rey está bien, pero yo soy republicana a cien por cento.
No As de Los Viños, em frente ao Teatro Albéniz, há outra tradição. A de vir aqui comer torrijas. Aparentadas com as nossas fatias douradas, As de Los Viños é o único estabelecimento em Madrid que as prepara, não com leite... mas com vinho. O oposto da sofisticação do Lhardi, trata-se de uma verdadeira taberna onde o menu completo fica por uma ninharia. Só faltou o café. As tabernas estão impedidas de o vender. No princípio do século existiam mais de 100, agora estão reduzidas a cerca de 50 mas é visível o esforço em renová-las.
Rosa Maria, uma madrilena bem-disposta que nos acompanhou no périplo pelas tabernas históricas, elege as mais reputadas. Casa Labra, onde foi fundado em 1879 o Partido Socialista Operário Espanhol; Taberna Café La Fontana de Ouro, hoje transformada em «bar irlandês», embora mantendo a arquitectura e os azulejos originais; Casa Alberto, no mesmo edifício onde se pensa ter vivido Cervantes... Já não estava connosco quando entrei na Taberna de Ángel Sierra e pude confirmar, mais de um ano após aí ter estado com amigos de boa memória num final de tarde chuvoso, que o vermú continua a ser servido do barril.
Rosa Maria, uma madrilena bem-disposta que nos acompanhou no périplo pelas tabernas históricas, elege as mais reputadas. Casa Labra, onde foi fundado em 1879 o Partido Socialista Operário Espanhol; Taberna Café La Fontana de Ouro, hoje transformada em «bar irlandês», embora mantendo a arquitectura e os azulejos originais; Casa Alberto, no mesmo edifício onde se pensa ter vivido Cervantes... Já não estava connosco quando entrei na Taberna de Ángel Sierra e pude confirmar, mais de um ano após aí ter estado com amigos de boa memória num final de tarde chuvoso, que o vermú continua a ser servido do barril.
Um aparte, só para viciados em calçado. Junto a La Taberna de Ángel Sierra fica a calle Augusto Figueiroa onde, se conseguir encontrar outra coisa que não sejam sapatarias, juro por Santo Isidro, o padroeiro de Madrid, que andarei um ano descalça!
Por razões familiares, Rosa Maria agora sai menos à noite. Estamos sentados no Café Salón El Prado, um dos muitos cafés madrilenos que nos faz sonhar com Viena. Pergunto-lhe qual o segredo de tanta energia. A resposta não se fez esperar: «Hombre, pues no lo sé. Puede que sea la siesta!». Hombre, por estas paragens, parece ser um substantivo sem género.
As grandes avenidas é que me matam. São 07h00 da noite e o fotógrafo teima num enquadramento em pleno caos da Plaza de Cibeles. Ossos do ofício.
Uma multidão ciclópica invade as ruas. Some-se em direcção às bocas do metro. Emudece atrás dos vidros dos autocarros. Dispara nos semáforos. Os carros arrancam ao que se me afigura uma velocidade excessiva, obedecendo à polícia que comanda as operações. Deixam no ar um lastro de fumo e o eco cefálgico do barulho dos motores. Um helicóptero soma ruído por cima das nossas cabeças. Para o Blade Runner só falta a chuva. A sensação é tão real que, quando o fotógrafo me toca no ombro e me diz «Vamos?», por momentos surpreendeu-me que não fosse o Harrison Ford.
Esta não é, definitivamente, uma cidade amável, como poderemos dizer de Roma, por exemplo. Não respira a teatralidade delicada de Paris. Ganhará a Londres em beleza mas não chega a ser tão cosmopolita. E contudo... Regresso a Antonio Ferres. Madrid é sobretudo um excesso. Aqui parecem fazer especial sentido os versos da canção de Joaquín Sabina, las malas compañias son las mejores, o que, aliás, podemos interpretar como uma variante da ironia que se revela na frase de Montalbán: «Cada um de nós é má companhia para os outros.»
O índice de ruído (um dos mais elevados da Europa) aconselha a pelo menos uma tarde no Parque del Buen Retiro para retemperar forças ― embora possa não parecer à primeira vista, Madrid é uma «cidade verde»: uma árvore por cada três habitantes. Ou a uma tranquila visita aos vários museus da cidade.
Para nós é já meia-noite e o espectáculo na Casa Patas está prestes a começar. Alguns, mas não muitos, turistas, que aqui chegam guiados pela fama desta Fundación Conservatorio de Flamenco, contribuem para esgotar as entradas. Madrid é um dos melhores locais fora da Andaluzia para se assistir a uma exibição do género celebrado por Carlos Saura. O grupo de hoje chega de Cadiz. O público vibra com o dramatismo da voz. Aplaude a altivez dos gestos. A delicadeza das mãos. A beleza dos acordes. Depois da exibição abandona o local e dispersa-se pela espaçosa sala de entrada. Uns tapeiam na barra, outros ainda jantam nas mesas. Eu e o fotógrafo ficamo-nos pela conversa e pelas croquetas.
Foi então que pela primeira vez na vida, confesso-o publicamente, peço a um empregado de bar para não me encher mais o copo. É que pedi um whisky que me está a ser servido como se fosse água da torneira. Comento depois o sucedido com Luísa, a republicana, dizendo-lhe que em Portugal as doses não são bem aquelas. «Nem em Portugal nem em parte nenhuma do mundo», devolve-me.
E assim é Madrid. Onde a «vida é demasiado importante para ser levada a sério». Para lhe aguentar o ritmo, o segredo, segundo Rosa Maria, está na siesta. Ou na fiesta, digo eu. Como se preferir.
NOTA: Terão os eventuais leitores deste post de me perdoar se alguns dos locais referidos já não corresponderem ao boneco. A viagem não foi feita ontem. Mas o «espírito da coisa» será certamente o mesmo.
FOTO: O cantante madrileno Joaquín Sabina antes de ficar gordo, belíssimo exemplar de la graciosa irrespetuosidad que es característica del madrileño
7 comentários:
Já bebi demasiadas minis para conseguir ler hoje, mas retenho "monte-cristo", "whisky", "montalbán".
«las malas compañias son las mejores»
«Com la graciosa irrespetuosidad que es característica del madrileño (nas palavras de Ortega y Gasset) quer saber se percebi o que perguntara a um dos presentes: se deixara o namorado por ser importante ou por ser impotente. Esclareço-o que em português as palavras só divergem na pronúncia e não no significado.»
«Nada do indistinto e tristonho "Crestina" português.»
«Finalmente alguém que sabe mandar!»
«El Cuchi, restaurante-bar mexicano que anuncia que Hemingwai never ate here.»
«o segredo, segundo Rosa Maria, está na siesta. Ou na fiesta, digo eu»
Oh Brilhante! Eu nunca viajei..."Viajo nos livros". Deu-me vontade de voltar a ler o Longe de Vera Cruz do Vila-Matas ou as crónicas do Joseph Mitchell sobre Nova Iorque. Ou as viagens malucas do Carvalho e do Biscuter.
O mundo é um livro, e aqueles que não viajam lêem dele apenas uma página
Santo Agostinho
Ana,
Sim, sim! E guita?
João Moreira
«Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida»
Fernando
João, nem sempre é a guita. Ora tome lá O'Neill e veja porquê
Manuel, se vamos continuar em verso, tenho que ir ali buscar uns sonetos e já venho
Muito bom na verdade eu provavelmente vou fazer o download. Graças
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